A crise na Europa e uma esquerda desorientada
Ignacio Ramonet (*)
Um dos homens mais poderosos do mundo (chefe da maior instituição financeira do planeta) agride sexualmente a uma das pessoas mais vulneráveis do mundo (modesta imigrante africana). Em sua desnuda concisão, esta imagem resume, com a força expressiva de uma foto de jornal, uma das características medulares de nossa era: a violência das desigualdades. O que torna mais patético o caso do ex-diretor gerente do Fundo Monetário Internacional (FMI) e líder da ala direita do Partido Socialista francês, Dominique Strauss-Kahn é que, se confirmado, seu desmoronamento constitui uma metáfora do atual descalabro moral da socialdemocracia. Com o agravante de que revela, ao mesmo tempo, na França, as carências de um sistema midiático cúmplice.
Tudo isso deixa extremamente indignados muitos eleitores da esquerda na Europa, cada vez mais induzidos – como mostraram na Espanha as eleições municipais e autonômicas do dia 22 de março – a adotar três formas de rechaço: o abstencionismo radical, o voto na direita populista ou o protesto indignado nas praças.
Naturalmente, o ex-chefe do FMI e ex-candidato socialista à eleição presidencial francesa de 2012, acusado de agressão sexual e de tentativa de violação pela camareira de um hotel de Nova York no dia 14 de maio, goza de presunção de inocência até que a justiça estadunidense se pronuncie. Mas a atitude mostrada, na França, pelos líderes socialistas e muitos intelectuais de “esquerda”, amigos do acusado, precipitando-se diante de câmaras e microfones, para fazer imediatamente uma defesa incondicional de Strauss-Kahn, apresentando-o como o principal prejudicado, evocando complôs e “maquinações”, foi realmente vexatória.
Não tiveram nenhuma palavra de solidariedade ou de compaixão para com a suposta vítima. Alguns, como o ex-ministro socialista da Cultura, Jack Lang, em um reflexo machista, não hesitaram em diminuir a gravidade dos supostos fatos declarando que “afinal de contas, ninguém morreu” (1). Outros, esquecendo o sentido da palavra “justiça”, se atreveram a pedir privilégios e um tratamento mais favorável para seu poderoso amigo, pois, segundo eles, não se trata de “um acusado como outro qualquer” (2).
Tanta desfaçatez deu a impressão de que, no seio das elites políticas francesas, qualquer que seja o crime de que se acuse a um de seus membros, o coletivo reage com um respaldo articulado que mais parece uma cumplicidade mafiosa (3). Retrospectivamente, agora que ressurgem do passado outras acusações contra Strauss-Kahn de abuso sexual (4), muita gente se pergunta por que os meios de comunicação ocultaram esse traço da personalidade do ex-chefe do FMI (5). Por que os jornalistas, que não ignoravam as queixas de outras vítimas de assédio, jamais realizaram uma investigação de fundo sobre o tema. Por que se manteve os leitores na ignorância e se apresentou a este dirigente como “a grande esperança da esquerda” quando era óbvio que seu calcanhar de Aquiles podia, a qualquer momento, truncar sua ascensão.
Há anos, para conquistar a presidência, Strauss-Kahn recrutou brigadas de comunicadores de choque. Uma de suas missões consistia em impedir também que a imprensa divulgasse o luxuosíssimo estilo de vida do ex-chefe do FMI. Desejava-se evitar qualquer inoportuna comparação com a vida esforçada que levam milhões de cidadãos modestos lançados ao inferno social em parte precisamente pelas políticas dessa instituição.
Agora as máscaras caem. O cinismo e a hipocrisia surgem com toda sua crueza. E ainda que o comportamento pessoal de um homem não deva servir para prejulgar a conduta moral de toda sua família política, é evidente que contribui para se perguntar sobre a decadência da socialdemocracia. Ainda mais quando isso se soma a inúmeros casos, em seu seio, de corrupção econômica, e até de degeneração política (os ex-ditadores Ben Ali, da Tunísia, e Hosni Mubarak, do Egito, eram membros da Internacional Socialista!).
A conversão massiva ao mercado e à globalização neoliberal, a renúncia à defesa dos pobres, do Estado de bem estar e do setor público, a nova aliança com o capital financeiro e a banca, despojaram a social-democracia europeia dos principais traços de sua identidade. A cada dia fica mais difícil para os cidadãos distinguir entre uma política de direita e outra “de esquerda”, já que ambas respondem às exigências dos senhores financeiros do mundo. Por acaso, a suprema astúcia destes não consistiu em colocar a um “socialista” na direção do FMI com a missão de impor a seus amigos “socialistas” da Grécia, Portugal e Espanha os implacáveis planos de ajuste neoliberal? (6).
