31 janeiro 2011

Í N D I C E

O QUE HÁ PARA LER


Depois de uma semana de "férias", está de volta o Blog do Anacleto com postagens que vou aqui destacar:

Terrorismo financeiro - Delfim Netto - Trata, o título diz tudo, do "jogo" de interesses escusos envolvendo
a economia mundial de modo geral e a do Brasil, em particular. Aqui no Brasil, o que vemos são "autoproclamados intelectuais insistindo em desmerecer os êxitos do governo e disseminar desconfiança. E ganhar
com a alta dos juros". Palavras do professor.

Dois artigos que se relacionam: "O estado das universades brasileiras",de Maurízio Ferrante, e "Nostalgia do trabalho", de Thomaz Wood Jr., onde o trabalho, a educação, o empreendedorismo e as necessidades
de profissionais capacitados são analisados. No caso de Thomaz Wood Jr., com certo humor.

O grande jogo de Barack Obama e O Egito a caminho da revolução, de José Luís Fiori e Reginaldo Nasser, respectivamente, nos faz entender um pouco o que está acontecendo no tabuleiro de xadrez dapolítica internacional, notadamente no Oriente Médio, cujo caldeirão está fervendo.

Por fim, leiam Mino Carta.É sempre bom ler seus escritos. Sobre qualquer assunto.

Lembro que o que coloco pra leitura dos seguidores e leitores visitantes, visa dar um ângulo diferente doque nós lemos, vimos e ouvimos nos nossos veículos de comunicação. É para refletir.

Boa leitura!


N O T A S

- Treze milhões de dólares foram bloqueados pela Justiça suíça em contas da família do deputado federal Paulo Maluf (PP-SP) naquele país. (Fonte: Revista CartaCapital, edição 630)

- 13,3o C foi a temperatura média da Terra em 2010, a mais alta da história registrada. A média do século XX foi 12,7oC. (Fonte: idem)

- Apertem os cintos. As companhias aéreas brasileiras TAM e Gol ficaram nos últimos lugares de um
ranking de segurança divulgado pelo instituto alemão Jet Airliner Crash Data Evaluation Center (Jacdec), divulgado anualmente pela revista Aero International. Das 60 empresas de aviação civil avaliadas em todo o mundo, a TAM ocupa a última posição e a Gol, a antepenúltima (58o lugar), à
frente apenas da rival brasileira e da China Airlines. O ranking leva em conta o número de acidentes, as
mortes registradas, as avarias sofridas pelas aeronaves e a quantidade de passageiros transportados por
quilômetro voado nos últimos 30 anos. (Fonte: Revista CartaCapital, edição 631



PENSAMENTO SECULAR

"O que é comum à maioria dos indivíduos recebe o mínimo cuidado. Cada um pensa especificamente em si mesmo e quase nada no interesse comum." - Aristóteles - Política


                

