31 janeiro 2013

GEOPOLÍTICA: A ECONOMIA POR TRÁS DAS AÇÕES MILITARES

A nova corrida pela África


por Márcio Sampaio de Castro
Nos anos que se seguiram à queda do Muro de Berlim e ao “Fim da História”, nos dizeres do ideólogo neoliberal Francis Fukuyama, o continente africano foi abandonado à sua própria sorte. Regimes como o apartheid sul-africano, retoricamente criticado, mas na prática tolerado pelas potências ocidentais e encarado como um mal necessário frente à ameaça comunista, caíram por falta do discreto apoio antes recebido. Países como Angola, Moçambique, Zimbábue e Ruanda – de triste memória, foram esquecidos. Somente a Nigéria, por suas significativas reservas de petróleo, mereceu alguma atenção naquele período.
Foto: Google
Foto: Google
Quando a máquina de guerra francesa desembarcou no Mali, no início de 2013, com o surrado discurso de defesa do Ocidente contra os terroristas da Al-Qaeda, muita gente se perguntou: o que realmente os franceses desejam em um país com um dos menores IDHs do mundo? É preciso observar o que ocorreu no continente africano durante o vácuo que se seguiu ao fim da Guerra Fria para iluminar alguns elementos que levem a possíveis respostas para esta pergunta.
Este espaço pós-Guerra Fria foi ocupado por Muammar Kaddafi e seu projeto de pan-africanismo e, principalmente, pelos investimentos chineses no continente, que saltaram de 10 bilhões de dólares em 2000 para 107 bilhões de dólares a partir de 2008. Em comum, os dois novos atores jamais desenvolveram a prática de perguntar a seus parceiros comerciais como eles conduziam suas políticas internas, limitando-se, principalmente no caso chinês, a trocar investimentos em agricultura e infraestrutura por recursos naturais, como petróleo, zinco, ouro, diamante e cobre. O melhor exemplo desse movimento é Angola. Com a parceria dos chineses, o país, com o fim da guerra civil que lhe rasgou ao meio ao longo de três décadas, tornou-se progressivamente, a partir de 2002, uma das economias com crescimento mais vertiginoso no mundo, atingindo nos últimos cinco anos uma média de expansão de seu Produto Interno Bruto da ordem de 9% ao ano.
Atentos a este movimento de expansão chinesa no “continente esquecido”, os EUA e seus aliados adotaram algumas medidas para recuperar o terreno perdido. Em 2007, além das costumeiras ações de caridade empreendidas por ONGs dos mais diversos matizes ou das tradicionais promessas de financiamentos em troca de compromissos com os valores da democracia de mercado, surgiria o Africom, o Comando Militar da África, como fruto de uma proposta de ação mais incisiva na região.
Seus idealizadores não contavam, contudo, que os países do continente, liderados por Kaddafi, se recusassem a fornecer uma sede para o órgão diretamente ligado ao Pentágono. Em meados de 2009, a então secretária de Estado, Hillary Clinton, visitou sete países (Quênia, África do Sul, Angola, Congo, Nigéria, Libéria e Cabo Verde), pleiteando um local para a instalação do quartel general do novo Comando. De todos os interlocutores, entre sorrisos diplomáticos e tilintar de copos, ouviu a mesma resposta: não.
Como agora se sabe, os dias de Kaddafi estavam contados e, coincidência ou não, a morte do ditador sepultou o discurso pan-africano e os investimentos líbios, como a aquisição em julho de 2010 de um satélite de comunicações pela União Africana, financiado em grande parte pelo Fundo Soberano da Líbia. Rapidamente após a morte do ditador as consultorias militares, treinamentos e ações humanitárias prestadas por homens uniformizados se espalharam por países como Djibuti, Uganda, Somália, Sudão do Sul, Argélia, Quênia, Etiópia e Congo. O Africom, que se movia com dificuldade no continente, tem agora atuação destacada no combate ao terrorismo, às calamidades humanitárias, etc., etc.
Nesta queda de braço em nome da democracia e da liberdade, 30 mil chineses fugiram às pressas da Líbia em 2011, e a China, além de perder seus investimentos, deixou de ter acesso à maior reserva de petróleo do continente, precisará recomeçar do zero, observando de longe o progresso das empresas dos países que apoiaram a queda do antigo ditador. Assim como outros emergentes, registre-se.
A última volta do parafuso também envolve as operações na região do Saara, onde a França do socialista François Hollande revive suas experiências coloniais em nome da defesa da civilização ocidental. O governo norte-americano mantém conversas bem adiantadas com o governo do Níger, rico em urânio, para a instalação de uma base de drones (aviões não-tripulados) no país vizinho ao Mali, com o alegado objetivo de monitorar possíveis ações terroristas.
Vale a pena destacar que toda aquela região do Saara vem se revelando rica, não só em urânio, mas também em petróleo, maganês, bauxita e o nada desprezível diamante. O “continente esquecido” como um todo produz hoje mais de 8 milhões de barris de petróleo por dia. Uma produção equiparável à Arábia Saudita. O Congo sozinho possui 80% das reservas mundiais de cobalto, fundamental para a indústria eletrônica. As reservas de gás natural na região do chifre africano se revelam a cada dia mais promissoras e os chamados metais raros, fundamentais para a indústria de ponta, também apresentam reservas nada desprezíveis na região subsaariana.
Com pouco mais de cem anos de diferença, a África revive hoje a corrida das potências coloniais do final do século XIX. À época, dizia-se que o fardo do homem branco era levar a civilização aos “povos atrasados”; em troca, explorava-se aquilo que a economia do período demandava. Atualmente, a guerra ao terror e os enxovalhados valores humanitários disfarçam muito mal aquilo que os números escancaram à luz do dia.

Fonte: Revista CartaCapital

30 janeiro 2013

A VERDADE DE CADA UM

Quando o real não se amolda à
verdade, abaixo a verdade

Enio Squeff, na agência Carta Maior





O escritor Euclides da Cunha concede apenas duas linhas para o último capítulo de "Os Sertões". Diz ele em sua grande obra: "É que ainda não existe um Maudsley para as loucuras e os crimes das nacionalidades". Euclides pretendia coroar seu incomparável livro com a citação de uma espécie de unanimidade da psiquiatria de época; mas quase ninguém sabe hoje quem foi Henry Maudsley (1835-1918).

Em suas obras, ele afirmava que a criminalidade e o seu sucedâneo – a loucura – ou vice-versa eram não só explicáveis, mas previsíveis pelo que se conhecia do desenvolvimento da psiquiatria de então. Era um dos muitos enganos, convalidados pela ideologia cientificista da época – mas que continua, pelo menos como ideologia. Quase todos os cronistas da grande imprensa contemporânea pensam ter a chave da história ao apostarem nos consensos das classes dominantes. Parece terem adquirido o hábito de insistirem que a casa não caiu, embora os escombros demonstrem exatamente o contrário.