Daí o cansaço popular. E a indignação. O repúdio da falsa alternativa eleitoral entre os dois principais programas, na verdade gêmeos. Daí os protestos nas praças: “Nossos sonhos não cabem em vossas urnas”. O despertar. O fim da inação e da indiferença. E essa exigência central”: “O povo quer o fim do sistema”.
Notas:
(1) Declarações ao telejornal das 20h na cadeia pública France 2, dia 17 de maio de 2011.
(2) Bernard-Henri Lévy, “Defesa de Dominique Strauss-Kahn”, e Robert Badinter, ex ministro socialista da Justiça da França, declarações para a rádio pública France Inter, 17 de maio de 2011.
(3) Este coletivo já deu provas de sua tremenda eficácia midiática quando conseguiu mobilizar em 2009 a opinião pública francesa e as autoridades em favor do cineasta Roman Polanski, acusado pela Justiça estadunidense de ter drogado e sodomizado, em 1977, uma menina de 13 anos.
(4) Em particular, a formulada pela escritora e jornalista Tristane Banon. Leia-se: “Tristane Banon, DSK et AgoraVox: retour sur une omertà médiatique”, AgoraVox, 18 de maio de 2011.
(5) No próprio interior do Fundo Monetário Internacional, Dominique Strauss-Kahn já havia sido protagonista, em 2008, de um escândalo por sua relação adúltera com una subordinada, a economista húngara Piroska Nagy.
(6) “Seu perfil ‘socialista’ permitiu enfiar pílulas amargas na garganta de
muitos governos de direita ou esquerda, e explicar aos milhões de vítimas das finanças internacionais que a única coisa que tinham que fazer era apertar o cinto à espera de tempos melhores”, Pierre Charasse, “No habrá revolución en el FMI”, La Jornada, México, 22 de maio de 2011.
(*) Ignacio Ramonet fue director de Le Monde Diplomatique entre 1990 y 2008.
Tradução: Katarina Peixoto
Tudo isso deixa extremamente indignados muitos eleitores da esquerda na Europa, cada vez mais induzidos – como mostraram na Espanha as eleições municipais e autonômicas do dia 22 de março – a adotar três formas de rechaço: o abstencionismo radical, o voto na direita populista ou o protesto indignado nas praças.
Naturalmente, o ex-chefe do FMI e ex-candidato socialista à eleição presidencial francesa de 2012, acusado de agressão sexual e de tentativa de violação pela camareira de um hotel de Nova York no dia 14 de maio, goza de presunção de inocência até que a justiça estadunidense se pronuncie. Mas a atitude mostrada, na França, pelos líderes socialistas e muitos intelectuais de “esquerda”, amigos do acusado, precipitando-se diante de câmaras e microfones, para fazer imediatamente uma defesa incondicional de Strauss-Kahn, apresentando-o como o principal prejudicado, evocando complôs e “maquinações”, foi realmente vexatória.
Não tiveram nenhuma palavra de solidariedade ou de compaixão para com a suposta vítima. Alguns, como o ex-ministro socialista da Cultura, Jack Lang, em um reflexo machista, não hesitaram em diminuir a gravidade dos supostos fatos declarando que “afinal de contas, ninguém morreu” (1). Outros, esquecendo o sentido da palavra “justiça”, se atreveram a pedir privilégios e um tratamento mais favorável para seu poderoso amigo, pois, segundo eles, não se trata de “um acusado como outro qualquer” (2).
Tanta desfaçatez deu a impressão de que, no seio das elites políticas francesas, qualquer que seja o crime de que se acuse a um de seus membros, o coletivo reage com um respaldo articulado que mais parece uma cumplicidade mafiosa (3). Retrospectivamente, agora que ressurgem do passado outras acusações contra Strauss-Kahn de abuso sexual (4), muita gente se pergunta por que os meios de comunicação ocultaram esse traço da personalidade do ex-chefe do FMI (5). Por que os jornalistas, que não ignoravam as queixas de outras vítimas de assédio, jamais realizaram uma investigação de fundo sobre o tema. Por que se manteve os leitores na ignorância e se apresentou a este dirigente como “a grande esperança da esquerda” quando era óbvio que seu calcanhar de Aquiles podia, a qualquer momento, truncar sua ascensão.
Há anos, para conquistar a presidência, Strauss-Kahn recrutou brigadas de comunicadores de choque. Uma de suas missões consistia em impedir também que a imprensa divulgasse o luxuosíssimo estilo de vida do ex-chefe do FMI. Desejava-se evitar qualquer inoportuna comparação com a vida esforçada que levam milhões de cidadãos modestos lançados ao inferno social em parte precisamente pelas políticas dessa instituição.