O fantasma fardado e outras histórias - Por Mino Carta

A presidenta Dilma Rousseff parte dia 31 para uma visita a Buenos Aires e está previsto seu encontro com as “mães da Plaza de Mayo”, as valentes cidadãs argentinas cujos filhos foram assassinados ou desapareceram durante a ditadura. Hoje elas frequentam a Casa Rosada, recebidas pela presidenta Cristina Kirchner, em um país que puniu os algozes, a começar pelos generais ditadores.
Há quem diga e até escreva que Dilma se expõe ao risco de uma “saia-justa” (não aprecio a enésima frase feita frequentada pelos nossos perdigueiros da informação, mas a leio e reproduzo) ao encontrar as mães da praça. Quem fala, ou escreve, talvez funcione como porta-voz de ambientes fardados. Ocorre, porém, que a reunião foi solicitada pela própria presidenta do Brasil, e ela sabe o que faz.
No discurso de posse, Dilma mostrou-se orgulhosa do seu passado de guerrilheira e homenageou os companheiros mortos na luta. Conta com o aplauso de CartaCapital. Foi o primeiro sinal de um propósito claro do novo governo: aprofundar o debate em torno das gravíssimas ofensas aos Direitos Humanos cometidas ao longo dos nossos anos de chumbo. O encontro de Buenos Aires confirma e sublinha a linha definida pela presidenta, a bem da memória do País.
Cada terra tem suas características, peculiaridades, tradições. O Brasil não é a Argentina. Ambos foram colônias. Nós padecemos, contudo, três séculos de escravidão. A independência não veio com a rebelião contra a metrópole e sim graças aos humores contingentes de um jovem príncipe brigado com a família. A república foi proclamada pelos generais. A resistência e a luta armada na Argentina tiveram uma participação bem maior do que se deu no Brasil, e nem por isso o terror de Estado deixou de ser menos feroz aqui do que no Prata.
Já li mais de uma vez comparações entre o número de mortos e de desaparecidos brasileiros e argentinos, de sorte a justificar que a nossa foi ditabranda. Bastaria um único assassinado. A violência, de todo modo, foi a mesma, sem contar que os nossos torturadores deram aulas aos colegas de todo o Cone Sul, habilitados por sua extraordinária competência. Se a repressão verde-oliva numericamente matou, seviciou e perseguiu menos que a argentina foi porque entendeu poder parar por aí.
Fernando Henrique Cardoso disse na terça-feira 25 ao Estadão ser favorável à abertura dos arquivos da ditadura. Surpresa. Foi ele, antes de deixar a Presidência, quem referendou a proposta do general Alberto Cardoso, que comandava seu gabinete da Segurança Institucional, de manter indevassável a rica documentação por 50 anos. No elegante português que o distingue, FHC agora declara: “Aquilo ocorreu no meu último dia de governo e alguém colocou um papel para eu assinar lá”. Deu para entender que alguém pretendia enganá-lo e que o presidente assinava sem ler. Resta o fato de que, ao chegar ao poder, o príncipe dos sociólogos recomendou: “Esqueçam o que eu disse”. Dilma teve um comportamento de outra dignidade. E não há como duvidar que saberá dar os passos certos na realização da Comissão da Verdade.
Certos significa também cautelosos, sempre que necessário. E sem o receio da “saia-justa”. Adequados a tradições que, infelizmente, ainda nos perseguem. Colonização predatória, escravidão etc. etc. As desgraças do Brasil. E mais, daninha além da conta, o golpe de 64 a provar no País a presença insuportável de um exército de ocupação, pronto a executar os planos dos Estados Unidos com a inestimável colaboração da CIA e a servir às conveniências dos titulares do privilégio e seus aspirantes. Os marchadores com Deus e pela liberdade. Que Deus e que liberdade é simples esclarecer.
O fantasma brasileiro é fardado e não há cidadão graúdo que não o tema, e também muitos miúdos. Todas as desculpas valem, na hora em que se presume seu iminente comparecimento, para, de antemão, cancelar o debate ou descartar as soluções destinadas a provocá-lo. Nada disso é digno de um país em ascensão e de democracia conquistada. Carta-Capital acredita que a presidenta saberá exorcizar o fantasma sem precipitar conflitos. Saias-justas, se quiserem.