Talvez fosse o caso de se pensar que se Maudsley (ou Freud, ou Young, ou Lacan, sabe-se lá) valesse alguma coisa permanente para o futuro, ele talvez explicasse não só a loucura das nacionalidades, mas dos jornais, das revistas, da TV, do rádio e principalmente dos cronistas brasileiros, econômicos ou não: eles garantiram que os reservatórios das hidrelétricas ficariam secos, justamente na época das chuvas, e, como São Pedro não foi avisado, eles aduziram – para se contraporem às contraditórias cheias das represas – que as contas do governo não batem para que sua promessa de reduzir as tarifas de energia elétrica sejam, afinal, factíveis.

Há, inclusive, um velho físico de plantão, ex-ministro, ex-secretário de meio ambiente de São Paulo, ex quase tudo, que todos os anos repete o bordão: as reservas das hidrelétricas estão esgotadas. O Brasil da presidenta Dilma repetirá o fiasco do apagão do governo Fernando Henrique Cardoso. Como nada disso acontece, os pauteiros dos jornalões e da TV acabam se esquecendo de pedir ao velho físico seus palpites sobre a meteorologia, ou do resultado do próximo jogo entre o Brasil e a Inglaterra.

Talvez exista, sim, um dia um Maudsley que explique a frustração dos pauteiros e cronistas políticos que, há anos, vêm prevendo o pior para o Brasil, já que o país não se emenda e continua a votar no PT e nos partidos de esquerda. No fundo, constata-se, como dizem os gaúchos, que "é dura a lida de campo". Ou seja, já que a realidade não se amolda aos desejos da grande imprensa, abaixo o real.

Contam os historiadores britânicos que a rainha Vitória nunca se convenceu de que a toda poderosa Marinha de Sua Majestade não podia bombardear a Bolívia. O pequeno país latino-americano tinha dado alguns pontapés no embaixador britânico, humilhando publicamente um representante do mais poderoso império do século XIX. Em quaisquer outros países com as costas para o mar, a marinha inglesa teria reduzido a entulhos as sedes do governo, se é que pouparia o próprio país como um todo das represálias pesadas a uma humilhação do gênero.

Ocorre que, para castigar exemplarmente a Bolívia, as forças britânicas teriam de atravessar alguns países, como o Chile, o Peru e até o Brasil. Haveriam que pedir licença, o que dificilmente lhes seria concedida; ou declarar guerra à América Latina como um todo para atingir a Bolívia. Não havia, em suma, como reagir à altura. Conta-se então que a rainha Vitória teria pedido um mapa-mundi e, com caneta imperial, riscou a Bolívia do mapa das Américas. Dali em diante a Bolívia não existiria.

Mutatis mutandis, como dizem os egrégios juízes do Supremo Tribunal Federal, não se sabe o que farão os grandes jornais e redes de TV diante da realidade de que, de fato, a presidenta não apenas está cortando os juros e as contas das elétricas, ao contrário do que eles e seus cálculos previam, mas está com um decidido apoio popular. Não se cogita de que risquem o Brasil real do mapa.

Na verdade, parece já estarem tentando fazer isso, desde que o país não vem se amoldando a suas previsões catastróficas. Como, porém, tudo continua funcionando a contento – a despeito de seus desejos, ou melhor, apesar dos desejos de seus patrões –, a cada momento se assistem a novas matérias em que a hecatombe é o mínimo esperado.

Dias atrás, a Globo anunciou que as obras para os jogos da Copa das Confederações não ficariam prontas a tempo. As linhas de transmissão de energia para os respectivos estádios não estavam sendo construída – estariam atrasadas. E, segundo os cálculos de uma agência reguladora, havia o perigo iminente de que as coisas fossem de mal a pior, para a humilhação do Brasil.

À medida que a matéria corria no Jornal Nacional, porém, nada da manchete se confirmava. Dito com outras palavras: a própria matéria, anunciada com manchetes catastrofistas, deixava claro que não era nada daquilo que se dizia; que as obras corriam a contento e que, para todos os efeitos, elas estavam prestes a ser instaladas. Em suma: a matéria contrariava a manchete, ou se quisermos, a manchete contrariava a matéria.

Pouco a acrescentar. Mas fica curiosidade sobre a cabeça dos coleguinhas a inventar histórias que não se confirmam. Devem ser pessoas felizes. Cogita-se que seus salários compensem, à larga, as invenções que eles, mais que todos sabem serem meras invencionices, que não têm nada a ver com jornalismo.

A sua sorte é que não estão sozinhos no mundo. É assim na França, nos EUA e na Espanha. Confirma-se um pouco, a sua moda, a idéia do grande Euclides da Cunha: é que não existe ainda um Maudsly que explique loucuras e os crimes, não só das nacionalidades, mas dos jornalistas e de seus queridíssimos patrões.

Que fazer? A Bolívia não existe e pronto.




Enio Squeff é artista plástico e jornalista.