Agora as máscaras caem. O cinismo e a hipocrisia surgem com toda sua crueza. E ainda que o comportamento pessoal de um homem não deva servir para prejulgar a conduta moral de toda sua família política, é evidente que contribui para se perguntar sobre a decadência da socialdemocracia. Ainda mais quando isso se soma a inúmeros casos, em seu seio, de corrupção econômica, e até de degeneração política (os ex-ditadores Ben Ali, da Tunísia, e Hosni Mubarak, do Egito, eram membros da Internacional Socialista!).
A conversão massiva ao mercado e à globalização neoliberal, a renúncia à defesa dos pobres, do Estado de bem estar e do setor público, a nova aliança com o capital financeiro e a banca, despojaram a social-democracia europeia dos principais traços de sua identidade. A cada dia fica mais difícil para os cidadãos distinguir entre uma política de direita e outra “de esquerda”, já que ambas respondem às exigências dos senhores financeiros do mundo. Por acaso, a suprema astúcia destes não consistiu em colocar a um “socialista” na direção do FMI com a missão de impor a seus amigos “socialistas” da Grécia, Portugal e Espanha os implacáveis planos de ajuste neoliberal? (6).
Daí o cansaço popular. E a indignação. O repúdio da falsa alternativa eleitoral entre os dois principais programas, na verdade gêmeos. Daí os protestos nas praças: “Nossos sonhos não cabem em vossas urnas”. O despertar. O fim da inação e da indiferença. E essa exigência central”: “O povo quer o fim do sistema”.
Notas:
(1) Declarações ao telejornal das 20h na cadeia pública France 2, dia 17 de maio de 2011.
(2) Bernard-Henri Lévy, “Defesa de Dominique Strauss-Kahn”, e Robert Badinter, ex ministro socialista da Justiça da França, declarações para a rádio pública France Inter, 17 de maio de 2011.
(3) Este coletivo já deu provas de sua tremenda eficácia midiática quando conseguiu mobilizar em 2009 a opinião pública francesa e as autoridades em favor do cineasta Roman Polanski, acusado pela Justiça estadunidense de ter drogado e sodomizado, em 1977, uma menina de 13 anos.
(4) Em particular, a formulada pela escritora e jornalista Tristane Banon. Leia-se: “Tristane Banon, DSK et AgoraVox: retour sur une omertà médiatique”, AgoraVox, 18 de maio de 2011.
(5) No próprio interior do Fundo Monetário Internacional, Dominique Strauss-Kahn já havia sido protagonista, em 2008, de um escândalo por sua relação adúltera com una subordinada, a economista húngara Piroska Nagy.
(6) “Seu perfil ‘socialista’ permitiu enfiar pílulas amargas na garganta de
muitos governos de direita ou esquerda, e explicar aos milhões de vítimas das finanças internacionais que a única coisa que tinham que fazer era apertar o cinto à espera de tempos melhores”, Pierre Charasse, “No habrá revolución en el FMI”, La Jornada, México, 22 de maio de 2011.
(*) Ignacio Ramonet fue director de Le Monde Diplomatique entre 1990 y 2008.
Tradução: Katarina Peixoto
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O paradoxo do progresso social e a reação econômica
Robert Kuttner
O Estado de Nova York está prestes a se tornar o sexto estado da federação a legalizar o casamento homoafetivo, o presidente Obama pondera se apoia explicitamente a união de gays e lésbicas, e a questão está se tornando mais uma dor de cabeça divisória para os republicanos do que um tema para fortalecer sua base social. A revista Time não está do lado da direita, porque a orientação sexual é cada vez menos uma questão importante para eleitores mais jovens.
A edição de domingo do The New York Times deu três páginas inteiras para uma história do dia dos pais a respeito de uma família ampliada, composta de uma mãe, seu bebê, o jovem pai doador e seu parceiro gay. Em alguns poucos anos, essa história não ocupará mais do que um pequeno espaço a respeito de como casais heterossexuais divorciados e casados de novo e seus filhos administram relações complexas que vão muito além dos núcleos familiares tradicionais.
Vale a pena refletir a respeito de duas questões. Em primeiro lugar, como fizemos esse espantoso progresso em três décadas a respeito de questões envolvendo tolerância e inclusão? E como é que, durante o mesmo período, demos passos tão pesados para trás em questões econômicas? A sociedade se tornou mais inclusiva com respeito aos direitos da mulher, dos afro-americanos, da comunidade LGBT, das pessoas portadoras de necessidades especiais – e muitíssimo mais desigual e precária economicamente.
Isso não é dizer, é claro, que as lutas por tolerância e inclusão se esgotaram. A intolerância ainda persiste; ela é especialmente nociva no que concerne aos imigrantes. E a questão dos direitos dos imigrantes está conectada com a econômica. Num tempo de declínio das oportunidades e da segurança, imigrantes, que facilmente podem ser explorados e compelidos a trabalhar ganhando menos do que é pago são vistos como uma ameaça aos trabalhadores locais.