Um leitor escreve diretamente para Wálter Fanganiello Maierovitch. Lamenta a posição dele e de CartaCapital a favor da extradição de Cesare Battisti. Com urbanidade, felizmente. Enaltece a figura de Tarso Genro, louva a decisão que precipitou o caso e cita, para demonstrar seu teo-rema, um livro intitulado Terrorismo e Criminalidade Política, em que o falecido Heleno Fragoso, professor universitário e célebre criminalista carioca, se refere às inúmeras leis de exceção promulgadas na Itália durante os anos de chumbo. Nada disso também é digno do Brasil.
Fragoso não é o único entre os professores brasileiros que ignoram a história recente com toda a solenidade condizente com suas becas. A Itália dos anos 70, entregue ao comando da operação ao general Alberto Dalla Chiesa, venceu o terrorismo sem recurso a leis de exceção. Houve sim leis de emergência, que um Fragoso não poderia confundir com aquelas. Na semana passada publicamos uma entrevista do filho de Dalla Chiesa, que fez menção a outras leis aprovadas illo tempore, entre elas a redução a 36 horas da jornada de trabalho por obra da poderosa atuação do Partido Comunista e dos sindicatos, e a descriminalização do aborto, que aqui é quimera.
Nas eleições políticas de 1976, o PDC teve 36% dos votos e o PCI 34%, enquanto os pleitos administrativos davam aos comunistas a maioria das prefeituras. A  Itália dos anos 70, contudo, não era somente de Aldo Moro e Enrico Berlinguer, mas também de primorosa cultura, representada por figuras como Norberto Bobbio, Italo Calvino, Pasolini, Sciascia, Fellini, De Sica, Montale, Visconti e assim por diante. Não bastaria esta página para nomear a todos, e ninguém era de direita. Um importante colaborador de Berlinguer, Giorgio Napolitano, atual presidente da República italiana, enviou uma carta tocante à presidenta Dilma. Ele renova os cumprimentos pela eleição, mas mira no caso Battisti.
“Não são aceitáveis distorções, negações ou leituras românticas de crimes de sangue”, escreve Napolitano. A negativa à extradição, acentua “significa motivo de desilusão e amargura para a Itália”. “Não foi plenamente compreendida – prossegue – a necessidade de justiça experimentada por meu país e pelos familiares das vítimas de brutais e injustificados ataques armados, bem como dos feridos por aqueles ataques, sobrevividos às duras penas.” E ao cabo lembra que o terrorismo foi derrotado “dentro das regras do Estado de Direito”.
O Brasil no caso não deve satisfações ao governo italiano, o atual, aliás, o pior desde o imediato pós- guerra, e sim ao Estado, que o presidente da República representa. Talvez seja igual a pregar no deserto recomendar uma boa pesquisa sobre os anos de chumbo italianos a políticos, magistrados, jornalistas, irados cidadãos atolados em uma patética patriotada, indigna do país que o Brasil merece ser. Isento o trabalho, aconselhamos, da singular influência da hipocrisia francesa.
Falo deste nosso atual país onde ainda se verificam cenas do faroeste. Na sexta-feira 21, o caminhão que carregava para o Rio o reparte de CartaCapital foi assaltado ao longo da Dutra. Os assaltantes não eram ávidos de boa leitura: a carga não tinha para eles a menor serventia, queriam era o próprio caminhão. Renderam e aprisionaram o motorista, ficaram com o veículo, imediatamente remetido para outro canto do País.
A última edição da revista não circulou no Rio. Na noite da mesma sexta tentamos reunir um número suficiente de exemplares para reabastecer as bancas cariocas. Infelizmente não havia sobras, na manhã de sábado todos os repartes tinham sido distribuídos. Pelo gravíssimo percalço pedimos desculpas muito sentidas aos leitores do Rio. Com uma derradeira observação. Ao recordar os assaltos às diligências dos filmes western, murmurei para meus espantados botões: a presença de bandos armados no trajeto da mais importante rodovia do País não é digna do Brasil que queremos. Os botões me acharam comedido.