REFLEXÕES SOBRE UMA TRAGÉDIA

A emoção útil e a charge infeliz


Sylvia Debossan Moretzsohn, no Observatório da Imprensa




“A vida muda rápido. A vida muda num instante. Você senta para jantar e a vida que você conhecia acaba de repente.”
É assim que a escritora americana Joan Didion abre O ano do pensamento mágico, livro no qual relata e reflete sobre suas emoções diante da morte súbita do marido, numa véspera de Ano Novo, logo depois de chegarem em casa, de volta de uma visita à filha única, recém-internada, e que morreria também algum tempo depois. Quando o livro foi lançado no Brasil, em 2006, a escritora deu entrevista ao Globo em que reiterava o seu aprendizado com aquela dupla perda: “Eu perdi a ideia de que é possível controlar as coisas”.
Nas horas imediatamente seguintes ao incêndio que vitimou centenas de jovens numa boate em Santa Maria (RS), choveram explicações para o que poderia ter evitado a tragédia: se a banda não tivesse utilizado efeitos pirotécnicos, se a casa tivesse revestimento acústico não inflamável, se os extintores funcionassem, se houvesse saídas de emergência, se os seguranças tivessem liberado logo a porta, se houvesse ali um bombeiro civil, se houvesse fiscalização adequada... sem contar outros conselhos tolos supostamente resultantes da lição daquela madrugada: os clientes devem verificar as condições de segurança dos locais que frequentam, como se isto fosse possível, e como se esta não fosse uma óbvia responsabilidade do Estado.
Do lado dos sobreviventes, a culpa típica de quem não entende como nem por que escapou: como conseguiram sair e tantos outros ficaram?, como não voltaram para salvar amigos, parentes, namorados?, o que poderiam – deveriam? – ter feito para livrá-los da morte? Do lado dos pais, a culpa de sempre: pois os filhos sempre estariam vivos, felizes e saudáveis caso ouvissem seus conselhos.
Se a lista de fatores que concorreram para a tragédia é correta e contribui para a apuração das responsabilidades – embora, a rigor, não haja fiscalização que impeça um comportamento inconsequente capaz de detonar uma catástrofe num ambiente fechado e lotado –, se evidentemente o que ocorreu não foi uma fatalidade – como pretendem os advogados dos donos da boate –, ainda assim a conclusão de Joan Didion poderia servir ao mesmo tempo de consolo e esclarecimento a quem viu a vida mudar num instante, assim de repente, imprevisivelmente: não é possível controlar as coisas.
A emoção mobilizadora
Mas para pensar assim é preciso já ter sofrido o desespero e a dor lancinante da perda, e ter sobrevivido a ela. Não só por isso, mas também por isso, a cobertura jornalística – especialmente a televisiva – de tragédias como essa não pode abrir mão de expor o sofrimento, e a questão sempre estará na definição do limite tênue entre o que é lícito ou não exibir: entre o que a dor pode informar e revelar e a sua exploração sensacionalista e desvirtuadora da capacidade de reflexão e mobilização. Entre o que nos comove e convoca a agir e o que simplesmente nos leva a chorar e a manifestar condolências.
Recorro aqui às indagações do repórter português Carlos Fino, que se tornou conhecido dos brasileiros quando trabalhava na RTP – Rádio e Televisão de Portugal – e cobriu a invasão americana ao Iraque, em 2003:
“Como é que se transmite o horror da guerra? Esta é uma de nossas contradições, não é? Brecht dizia:‘homem, olha bem nos olhos do outro homem e verás nele um irmão. As contradições que te consomem não são boas nem más, são a tua própria condição’. E assim vivemos, quer dizer, como é que damos o horror da guerra sem imediatamente sermos acusados de estarmos a comungar da sociedade do espetáculo e a explorar o sentimento alheio? Eu vou pôr a mão que eu vi decepada no mercado de Bagdá quando os americanos provocaram mais uma vítima colateral? Ponho a mão pra provocar desgosto e repulsa ou escondo essa imagem, não a edito, para não ferir os sentimentos das pessoas? Como é que se transmite isso? Eu não sei dar uma resposta precisa.”
Do mesmo jeito que não se pode cobrir uma guerra de maneira estritamente racional, apresentando-a na lógica do jogo de poder – “a continuação da política por outros meios”, na famosa definição de Clausewitz –, excluindo o sofrimento humano que esse jogo provoca, não é possível pensar na cobertura de uma tragédia como a de Santa Maria sem a exposição do drama vivido pelas pessoas.
Não se trata, é claro, da exibição da desgraça e da formulação de perguntas que provocam a voz embargada e o choro para o previsível close, ou do recurso de supressão do som ao fim dos telejornais que, de tão utilizado, já se tornou clichê – ainda mais se acompanhado da sucessão das fotos daqueles jovens sorridentes que já não existem mais. Trata-se de coisas como o depoimento da mãe de dois rapazes – um morto, outro em estado gravíssimo no hospital – ao programa Mais Você, de Ana Maria Braga,especialmenterevelador por pelo menos dois motivos: porque fala de uma mulher simples que gostava da apresentadora, colecionava suas receitas e pensava em um dia estar mesmo a conversar com ela, mas para falar de suas habilidades culinárias, e nunca naquela situação tão triste; e porque essa mulher simples usa esse espaço para esse grito de dor e revolta contra o absurdo que se abateu sobre ela e tantos outros, apresentando-se como uma porta-voz do sofrimento e do protesto coletivo.
Talvez esta seja uma forma de se explorar a única emoção útil, a da revolta, de acordo com o comentário de Luis Fernando Verissimo que encabeçava a página 3 do caderno “Metrópole” do Estado de S.Paulo de segunda-feira (28/1):
“Depois do choque, da incredulidade, da empatia emocionada com os que foram diretamente tocados pelas mais de 200 mortes da tragédia de Santa Maria, vem a revolta. Que no fim é a única emoção útil, a que tem – ou deveria ter – consequência. As outras são manifestações humanas de solidariedade. A revolta é dirigida a todas as causas evitáveis do horror. À imprudência, às falhas na fiscalização, à ganância. A revolta pede providências para que tragédias assim não se repitam. E pede responsabilização clara e exemplar dos culpados. Infelizmente, uma coisa que pouco se vê no Brasil.”
A charge fora de hora
Enquanto isso, no Globo o cartunista Chico Caruso publicava a sua charge de capa: a boate reduzida ao seu sentido etimológico original de “caixa”, uma arapuca gradeada como uma prisão lotada de pessoas desesperadas tentando inutilmente fugir dali, enquanto o fogo se alastra e a fumaça negra atravessa o teto. E a presidente Dilma, de blazer vermelho, levando as mãos à cabeça e gritando: “Santa Maria!”
Como de costume, o jornalista Ricardo Noblat reproduziu a charge no mesmo dia (28/1), em seu blog. No início da noite já colecionava mais de 200 comentários, quase todos furiosos, classificando-a de “lamentável”, “inoportuna”, “nojenta”, “lixo”, “imbecil”, “insensata”, “infeliz”, “aberração”, “oportunista”, “ridícula”, “desarrazoada”, “desproporcional”, obra de um “perfeito idiota”, e condenando o cartunista – e por extensão o colunista-blogueiro, pela divulgação – de fazer pouco da desgraça que comovia o país e de utilizar um momento de consternação para, mais uma vez, bater em Dilma e no PT.
Em resposta, Noblat repetiu algumas vezes este comentário:
“Os que criticam a charge do Chico Caruso perderam o bom senso, a se levar em conta a violência com que escrevem. O que a charge tem de chocante, de desrespeitosa com quem quer que seja? Dilma pôr as mãos na cabeça e dizer ‘Santa Maria’? Isso é um absurdo? Só enxerga nisso uma crítica à presidenta os fanáticos políticos de plantão. Aqueles que politizam tudo. Os que alugaram sua pena e sua mente a interesses partidários. Dilma não faz política quando grita ‘Virgem Maria’. Nem a charge sugere isso. Dilma revela seu desespero. Sua inconformidade. Que é nossa também. Ela não tem culpa alguma pelo que aconteceu. Foi solidária com todos os que sofrem. Esteve em Santa Maria. Sinceramente se comoveu com o que viu. O que tem mais na charge? A boate transformada numa prisão? As janelas gradeadas? As mãos crispadas dos que ali ficaram retidos clamando por ajuda? Mas não foi mesmo numa prisão em que a boate se transformou? Numa armadilha? Numa ratoeira? Perdão, mas vcs não sacaram nada, nadinha.”
Não há dúvida de que qualquer discurso comporta mais de uma interpretação, mas exatamente por isso o argumento de Noblat não se sustenta: porque a desqualificação de seus interlocutores ao final – “vcs não sacaram nada, nadinha” – supõe um sentido único e, a rigor, muito improvável, dada a sistemática postura do jornal contra o governo petista. E, também, por causa da identificação de toda contestação aos “fanáticos de plantão”, que “politizam tudo”.
Um chargista ocupa um espaço privilegiado para a crítica social e política bem – ou mal – humorada, para uma síntese que em geral nos faz rir de nós mesmos. Os comentadores indignados do blog do Noblat podem estar completamente enganados, mas é impossível desconsiderar os protestos contra a falta de sensibilidade nesse momento particularmente dramático da vida nacional.
***
[Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)]