Ainda assim, para invocar Dr. [Martin Luther] King, há poucas dúvidas a respeito a respeito de se a balança está pendendo para a justiça. O momento é em direção a mais aceitação e menos intolerância.
Então, o que aconteceu? Não é como se a homofobia e o racismo tivessem sido exatamente derrotados.
Toda a ordem social baseada no privilégio dos brancos é muito acessível se ocorre de você ser caucasiano. Os negros fazem todo o trabalho pesado e o fazem por baixos salários, reservando os bons empregos para os caras brancos. O mesmo se passa com o privilégio dos homens: é muito conveniente para o homem. E os gays e lésbicas foram o último grupo que pôde ser abertamente ridicularizado mesmo em ambientes liberais polidos.
O que aconteceu foi, simplesmente, luta política – e desde o início. Rever os vários documentários celebrando o aniversário de 50 anos de manifestações públicas e de marchas pela liberdade é apreciar a total disparidade daquelas lutas e a extraordinária bravura pessoal. Desafiar a ordem racista, especialmente no sul significou arriscar-se à ruína e à morte. As feministas e os gays foram objeto de escárnio. O direito dos portadores de necessidades especiais sequer aparecia na tela do radar. Atos individuais dos gays lentamente vieram a engendrar compaixão. A epidemia de HIV passou de um objeto de nojo para um de empatia.
Mas esses atos individuais de heroísmo só ganharam força porque foram combinados com movimento social. Eles mudaram normas e então leis, que reforçaram a mudança nas normas.
Lentamente nos tornamos uma sociedade mais agradável e inclusiva.
Por que, então, estamos andando para trás, quando se trata de justiça econômica? Isso se deve ao poder. Os proprietários da riqueza financeira se tornaram cada vez mais poderosos politicamente, enquanto os movimentos que lhes são contrários se tornaram drasticamente enfraquecidos.
Eu escrevi recentemente a respeito da bravura da faxineira do Sofitel da Times Square que denunciou o ataque de Dominique Strauss-Kahn. Mas ela pôde dar esse passo sem medo porque não estava sozinha. O Sofitel da Times Square, como quase todos os grandes hotéis de Nova York tem seus trabalhadores vinculados a sindicatos. E o sindicato dela, que atende aos trabalhadores do hotel e do restaurante, apoiado por um poderoso acordo com um conselho de hotéis e motéis, é um dos mais fortes sindicatos da América – não é forte por conta dos dirigentes sindicais, mas porque o sindicato está imerso na vida cotidiana do local de trabalho.
Quando o gerente do Sofitel se recusou a autorizar que algumas faxineiras se juntassem numa vigília em apoio a sua colega na manhã em que Strauss-Kahn foi denunciado, os trabalhadores do hotel disseram-lhe que suspenderiam suas atividades e ficariam sentados no lobby do hotel. O gerente rapidamente cedeu.
Uma faxineira num hotel em que trabalhadores não fossem sindicalizados pensaria duas vezes antes de denunciar um ataque de um rico e poderoso hóspede. Ela teria sido demitida. Na indústria da “hospitalidade”, por definição, os hóspedes sempre vêm em primeiro lugar. Mas os membros do sindicato Local 6 são protegidos por um contrato que exige o devido processo legal e todo um sistema de delegados sindicais que asseguram o cumprimento do direito.
Uma faxineira de um hotel não sindicalizado na maioria da América faz oito ou nove dólares por hora. Em Manhattan, uma faxineira sindicalizada faz quase 25 dólares por hora, ou 50 mil dólares por ano, o bastante para viver uma vida de classe média, até em Nova York. A diferença entre um salário mínimo e um salário de fome afeta a conta do cliente do hotel em poucos trocados.
Não há boa razão por que todas as pessoas que trabalham no setor de serviços, de funcionários da Wal-Mart a assistentes de enfermeiros e professores do pré-escolar não possam ser pagos com salários mínimos. Mas isso requereria luta política e movimentos sociais – assim como avanços nas lutas por inclusão o fizeram.
À medida que os banqueiros dão o tom em ambos os partidos e a economia se tornou mais precária para a classe média trabalhadora, a base política para uma sociedade justa necessita ser reconstruída de baixo para cima. Por todas as esperanças que depositamos na administração Obama, isso não será construído de cima para baixo.
(*) Robert Kuttner é co-editor do The American Prospect e Membro Senior Fellow do think-tank Demos. Seu último livro é "A Presidency in Peril" (Uma Presidência em Perigo).
Tradução: Katarina Peixoto
A edição de domingo do The New York Times deu três páginas inteiras para uma história do dia dos pais a respeito de uma família ampliada, composta de uma mãe, seu bebê, o jovem pai doador e seu parceiro gay. Em alguns poucos anos, essa história não ocupará mais do que um pequeno espaço a respeito de como casais heterossexuais divorciados e casados de novo e seus filhos administram relações complexas que vão muito além dos núcleos familiares tradicionais.
Vale a pena refletir a respeito de duas questões. Em primeiro lugar, como fizemos esse espantoso progresso em três décadas a respeito de questões envolvendo tolerância e inclusão? E como é que, durante o mesmo período, demos passos tão pesados para trás em questões econômicas? A sociedade se tornou mais inclusiva com respeito aos direitos da mulher, dos afro-americanos, da comunidade LGBT, das pessoas portadoras de necessidades especiais – e muitíssimo mais desigual e precária economicamente.
Isso não é dizer, é claro, que as lutas por tolerância e inclusão se esgotaram. A intolerância ainda persiste; ela é especialmente nociva no que concerne aos imigrantes. E a questão dos direitos dos imigrantes está conectada com a econômica. Num tempo de declínio das oportunidades e da segurança, imigrantes, que facilmente podem ser explorados e compelidos a trabalhar ganhando menos do que é pago são vistos como uma ameaça aos trabalhadores locais.
Ainda assim, para invocar Dr. [Martin Luther] King, há poucas dúvidas a respeito a respeito de se a balança está pendendo para a justiça. O momento é em direção a mais aceitação e menos intolerância.
Então, o que aconteceu? Não é como se a homofobia e o racismo tivessem sido exatamente derrotados.
Toda a ordem social baseada no privilégio dos brancos é muito acessível se ocorre de você ser caucasiano. Os negros fazem todo o trabalho pesado e o fazem por baixos salários, reservando os bons empregos para os caras brancos. O mesmo se passa com o privilégio dos homens: é muito conveniente para o homem. E os gays e lésbicas foram o último grupo que pôde ser abertamente ridicularizado mesmo em ambientes liberais polidos.
O que aconteceu foi, simplesmente, luta política – e desde o início. Rever os vários documentários celebrando o aniversário de 50 anos de manifestações públicas e de marchas pela liberdade é apreciar a total disparidade daquelas lutas e a extraordinária bravura pessoal. Desafiar a ordem racista, especialmente no sul significou arriscar-se à ruína e à morte. As feministas e os gays foram objeto de escárnio. O direito dos portadores de necessidades especiais sequer aparecia na tela do radar. Atos individuais dos gays lentamente vieram a engendrar compaixão. A epidemia de HIV passou de um objeto de nojo para um de empatia.
Mas esses atos individuais de heroísmo só ganharam força porque foram combinados com movimento social. Eles mudaram normas e então leis, que reforçaram a mudança nas normas.
Lentamente nos tornamos uma sociedade mais agradável e inclusiva.
Por que, então, estamos andando para trás, quando se trata de justiça econômica? Isso se deve ao poder. Os proprietários da riqueza financeira se tornaram cada vez mais poderosos politicamente, enquanto os movimentos que lhes são contrários se tornaram drasticamente enfraquecidos.
Eu escrevi recentemente a respeito da bravura da faxineira do Sofitel da Times Square que denunciou o ataque de Dominique Strauss-Kahn. Mas ela pôde dar esse passo sem medo porque não estava sozinha. O Sofitel da Times Square, como quase todos os grandes hotéis de Nova York tem seus trabalhadores vinculados a sindicatos. E o sindicato dela, que atende aos trabalhadores do hotel e do restaurante, apoiado por um poderoso acordo com um conselho de hotéis e motéis, é um dos mais fortes sindicatos da América – não é forte por conta dos dirigentes sindicais, mas porque o sindicato está imerso na vida cotidiana do local de trabalho.
Quando o gerente do Sofitel se recusou a autorizar que algumas faxineiras se juntassem numa vigília em apoio a sua colega na manhã em que Strauss-Kahn foi denunciado, os trabalhadores do hotel disseram-lhe que suspenderiam suas atividades e ficariam sentados no lobby do hotel. O gerente rapidamente cedeu.
Uma faxineira num hotel em que trabalhadores não fossem sindicalizados pensaria duas vezes antes de denunciar um ataque de um rico e poderoso hóspede. Ela teria sido demitida. Na indústria da “hospitalidade”, por definição, os hóspedes sempre vêm em primeiro lugar. Mas os membros do sindicato Local 6 são protegidos por um contrato que exige o devido processo legal e todo um sistema de delegados sindicais que asseguram o cumprimento do direito.