O "JORNALISMO" DA TV GLOBO

Como usar o drama para fazer marketing


Pedro Aguiar, no Observatório da Imprensa



 No filme Nos Bastidores da Notícia (Broadcast News), de 1987, o personagem Tom Grunick, vivido por William Hurt, é um âncora de telejornal narcisista e inescrupuloso que manipula o aspecto patético do noticiário para ganhar audiência e, principalmente, prestígio profissional. Na sequência-chave da trama, ele edita um VT inserindo imagens de si mesmo chorando ao escutar o relato de uma entrevistada, vítima de estupro. Mas os métodos antiéticos e o jornalismo emocional e grotesco, na mesma medida em que o tornam queridinho dos chefes e executivos da emissora, rendem a ele a crítica e o desprezo entre os colegas.
O filme foi escrito e dirigido por James L. Brooks. No ano seguinte, Brooks seria criador, junto ao desenhista Matt Groening, do desenho animado Os Simpsons, uma das primeiras e mais contundentes sátiras à estereotípica família de classe média norte-americana, saída da Era Reagan com os valores exacerbadamente egocêntricos, materialistas e fúteis, preocupados tão somente com o lazer e o dia de amanhã, e com um desdém assumido por todo aprofundamento, toda crítica, toda ponderação.
O pai da família-escárnio concebida por Brooks e Groening, Homer Simpson, é uma figura simplória, trabalhador honesto porém disposto a pequenas mentiras e jeitinhos para satisfazer vontades ou resolver problemas. Desligado de questões que vão além de seu próprio jardim, tudo que Homer almeja em cada episódio é manter-se confortável em sua rotina, sem questionar o mundo, e refestelar-se no sofá após cada dia de trabalho para assistir a televisão.
Informação em redes
Foi esse arquétipo que o editor-chefe e apresentador do Jornal Nacional, William Bonner, elegeu para descrever o espectador médio de seu telejornal, o de maior audiência no Brasil há décadas. Não apenas na frente de professores como Laurindo Leal Filho, da USP, que chamou atenção para o aspecto desdenhoso da comparação anos atrás (ver aqui o seu relato), mas também para estudantes de jornalismo levados a visitar a redação do JN – como eu, em novembro de 2005, então aluno da UFRJ (ver aqui a resposta de William Bonner). Hoje, passados alguns anos de formação e reprodução, o estilo Bonner/Homer (ou talvez Bonner/Grunick) parece ter feito escola e já está normalizado, em certos círculos tratados como se fosse “a” maneira de se fazer jornalismo.
Não fosse assim, não haveria espaço moral nem tolerância para a edição do Jornal Nacional de segunda-feira (28/1), gastar preciosos minutos com autopromoção em lugar de entrar direto com informações sobre a tragédia da boate Kiss em Santa Maria (RS). Deixando o lide para segundo plano, o âncora William Bonner preferiu descrever e apresentar ele próprio, a própria equipe, seu deslocamento, suas habilidades e suas reações subjetivas ao deparar-se com o fato, e não o fato em si.
Um take de Bonner dentro do jatinho particular apelidado de “JN no Ar”, para fins de marketing, tem carga informativa nula sobre os 245 mortos no incêndio da boate Kiss, bem como a situação de seus familiares ou a investigação sobre as causas e os responsáveis. Saber que a equipe decolou do Rio de Janeiro ou foi deslocada de São Paulo, Porto Alegre ou Buenos Aires para fazer a “suíte” da tragédia acrescenta absolutamente nada para quem está ansioso por notícia, nomes, números, histórias sobre o que ocorreu.
Este é apenas o trabalho dos jornalistas; não há nada ali para jactar-se. Não são “bastidores da notícia” – neste caso, reveladores de nada. Desperdiçar tempo de sinal ao vivo para promover seu próprio dever de ofício em vez de exercê-lo (ou seja, informar) é pegar carona na tragédia alheia para fazer marketing institucional. Além de narcisismo típico de amadores, demonstra insensibilidade e desrespeito para com a memória das vítimas, suas famílias e a população brasileira.
Uma nação que ficou consternada e solidária com a tragédia da Kiss não está esperando propaganda travestida de noticiário; tampouco está preocupada com avaliações passionais por parte de quem nem está autorizado a fazê-las. O fato é trágico em si: dispensa adjetivos e melodrama. A maneira mais respeitosa, mais honesta e mais jornalística de apresentá-lo é apenas com o objeto da notícia: as pessoas que morreram, as que enterraram seus mortos, as que estão chorando, as que estão buscando fazer justiça, e mesmo as que causaram tudo.
O horror fala sozinho, sem cenários, maquiagem nem trilha sonora. A narrativa melodramática tem seu lugar no imaginário social, mas é na novela, e não no programa que vem logo antes.
É mais sintomático que tal opção editorial pela tabloidização parta especificamente da TV Globo, que investe montantes vultosos em construção de imagem institucional, justamente porque esta é arranhada em seus pecados cotidianos, suas escolhas editoriais enviesadas e sua desfaçatez em manipular fatos e apresentá-los como isentos. De pouco ou nada adianta tanto marketing se, nos outros dias do ano, o produto principal da casa continua indo na contramão dos interesses públicos, o que é cada vez mais neutralizado pelos fluxos de informação em redes. Felizmente, os âncoras (que acumulam o cargo de apresentadores e editores dos telejornais de alcance nacional) não têm mais a força que tinham quando as emissoras brasileiras dos anos 1970-80 copiaram o modelo norte-americano dos anos 1950-60.
O que está em pauta
Se, no filme de 1987, James L. Brooks chamava a atenção para o “poder exagerado dos âncoras” e os responsabilizava (na voz do personagem Aaron Altman, o editor de texto que lhe servia de alterego) por “baixar os padrões, pouco a pouco” da sociedade, no desenho animado que está no ar até hoje ele demonstra os efeitos que esse processo midiático causa em uma família mediana. O pai da família Simpson, como o espectador idealizado do Jornal Nacional, comove-se com uma catástrofe agora, depois muda de canal e abre uma lata de cerveja no sofá para ver futebol. É contando com essa indiferença que a mídia corporativa opera. Por isso, cada vez se constrange menos em usar o espaço do noticiário para fazer seu próprio comercial.
Em outro VT, a inserção da imagem da correspondente Délis Ortiz acolhendo no ombro o choro da mãe de uma vítima do incêndio da boate República Cro-Magnon, ocorrido em dezembro de 2004, em Buenos Aires, é idêntica à artimanha de Tom Grunick no filme Nos Bastidores da Notícia. Coloca-se em primeiro plano o mensageiro, não a mensagem, e com isso joga-se para escanteio a dor, o sofrimento e o que verdadeiramente importa para o jornalismo, que é a informação.
Não que a repórter não tenha direito a se emocionar ou que o gesto de empatia não seja belo; claro que é. Apenas não tem lugar num jornalismo que abdique do aspecto patético e se concentre no objeto, como costumava se ensinar antes da Escola Bonner/Hommer. Jornalistas somos seres humanos, sem dúvida, mas não é nossa subjetividade que está em pauta. Ou, como ironizava Aaron Altman, “lembrem-se sempre: nós é que somos a notícia, não eles”.
***
[Pedro Aguiar é jornalista]


O OPOSICIONISMO OBCECADO DA MÍDIA


A tragédia, a senhora Watanabe e a

nação


Saul Leblon, na Agência Carta Maior
A incapacidade de pensar sobre um acontecimento, o que implica fazer perguntas antes de oferecer respostas, e enxergar o todo a salvo de enquadramentos binários, não é um apanágio exclusivo do olhar conservador.