Uma faxineira de um hotel não sindicalizado na maioria da América faz oito ou nove dólares por hora. Em Manhattan, uma faxineira sindicalizada faz quase 25 dólares por hora, ou 50 mil dólares por ano, o bastante para viver uma vida de classe média, até em Nova York. A diferença entre um salário mínimo e um salário de fome afeta a conta do cliente do hotel em poucos trocados.
Não há boa razão por que todas as pessoas que trabalham no setor de serviços, de funcionários da Wal-Mart a assistentes de enfermeiros e professores do pré-escolar não possam ser pagos com salários mínimos. Mas isso requereria luta política e movimentos sociais – assim como avanços nas lutas por inclusão o fizeram.
À medida que os banqueiros dão o tom em ambos os partidos e a economia se tornou mais precária para a classe média trabalhadora, a base política para uma sociedade justa necessita ser reconstruída de baixo para cima. Por todas as esperanças que depositamos na administração Obama, isso não será construído de cima para baixo.
(*) Robert Kuttner é co-editor do The American Prospect e Membro Senior Fellow do think-tank Demos. Seu último livro é "A Presidency in Peril" (Uma Presidência em Perigo).
Tradução: Katarina Peixoto
Fonte: www.cartamaior.com.br
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Integração sulamericana: um modelo em discussão
Julio Gambina – Página/12
O processo bicentenário de luta pela emancipação em nossa América supunha o imaginário da integração regional, mais como território e identidade compartilhada que como relações entre nações. Esta última é a história do capitalismo nativo e do vínculo entre os países. Cada institucionalização integradora teve o selo do capitalismo da época, seja a Industrialização Substitutiva de Importações (ISI) ou o recente período neoliberal.
A crítica popular ao livre comércio e à ordem econômica hegemônica, na mudança de século, construiu a possibilidade de limitar a proposta da ALCA, que se renova com tratados bilaterais e multilaterais impulsionados pela Europa ou pelos Estados Unidos. Por isso, não devemos nos confundir e pensar que, regionalmente, já superamos o ciclo de inserção mundial subordinada, funcional à estratégia global de um grupo reduzido de transnacionais.
Quem decidiu que os países do Mercosul devem ser em conjunto os principais
produtores e provedores mundiais de soja? Isso é resultado de uma decisão planificada soberanamente ou o produto da estratégia de um punhado de empresas transnacionais da alimentação e da biotecnologia que manejam o pacote tecnológico do atual modelo produtivo?
Falando do setor industrial, o que significa que o grosso do intercâmbio de bens intra-Mercosul esteja constituído por produtos da indústria automobilística? A quem isso beneficia? Aos trabalhadores do setor de autopeças da região que devem diminuir significativamente sua produção porque para as montadoras é mais barato importar as peças de qualquer lugar do mundo? Ou as 12 grandes transnacionais que pagam, em termos de hora média de trabalho, quase a terça parte do que pagam no sudeste asiático, exportando a preços internacionais? Não é só o Mercosul. Pode verificar-se o crescimento da integração da Argentina com o Chile, sendo a mineração um motivo compartilhado de entrega de recursos naturais a investidores com dimensão adequada para uma exploração em grande escala com risco certo de contaminação.
A “sojização”, o privilégio à mineração em céu aberto e o caráter de indústria montadora estão ligados aos fenômenos de subordinação ao programa capitalista dominante. São os interesses nacionais contraditórios, ou melhor ainda, os das classes dominantes de cada país, que obstaculizam uma estratégia que assuma a perspectiva originária de articulação de um projeto regional autônomo e emancipado. A crise mundial em curso nos devolve os limites da integração capitalista no programa da liberalização. É o caso da Grécia, da Espanha ou da periferia europeia, países chantageados pelo poder do Banco Central da Europa, dos bancos alemães ou franceses, do FMI, e pela mediação da burocracia política administradora do capitalismo no velho continente.
A hegemonia capitalista define em cada país e em cada região o curso da acumulação, especialmente em época de crise, onde o horizonte de preservar e restaurar lucros se constitui no objetivo principal. É imprescindível a busca de alternativas. Não existe caminho na imitação das articulações integradoras hegemônicas. O que tampouco devemos esquecer é que, na contramão do que ocorre nos países centrais, a periferia latino-americana vive um de seus melhores momentos em termos dos preços internacionais de seus produtos de exportação. O que ocorrerá se terminar esta conjuntura favorável com a acumulação de reservas soberanas, os superávits fiscais que financiam a política social e sustentam os pagamentos da dívida externa? Como os governos se ajustarão a esse novo cenário, se ele ocorrer?
Por isso, faz falta ensaiar um novo caminho que reconstrua o imaginário originário em nossa América. Uma chave desse caminho pode surgir do postergado Banco do Sul, se ele servir para impulsionar outro modelo produtivo, que afirme soberania alimentar, energética ou ambiental, para uma diferente equação de beneficiários e prejudicados. Pode ser o caminho da generalização de intercâmbios em moeda local, incipiente entre Brasil e Argentina, e entre os sócios da ALBA, e para criar um debate sobre a criação de uma moeda regional na disputa pela independência da inserção regional na divisão internacional do trabalho.