A esquerda também tem contas a acertar no balcão do reducionismo.

Mas a tentativa de desfrute político de alguns veículos e jornalistas diante da tragédia de Santa Maria (leia o desabafo de Flávio Aguiar) remete a uma terceira dimensão do problema.

Evidencia o risco enfrentado pelos protagonistas de um ciclo histórico quanto a sua estrutura de reflexão encontra-se obstruída por um poder capaz de empobrecer o olhar da sociedade sobre ela mesma.

A tragédia reafirmou a asfixiante insuficiência da pauta utilitarista que hoje domina o debate nacional.

O oposicionismo obcecado tornou a mídia incapaz de reagir mesmo à 'dor indescritível', evocada pela Presidenta Dilma.

Mais que isso.

Perdeu-se a dimensão narrativa, política e histórica da palavra solidariedade. 

Pasma diante de uma população inteira em choque, a narrativa esclerosada assina seu atestado de irrelevância em momentos em que somente a solidariedade pode devolver sentido à vida e a sociedade.

A tragédia de Santa Maria questiona normas e procedimentos de segurança em recintos de frequência pública.

'Para que não se repita',disseram Dilma e Tarso Genro, a lei e a fiscalização terão que mudar. 

Mas a extensão do que deve mudar vai além das normas técnicas.

Ela argui também o despreparo de redações uniformizadas diante da tragédia.

Uma parte importante do jornalismo revelou-se incapaz de apontar as portas de saída. 

De acudir a tempo feridas insuportáveis.

De arejar o horizonte irrespirável.

E de sacudir a própria catatonia quando eventos irredutíveis pela sua extensão, emergência e intensidade escapam à pauta previsível e polarizada. 

Como reagiria essa mesma mídia aferrada à batalha do dia anterior, diante de um acontecimento de dimensões ainda mais devastadoras em perdas humanas? 

E se ele perdurasse ao longo de dias?

Teria ela grandeza para enxergar a Nação? 

Ou persistiria na gulosa contabilidade de pontos em causa própria ? 

Seria um interlocutor relevante do desespero para transformá-lo em criatividade e superação? 

Ou cuidaria apenas de direcioná-lo aos seus alvos fixos? 

Analistas esfericamente imunes à dúvida, dotados de conclusões antecedentes, de pronto levaram o país e o governo ao cepo de sua especialidade. 

Sentenciaram diante de 234 mortos a incapacidade nacional para aspirar a qualquer coisa que extrapole a ração servida aos vira-latas em meia cuia de queijo Palmira. 

Coube ao editor de Carta Maior, o gaucho Marco Aurélio Weissheimer, em tocante texto de primeiro hora (leia nesta pág) desnudar a profundidade do ferimento que atingia a alma de sua gente e a de todo o país. 

E ainda assim vislumbrar o ponto de luz por onde recomeçar. 

Que autoridade tem para pautar o debate de outras urgências nacionais aqueles que enxergam do país sempre, e exclusivamente, a sua derrota preliminar e inapelável?

Não há retórica na pergunta. Há apreensão com lacunas que enfraquecem o discernimento da soiedade.

Equilibra-se o Brasil em um delicado meio fio do seu desenvolvimento.

Avançar requer a redefinição de prioridades. 

Estas pressupõem o deslocamento correspondente de massas de recursos reclamados na ponta do investimento produtivo.

Cada novo ciclo na vida de uma Nação tem sua pauta de reflexão estratégica.

Dela depende da construção das grandes maiorias que ordenam o paso seguinte do desenvolvimento. 

Não se faz isso sem a mediação de uma caixa de ressonância plural, crítica e democrática. 

Que saiba fazer perguntas antes de oferecer respostas; e seja capaz de pensar sobre o que enxerga e de enxergar o todo, a salvo de enquadramentos redutores.

Exatamente o que foi sonegado de pronto no episódio de Santa Maria.

Não foi um tropeço diante do imprevisto devastador.

A ausência desse descortino pontua ardilosamente o noticiário econômico, por exemplo. Há meses.

Armadilhas se ocultam no interior de manchetes; espertezas reforçam a emboscada do espírito.

Um alarme desta semana no noticiário financeiro: 

'A senhora Watanabe trocou o Brasil pela Turquia'. 

'Senhora Watanabe' é o código com o qual o mercado japonês identifica o investidor miúdo – donas de casa, casais aposentados, viúvas. 

Pequenos poupadores, enfim.

São personagens intrinsecamente conservadores; realizam aplicações óbvias, mas no conjunto acabam tendo um peso significativo, deslocando massas de recursos pelo planeta, através de fundos e outras modalidades de investimentos.

Uma das aplicações preferidas das 'senhoras Watanabes' até recentemente eram papéis brasileiros.

Por razões óbvias. 

Até meados de 2012 a taxa de juro do Brasil brilhava no topo do campeonato mundial. 

O Japão patina há mais de uma década em crise. Debate-se emparedado entre a subserviência aos EUA e a competitividade do gigantesco vizinho chinês.

As taxas de juros no Japão são negativas; a economia se arrasta; não consegue escapar da areia movediça da deflação. 

Nem com taxas de juros de 0,7% ao ano.

Mas a senhora Watanabe não perde tempo.

Toma empréstimos em ienes a juros quase negativos; aplica-os em títulos e ações nos pastos de engorda do dinheiro especulativo em todo o planeta.

Tem a companhia de um séquito de miúdos e graúdos nessa operação.

Com a reversão da curva dos juros no Brasil de Dilma – e a taxação do dinheiro arisco – a legião desiludiu-se com a praça brasileira. 

'A senhora Watanabe trocou o Brasil pela Turquia'. Mas também pelo México, a Polônia...

Um empréstimo tomado em iene investido em títulos turcos faturou um ganho de 30% em 2012. 

O tsunami de Watanabes à Turquia valorizou a lira - e rendeu um plus de outros 20% aos especuladores na reconversão cambial de regresso à origem.

No Brasil, deu-se o oposto.

A mesma aplicação da senhora Watanabe aqui renderia 9,8%.

No comparativo das Bolsas, idem.

Na mexicana, a senhora Watanabe obteve um ganho de 23% em dólares no ano passado; na colombiana, 22%; na Bovespa, seu passeio teria custado uma perda de 10% em dólares. 

A diáspora dos Watanabes é narrada como sintoma de perda de confiança no país. 

É o oposto. É sintoma de soberania do país sobre a política econômica, para torná-la um escudi de defesa de empregos, indústrias, salários, receita e investimento público.

Mas serve como 'evidência' de fracasso do 'intervencionismo desenvolvimentista' do governo Dilma.

Seu custo é notificado em cores vivas. Com o manejo de símbolos contundentes. E fontes de prestígio.

O 'Financial Times', por exemplo. 

Que disparou um petardo contra a Petrobrás nesta 2ª feira:

'A Ecopetrol, a petroleira da amigável Colômbia, tornou-se a maior companhia do ramo na América Latina; maior que a Petrobras'.

Como assim?

Assim, explica o FT: 'políticas amigáveis' aos negócios atraíram os investimentos (...) as ações da Ecopetrol registraram uma valorização de mais de 50% (...) seu valor de mercado (na Bolsa) n sexta-feira bateu em US$$ 129,5 bilhões. O da Petrobras é de US$$ 126,8 bi.

Tudo Isso mesmo a brasileira tendo uma produção três vezes maior do que a colombiana;ademais das reservas do pré-sal, que projetam o Brasil entre os seis maiores produtores de óleo na próxima década.

Coube ao diretor-executivo da Ecopetrol, Javier Gutiérrez, em entrevista ao próprio jornal inglês, matizar as coisas: 

'Não se pode comparar; a Petrobras é uma gigante... O valor de mercado é simplesmente um reflexo da confiança que o mercado deposita na Colômbia em geral, e na Ecopetrol em particular'.

Nuances tem pouca aderência na narativa que ancora manchetes binárias. 

O repto conservador ao governo do PT pede cores fortes.

E argumentos rígidos.

Diz o bem-informado jornal Valor Econômico que a visão de Aécio Neves, por exemplo, é que "o Brasil precisa abrir-se mais aos mercados e que o modelo de integração em vigor traz resultados pífios."

A tentativa de desfrute político da tragédia de Santa Maria não foi um ponto fora da curva.

O empobrecimento do olhar jornalístico sobre o país desenha uma curva ascendente; revela a extensa capilaridade de um endurecimento narrativo deformador.

Uma incapacidade de assimilação da vida nacional em toda a sua extensão.

Mesmo quando se depara diante da dor que fala a todos nós. 




29 janeiro 2013

REFLEXOS CONDICIONADOS


Os ratos de Pavlov




Paulo Moreira Leite, em seu Blog


Quando eu tinha a idade dos meninos e meninas que morreram na balada em Santa Maria, uma tragédia igual à que ocorreu no último sábado seria usada para massacrar a liberdade da juventude.

Com seus reflexos condicionados, que permitem a um ser humano ficar idêntico aos ratos de laboratório de Pavlov – nome muito em voga na época – eles diriam que o caso demonstrava que essa juventude não tem eira nem beira, não merece a confiança dos pais, pois passam o dia fumando maconha, ouvindo rock e pensando em dormir com a namorada.
Os tempos mudaram mas é preciso reconhecer que os ratos de pavlov permanecem. Seu alvo, agora, é o universo Lula-Dilma.
É um pouco difícil achar culpados diretos no PT, desta vez. A tragédia tem muito a ver com questões de prefeitura, e o prefeito de Santa Maria, reeleito em 2012 com mais de 54% dos votos, é do PMDB. Complica bater no sujeito, que, além de tudo, tem fama de bom político, com um histórico de atitudes respeitáveis em sua passagem por Brasília. 
    
Nós sabemos que, do ponto de vista pavloviano, esse tipo de questão não importa. Importa o alvo. Mas desta vez não dá para bater direto e começar a procurar relações entre as tragédias. Com cartilagem, em vez de ossos, os ratinhos conseguem atravessar as menores brechas, não é mesmo?
Lembram-se do desastre da TAM? Teve até passeata para denunciar o governo federal como culpado. Quando a causa do acidente apareceu... os ratinhos deram um jeito de atacar um assessor do presidente em vez de pedir desculpa. 
  
Dessa vez, o pavlovianismo acha ruim que Lula e sua mulher, Marisa, colocaram no Facebook uma nota de pesar pela tragédia. 
    
Claro: é oportunismo, é intromissão. Um ex-presidente, o mais popular da história brasileira, só pode ter intenções maléficas quando coloca uma nota na internet.     
Vamos combinar que, salvo amigos e parentes próximos, todo mundo poderia  ser chamado de oportunista no caso.
Um observador frio pode dizer que principalmente os jornalistas estão querendo faturar com a tragédia, pois ela ajuda a aumentar a audiência e a vender jornais. Seria estúpido, mas juro que tem gente que pensa assim.
As emissoras de TV costumam ganhar audiência e prestígio com esse tipo de cobertura. Pesquise a história das grandes emissoras e garanto que vai encontrar um episódio desses, que marcou a história de todas elas. Não é vergonhoso. Não é oportunismo. 
Quantos blogueiros não conquistaram audiência no tsunami da Ásia?
 
Um político como Mário Covas deixou de ser um engenheiro de Santos como tantos outros por causa de uma enchente em sua cidade natal. Ele mostrou-se à altura de suas responsabilidades como cidadão e, a partir de então, conseguiu apoio popular para sua carreira política, que o levou ao Senado, ao governo de São Paulo e a uma candidatura a presidente da República.
Não vejo nada de errado na solidariedade de Lula nem de ninguém. Acho natural. Como achei natural que Zeca Pagodinho desfilasse por Xerém a bordo de seu triciclo motorizado. Só achei um pouquinho exagerada a reação favorável. Será que isso tem a ver com seus patrocinadores?  
E tenho certeza de que, para desgosto de nossos ratos de Pavlov, a solidariedade vai se ampliar nos próximos dias. Outros políticos vão se manifestar. É absurdo ficar em silêncio e cruzar os braços numa hora dessas.
É possível inverter o raciocínio. Em vez de achar que Lula está usando a tragédia para se promover, pode-se dizer que os ratos de Pavlov querem tirar proveito da tragédia para atacar o ex-presidente. Ou seja: os oportunistas de verdade são eles.
A maldade dos ratinhos de Pavlov não tem limites. Compreende-se. Eles trocaram a consciência pelos reflexos condicionados.
 