Trata-se de observar a estratégia concentra de desenvolvimento da Petrocaribe, que envolve 18 países da América Central e Caribe e supõe, desde as importantes reservas venezuelanas de gás e petróleo, a construção de refinarias e plantas de armazenamento localizadas na região, com financiamento a baixas taxas de juros e uma fatura petroleira a pagar em condições favoráveis para países dependentes da dominação transnacional. A cooperação energética é importante na promoção soberana de um projeto autônomo, o que significa recuperar soberania sobre os recursos naturais e dispô-los em uma lógica não mercantil.
A perspectiva de construir uma estratégia econômica comum na Unasul, superando o caráter de fórum político, com exclusão dos EUA, possibilita discutir os limites da ordem capitalista em nossos países, base imprescindível para pensar uma integração alternativa.
(*) Doutor em Ciências Sociais na Universidade de Buenos Aires. Presidente da Fundação de Investigações Sociais e Políticas (Fisyp) e integrante do Comitê Diretivo do Clacso.
Tradução: Marco Aurélio Weissheimer
A crítica popular ao livre comércio e à ordem econômica hegemônica, na mudança de século, construiu a possibilidade de limitar a proposta da ALCA, que se renova com tratados bilaterais e multilaterais impulsionados pela Europa ou pelos Estados Unidos. Por isso, não devemos nos confundir e pensar que, regionalmente, já superamos o ciclo de inserção mundial subordinada, funcional à estratégia global de um grupo reduzido de transnacionais.
Quem decidiu que os países do Mercosul devem ser em conjunto os principais
produtores e provedores mundiais de soja? Isso é resultado de uma decisão planificada soberanamente ou o produto da estratégia de um punhado de empresas transnacionais da alimentação e da biotecnologia que manejam o pacote tecnológico do atual modelo produtivo?
Falando do setor industrial, o que significa que o grosso do intercâmbio de bens intra-Mercosul esteja constituído por produtos da indústria automobilística? A quem isso beneficia? Aos trabalhadores do setor de autopeças da região que devem diminuir significativamente sua produção porque para as montadoras é mais barato importar as peças de qualquer lugar do mundo? Ou as 12 grandes transnacionais que pagam, em termos de hora média de trabalho, quase a terça parte do que pagam no sudeste asiático, exportando a preços internacionais? Não é só o Mercosul. Pode verificar-se o crescimento da integração da Argentina com o Chile, sendo a mineração um motivo compartilhado de entrega de recursos naturais a investidores com dimensão adequada para uma exploração em grande escala com risco certo de contaminação.
A “sojização”, o privilégio à mineração em céu aberto e o caráter de indústria montadora estão ligados aos fenômenos de subordinação ao programa capitalista dominante. São os interesses nacionais contraditórios, ou melhor ainda, os das classes dominantes de cada país, que obstaculizam uma estratégia que assuma a perspectiva originária de articulação de um projeto regional autônomo e emancipado. A crise mundial em curso nos devolve os limites da integração capitalista no programa da liberalização. É o caso da Grécia, da Espanha ou da periferia europeia, países chantageados pelo poder do Banco Central da Europa, dos bancos alemães ou franceses, do FMI, e pela mediação da burocracia política administradora do capitalismo no velho continente.
A hegemonia capitalista define em cada país e em cada região o curso da acumulação, especialmente em época de crise, onde o horizonte de preservar e restaurar lucros se constitui no objetivo principal. É imprescindível a busca de alternativas. Não existe caminho na imitação das articulações integradoras hegemônicas. O que tampouco devemos esquecer é que, na contramão do que ocorre nos países centrais, a periferia latino-americana vive um de seus melhores momentos em termos dos preços internacionais de seus produtos de exportação. O que ocorrerá se terminar esta conjuntura favorável com a acumulação de reservas soberanas, os superávits fiscais que financiam a política social e sustentam os pagamentos da dívida externa? Como os governos se ajustarão a esse novo cenário, se ele ocorrer?
Por isso, faz falta ensaiar um novo caminho que reconstrua o imaginário originário em nossa América. Uma chave desse caminho pode surgir do postergado Banco do Sul, se ele servir para impulsionar outro modelo produtivo, que afirme soberania alimentar, energética ou ambiental, para uma diferente equação de beneficiários e prejudicados. Pode ser o caminho da generalização de intercâmbios em moeda local, incipiente entre Brasil e Argentina, e entre os sócios da ALBA, e para criar um debate sobre a criação de uma moeda regional na disputa pela independência da inserção regional na divisão internacional do trabalho.