Esclarecimento
Mais de um leitor escreveu para informar Pavlov não fazia experiências com ratos, mas com cães. Confesso que fui atrás do Google e vi que era isso mesmo. O próprio Pavlov usou cães em exercícios de psicologia, em que descobriu os reflexos condicionados. Mas eu sempre ouvi falar em ratos de Pavlov e é fácil entender por quê. O uso de ratos, em laboratório, universalizou-se muito mais tarde. Quando os experimentos de Pavlov foram repetidos, décadas mais tarde, eles substituíram os cães. Ficaram, então, conhecidos como ratos de Pavlov. Não eram cobaias originais mas serviam ao mesmo propósito.
Parece que tanto ratos como cães tinham uma mesma reação quando recebiam um sinal de que era hora de comer - começavam a salivar com mais intensidade.


A DESINFORMAÇÃO COMO ARMA

O festival de desinformação que
segura o desenvolvimento


Luis Nassif, na Revista CartaCapital


 Hoje em dia, provavelmente o maior custo que o país carrega é o chamado “custo mídia” – o festival de desinformação que tomou conta da cobertura dos grandes veículos.
Há um caminhão de questões para serem criticadas. O governo Dilma está longe do estado da arte da gestão; as obras do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) ainda enfrentam problemas de gerenciamento; não se avançou em nada na redução da burocracia pública; abandonaram-se as minirreformas que ajudavam a destravar a economia.
Cada tema desse dá espaço a campanhas críticas relevantes, necessárias para aprimorar os trabalhos, evitar o acomodamento e manter o governo com rédea curta,
***
Mas há uma invencível dificuldade da mídia em produzir a crítica técnica.
Há muito reclama-se do custo Brasil, expresso especialmente nas tarifas públicas. Um dos grandes problemas surgidos nos anos 90 foi com a matriz elétrica. Tinha-se, até então, energia barata, fruto de décadas de investimento em hidrelétricas já amortizadas.
Com a privatização, matou-se essa vantagem competitiva. Criou-se um modelo de mercado que desorganizou a geração, praticamente quebrou a distribuição e, ao final, legou uma das tarifas de energia mais altas do planeta.
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Decidiu-se, então, reduzir as tarifas – mais para as empresas (que necessitam de competitividade), menos para os consumidores domésticos.
Trata-se de medida de largo alcance. Segundo as contas da FIESP (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) significará uma economia anual de R$ 31,5 bilhões para o setor produtivo.
Permite não apenas tornar os produtos internos mais competitivos em relação aos importados, como melhor as decisões de investimento em muitos setores.
***
Aliás, faz parte da estratégia adotada de baratear os novos investimentos, onde entra também a redução da taxa Selic, melhoria do câmbio, desonerações da folha etc.
Os efeitos são claramente quantificáveis.
  1. Imagine uma empresa que fature R$ 100 milhões/ano e lucre 20%, ou R$ 20 milhões. Logo, suas despesas totais são de R$ 80 milhões. Suponha que R$ 30 milhões sejam com folha salarial e R$ 10 milhões com custo de energia.
  2. Na hora de analisar o investimento, se for recurso próprio, o empresário irá comparar com o chamado custo de oportunidade – no caso, a aplicação remunerada pela Selic, a taxa básica de juros da economia, com plena liquidez e sem risco.
  3. Com a Selic a 12,5%, para que o investimento tenha o mesmo retorno, em 15 anos, ele terá que investir R$ 132,7 milhões na empresa.
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As medidas de redução de investimento impactam diretamente o investimento necessário
  1. Com a redução da Selic de 12,5% para 7,5%, sua capacidade de investimento aumenta para R$ 176,5 milhões. Ou seja, 33% de aumento.
  2. Com a redução da conta de energia em 27%, sua capacidade de investimento aumenta para R$ 150,6 milhões, uma alta de 14%.
  3. Com a desoneração da folha de pagamentos, a capacidade de investimento aumenta em 30%, para R$ 172,5 milhões.
  4. Somando-se tudo, a capacidade de investimento pode aumentar em 91%, indo para R$ 253,4 milhões.
Ora, não existe mágica na redução. Não existe almoço-grátis.

Cota de depreciação – 1

Uma das medidas utilizadas foi aproveitar o vencimento de concessões e acabar com a cota de amortização. Antes, o governo cobrava pela concessão, o concessionário pagava e incluía a amortização do investimento na tarifa. O consumidor acabava pagando pelo investimento. Decidiu-se mudar a sistemática, deixando de lado a modalidade de concessão onerosa pela concessão pela menor tarifa. Mais ainda.

Cota de depreciação – 2

Na hora de renovar concessões antigas, deu aos concessionários a possibilidade de renovar de forma não onerosa, desde que aceitasse a nova modalidade de pagamento – que levaria em conta as despesas operacionais da concessão. Para reduzir a conta, no caso das concessões que vencem até 2015, houve a proposta de ressarcir as empresas pelo tempo que faltava para vencer o contrato. Como discutir a legitimidade da proposta?

Cota de depreciação – 3

De repente, descobre-se que o mercado precificava as empresas levando em conta a renovação da concessão, a manutenção dos ganhos com a tal taxa de depreciação, mesmo ela não se constituindo em direito líquido e certo da companhia. Acionistas ganharam rios de dinheiro em cima da desinformação do mercado, contando com um faturamento futuro que não poderia se manter após o final da concessão.

Cotas de depreciação – 4

As cotações de uma companhia dependem do fluxo futuro de resultados. Em geral, o mercado projeta o fluxo passado para o futuro e, a partir daí, calcula o chamado preço justo da ação. Ora, no caso das concessões, ponto central de análise é o prazo dos contratos e de que maneira se dará sua renovação. Vendeu-se a ideia de que, mesmo com a renovação, o fluxo de resultados seria mantido. É evidente que houve um passa-moleque no mercado.

Cota de depreciação – 5

Em vez de investir contra os que manipularam os preços (escondendo informações relevantes), houve um enorme alarido de lobistas contra o que diziam ser “insegurança jurídica” dos contratos. Que mané insegurança? Tem-se periodicamente leilões de energia, com novos investidores entrando no mercado, apostando em novas fontes, sem um pingo de receio quanto à segurança jurídica. No entanto, espalhou-se a lenda da insegurança, com propósitos eminentemente políticos.

Almoço grátis

Não se ficou só nisso. Se desonera a conta de tributos, diz-se que o governo está dando presente tirando dinheiro dos impostos. Se há aporte do Tesouro, diz que o governo está oferecendo almoço com dinheiro do contribuinte. Mas é claro! Alguém acha que essa entidade chamada governo tem fontes próprias de receita? Há um tiroteio insano no ar que impede que as boas iniciativas sejam valorizadas e impede que os fracassos relevantes sejam apontados.

O MOMENTO HISTÓRICO DO BRASIL


A sobrevivência do velho no novo



Roberto Amaral, na Revista CartaCapital 



Dilma Rousseff em encontro do PMDB em setembro de 2011. O partido sintetiza a geleia geral da política nacional. Foto: Valter Campanato / ABr
Dilma Rousseff em encontro do PMDB em setembro de 2011. O partido sintetiza a geleia geral da política nacional. Foto: Valter Campanato / ABr
Completamos uma década de governo de centro-esquerda, o mais longo e tranquilo período de governos progressistas, tanto do ponto de vista institucional quanto social. Nada que nos lembre, sejam os anos 50 (marcados pelo golpe reacionário que levou Vargas ao suicídio), seja o golpe proto-fascista de 1964, com sua longa noite de horror. Nada que nos lembre, sequer, o governo desenvolvimentista de JK, juncado por sucessivas tentativas de golpes de Estado e insurreições militares, articuladas antes mesmo de sua posse.
Na verdade, estamos, desde 1985, vivendo nosso mais longo período de estabilidade democrática, de preeminência do poder civil e silêncio dos quarteis, da história republicana.
O que avançamos à esquerda nesses dez anos só é comparável (talvez até superando-o) ao que o país avançou nos governos Vargas e Jango e, pela primeira vez, a direita não teve condições de interromper o processo de ascensão das massas, embora cogitasse dessa aventura em 2005, da qual recuou em face de seu medo contumaz da voz das ruas. Avançamos sobretudo em conquistas econômicas e sociais, que ajudam a explicar a notável popularidade de Lula e de Dilma. Estamos, todavia, ainda a pagar um preço absurdamente elevado pela “governabilidade”, o nome elegante da construção da base de apoio parlamentar, preço que impede o avanço político. Pois tudo tem seu preço.
A avaliação mais corrente ao período deita suas raízes no plano econômico, considerado, à esquerda e à direita, como fiador da popularidade dos governantes, financiador que é dos avanços sociais, os quais, para poupar espaço, resumiremos na dupla pleno emprego-distribuição de renda: 42,5 milhões de brasileiros entraram no sistema financeiro e conheceram o crédito, tornado acessível graças à intervenção política da presidente.
No segundo semestre de 2002, em plena campanha pela sucessão presidencial, o presidente FHC convocou todos os candidatos para uma ‘reunião de Estado’ (estive em uma delas, acompanhando o candidato Anthony Garotinho, à época no PSB), para anunciar a falência do país. O governo, em seu outono, correra uma vez mais ao FMI e precisava que o próximo presidente honrasse os terríveis compromissos assumidos com a banca internacional. Passados 10 anos, o Brasil, de devedor, tornou-se credor do FMI; a inflação anual caiu de 12,5% para algo como 5%; as reservas cambiais são superiores a um ano de importações, a realidade cambial foi restabelecida e a dívida pública líquida caiu como fração do PIB. Acabou-se com a lengalenga de ‘Banco Central independente’, independente do país e dependente dos banqueiros.
Outros excepcionais indicadores do amadurecimento de nossa economia remetem ao reconhecimento internacional, cuja justa medida é o fato de sermos, hoje, o quarto destino mundial de investimentos estrangeiros (65,3 bilhões de dólares, segundo a Unctad), e o Tesouro Nacional emitir (e vender) títulos de 20 anos, pagando uma taxa de juros real inferior a 4%! E tudo isso – e muito mais – mantendo a política de aumento real do salário-mínimo. A qual, nesse governo, contrariando economistas da FGV, deixou de ser elemento inflacionário. Aumentou-se o salário mínimo, aumentou-se a renda dos assalariados, aumentou-se o crédito, derrubaram-se os juros, e a inflação permaneceu sob controle.
Mas, o que mais festejo são os ganhos políticos e o que mais critico é a timidez política, e exatamente por isso elogio, finalmente, o pronunciamento da Presidente na televisão, tão bom que irritou a direita impressa. Espero, porém, que esse pronunciamento não seja o primeiro e último. Pois, se o grande mérito do governo foi a decisão de governar para as grandes massas – decisão de que decorrem os ganhos na economia – são tímidas as conquistas políticas e ainda mais tímida a disposição do governo de enfrentar o debate político, esperando que por ele falem os movimentos sociais, desarticulados e esvaziados, exatamente pelo exílio da política.
Ilustra essa inapetência política a forma como foi anunciada a queda dos juros pela qual clamavam sindicatos, empresários, a sociedade e a boa política (jamais nos esqueçamos dos discursos de José Alencar), apresentada que foi como mera medida econômica!
Ora, a queda dos juros foi decisão política da presidente, para a obediência da tecnoburocracia econômico-financeira e da banca, como foi sua decisão, política presidencial, determinar a correção no câmbio, o aumento do crédito pessoal e cutucar, com a ação dos bancos estatais, a banca refratária.
O governo, acossado pela crise de 2005, optou pela composição a mais ampla possível – elástica tanto do ponto de vista do espectro ideológico quanto do padrão ético – abrigando sob suas asas desde a esquerda (PSB, PT, PCdoB e PDT) a partidos como o PP de Maluf, o PTB de Roberto Jefferson e as armadilhas dos soi-disant evangélicos, enfim, uma malta que tem sua grande homenagem no velho e notório PMDB. A contra-prestação veio em termos, pois, se a governabilidade foi assegurada (mas não só como efeito dessa composição), a maioria no Congresso, hoje como ontem, é instável e rentista, sempre sujeita que é ao toma lá – dá cá.
De outra parte, essa geleia, informe e contraditória política e ideologicamente, privou o governo da ação das massas, que lhe são favoráveis, desmobilizou os sindicatos e não ensejou o surgimento de movimentos sociais e culturais capazes de trazer para a política os novos valores e as novas aspirações. Isolando-se, o governo corre o risco de imolar-se nas teias das transações da pequena política, a rainha do Parlamento de hoje, deixando a política para os ‘outros’.
Tal privação talvez explique a resistência de nossos governos em enfrentar a necessária reforma do Estado, que só nós podemos patrocinar, democratizando-o e descondicionando-o da destinação neoliberal para a qual foi moldado. Intocado, permanecerá o Estado de ontem herdado do tatcherismo e da razzia dos dois Fernandos: anti-povo, anti-nacional, o Estado da banca e dos privilégios, o Estado privatizado pelos interesses do capital, uma estrutura, portanto, que resiste à modernidade, à supremacia dos interesses nacionais e das grandes massas, alienado funcional e ideologicamente.
Ao não politizar seus avanços e conquistas, o governo de centro-esquerda renuncia à formulação de um corpus ideológico que daria significado e permanência às conquistas alcançadas, a melhor maneira de garantir no futuro a sobrevivência dos avanços de hoje.
No nosso silêncio fala a direita.
O povo, que apoia o governo que o beneficia, é alvo de uma guerra ideológica sistemática levada a cabo pelos grandes meios de comunicação de massa, ideologizados, partidarizados, reacionários. Trata-se, porém, de guerra sem conflito, pois um só exército vomita fogo. Este é o preço da inércia dos partidos, da inércia do que ainda resta de esquerda, esquecida de que, até para ocupar caixinhas no organograma do governo, é indispensável travar a luta política. Sem ela, ou perdemos o governo ou dele seremos apeados.
Veremos o que virá.