Trata-se de observar a estratégia concentra de desenvolvimento da Petrocaribe, que envolve 18 países da América Central e Caribe e supõe, desde as importantes reservas venezuelanas de gás e petróleo, a construção de refinarias e plantas de armazenamento localizadas na região, com financiamento a baixas taxas de juros e uma fatura petroleira a pagar em condições favoráveis para países dependentes da dominação transnacional. A cooperação energética é importante na promoção soberana de um projeto autônomo, o que significa recuperar soberania sobre os recursos naturais e dispô-los em uma lógica não mercantil.
A perspectiva de construir uma estratégia econômica comum na Unasul, superando o caráter de fórum político, com exclusão dos EUA, possibilita discutir os limites da ordem capitalista em nossos países, base imprescindível para pensar uma integração alternativa.
(*) Doutor em Ciências Sociais na Universidade de Buenos Aires. Presidente da Fundação de Investigações Sociais e Políticas (Fisyp) e integrante do Comitê Diretivo do Clacso.
Tradução: Marco Aurélio Weissheimer
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Porto Rico, uma colônia dos EUA; gringos queriam o mesmo para Cuba
Em discussão há 30 anos, Nações Unidas não avança no processo de descolonização
Por Camila Maciel, da Adital
O Comitê de Descolonização das Nações Unidas (ONU) retomou, nessa segunda-feira (20), o debate sobre a situação de Porto Rico. O Comitê debate anualmente a questão, há pelo menos três décadas, sem que se resolva o pleito dos que querem o fim da centenária relação de dependência dessa ilha com os Estados Unidos (EUA). Diante desse quadro, a Frente Socialista de Porto Rico denuncia a inação do Comitê e o acusa de cumplicidade com os EUA.
A Frente pede que a questão seja discutida no âmbito do Pleno da Assembleia Geral das Nações Unidas. “Seguir postergando essa discussão e intervenção internacional é converter-se em cúmplice de um sistema que continua em seu plano de aniquilar uma nacionalidade com o intuito de manter um enclave econômico-militar no Caribe”, afirma o Comunicado de Imprensa da Frente Socialista.
Este ano, o debate no Comitê está sendo realizado aproximadamente uma semana depois da visita de Barack Obama, presidente dos EUA, a Porto Rico. Durante a visita, o tema veio à tona pelos protestos de movimentos sociais. Eles reivindicaram independência e liberdade para presos políticos que lutam pela descolonização da ilha.
A visita foi a primeira de Obama, após 50 anos da ida de John F. Kennedy. Barack Obama, que estaria fazendo campanha para sua reeleição em 2012, prometeu realizar plebiscito sobre o tema. Os movimentos rechaçam e duvidam de tal postura, já que sequer podem manifestar livremente suas opiniões atualmente, diante da repressão aos independentistas. Oscar López Rivera, por exemplo, é o preso político mais antigo do hemisfério, detido há quase três décadas.
Nesse sentido, o comunicado da Frente Socialista de Porto Rico denunciou também “a criação de um grupo especial do FBI [Departamento Federal de Investigações] para perseguir e deter os lutadores políticos, classificando-os em uma nova categoria de terroristas domésticos, a qual permite às agências repressivas federais dos Estados Unidos violarem nossos direitos e utilizar todos os recursos para perseguir os independentistas”.
O Comitê discute um projeto de resolução, apresentado por Bolívia, Equador, Nicarágua e Venezuela. O projeto enfatiza a urgência de que o governo estadunidense assuma sua responsabilidade de propiciar um processo que permita aos porto-riquenhos exercer seu direito inalienável à autodeterminação. Tal ação de solidariedade desses países é recebida com apreço pelos membros da Frente.
“O projeto de resolução afirma que Porto Rico é e seguirá sendo, por sua cultura, história e tradições e, especialmente, pela inquebrantável vontade de seu povo, uma nação latino-americana e caribenha, com uma identidade nacional própria, que os porto-riquenhos souberam manter mesmo com o processo colonizador ao qual estão submetidos”, afirmou o diplomata cubano, Pedro Núñez Mosquera, com representação no Comitê.
Breve histórico
Porto Rico esteve sob colonização espanhola por cerca de 400 anos. Em 1898, o exército estadunidense invadiu a ilha durante a chamada Guerra Hispano-cubano-americana e o território passou a ser colônia norte-americana. Desde então, os porto-riquenhos têm nacionalidade norte-americana. Desde 1952, Porto Rico está sob o status de Estado Livre Associado. Até hoje, parte de sua população a luta pela total desvinculação com os Estados Unidos, mesmo sofrendo intimidações e repressões.
Fonte: Blog o Escrevinhador (Rodrigo Vianna)
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