TERRORISMO FINANCEIRO

Na medida em que se consolidam os dados sobre o comportamento de nossa economia em 2010, e se divulgam os números relativos às demais economias, torna-se cada vez mais claro que o Brasil soube enfrentar com muito mais competência os problemas da crise financeira nos últimos três anos do que a grande maioria dos paí-ses, notadamente os mais desenvolvidos.
Levantamentos recentes mostram que o mundo está longe de poder “fechar o balanço” da tragédia social representada pelo fato de que 30 milhões de trabalhadores perderam seus empregos e que a pobreza relativa voltou a níveis indecentes, como não se viam desde os anos 30 do século XX. Hoje já se contabiliza a perda impressionante de 5% do PIB mundial nesses três últimos anos, um recuo inimaginável até se entender a profundidade da patifaria que dominou os mercados financeiros na primeira década deste novo século.
Uma característica particularmente dramática em toda essa crise é que, mesmo nas economias que registram algum tipo de reativação nos meses finais de 2010, os índices de emprego não reagem ou se recuperam muito pouco. Nos Estados Unidos, por exemplo, o nível de desemprego se mantém muito próximo dos 10% da força de trabalho, isso apesar dos sinais de retomada do crescimento do PIB acima de 2%, e até uma expectativa de atingir 3% em 2011.
Nos países da Comunidade Europeia, com exceção da Alemanha, cuja economia retomou um ritmo mais vigoroso de crescimento em 2010, e da França, com expectativas mais moderadas, mas com previsão de maior crescimento em 2011, o panorama geral é desanimador. Sem contar as dificuldades que se renovam, mostradas a cada tentativa de previsão relativa às economias da Grécia, Irlanda, Espanha e Portugal, as mais citadas.
Perfil totalmente diferente é o do Brasil, que mostra melhores resultados à medida que os números relativos ao PIB e aos níveis de emprego em 2010 vão sendo fechados: no setor trabalho, o ano vai registrar números finais com uma taxa de desemprego menor que 5% (na verdade a estimativa é de 4,9%, nas seis principais capitais). Significa que o Brasil ultrapassou a crise mundial, chegando a seu final com uma economia de pleno emprego e ainda mantendo no último semestre do ano a tendência de continuar evoluindo positivamente, com o aumento da oferta de postos de trabalho. Em termos mundiais, é o país que melhor derrubou as taxas de desemprego, num conjunto selecionado das 20 mais importantes economias desenvolvidas ou emergentes.
Uma comparação simples mostra como o problema do emprego caminhou nos EUA e no Brasil, com o agravamento da crise em 2008: entre janeiro e junho daquele ano a taxa de desemprego média americana era 5,2%, e subiu para 9,7% no primeiro semestre de 2010; o desemprego brasileiro, que era 8,2% naquele primeiro período, reduziu-se para 7,3% no segundo e continuou caindo até o fim do ano. É possível  identificar dois caminhos: Obama não conseguiu “fazer a cabeça” do consumidor americano nem reconquistar a confiança do setor produtivo, submetido ao jugo do poderoso sistema financeiro. Aqui, o nosso Lula sacou rápido o problema e, praticamente numa única e inspirada mensagem, convenceu o seu povo (trabalhadores e empresários da produção) de que a solução estava neles próprios: comprem e garantam seus empregos.
Pleno emprego, crescimento do PIB muito próximo de 8% em 2010, uma política econômica e social que perseguiu de modo crível o objetivo de dar igualdade de oportunidades a todos e melhorar a distribuição da renda entre as pessoas e regiões e mais a execução de programas de envergadura como o Bolsa Família, Luz para Todos e Minha Casa Minha Vida são marcas inegáveis do sucesso do metalúrgico de São Bernardo, um improvável estadista que se mostrou um líder mundial de real estatura.
Quem assina embaixo é o povo brasileiro, ao final desses oito anos de consumo em alta e redescoberta da autoestima: 87% declaram seu apoio ao presidente, 80% aprovam o seu governo e mais de 60% revelam suas esperanças na administração da presidenta que ele ajudou a eleger. Apesar disso, o povo é obrigado a conviver com o bombardeio meio terrorista de sociólogos, economistas e todo tipo de analistas financeiros que se julgam intelectuais de grande sabedoria e insistem em ocupar espaços na mídia para desmerecer os êxitos do antigo governo e disseminar a descrença e a desconfiança sobre o novo.
Não ganham, obviamente, a opinião popular, mas com certeza realizam alguns trocados na defesa do aumento da taxa de juros, objetivo principal que mal conseguem disfarçar…

NOSTALGIA DO TRABALHO

Ao longo dos séculos, o trabalho passou por várias mutações. A Grécia Antiga não o tinha em alta conta: seus luminares o consideravam um inimigo da virtude, a brutalizar a mente dos homens e inutilizá-los para as atividades mais nobres: a política e a filosofia. O Renascimento recuperou o valor do trabalho e elegeu seu herói: o mestre artesão, capaz de dele extrair sustento e arte.
No entanto, foi com a Revolução Industrial que o trabalho atingiu o seu apogeu, sendo celebrado como motor da modernização e da transformação do mundo. Hoje, a nossa sociedade tem outros deuses: cultua mais o consumo do que a produção, valoriza mais a imagem do que o fato, celebra mais o cargo do que o batente.
Significativamente, surgem aqui e acolá nostálgicos da velha ordem. Notem, por exemplo, a proliferação de profissionais bem-sucedidos com “hobbies sérios” ou “atividades paralelas”. Parece estar crescendo o número de médicos pintores, financistas carpinteiros e engenheiros moveleiros. Como se não bastassem as longas e estressantes jornadas de trabalho, muitos profissionais mostram-se ávidos em localizar espaço na agenda para desenvolver e exercitar suas competências manuais. Sintomático!
O norte-americano Matthew B. Crawford seguiu os passos do sucesso ditados pela nova sociedade da informação: obteve um Ph.D. na Universidade de Chicago e conseguiu emprego em um think tank em Washington, D.C. Entretanto, não demorou para se desiludir com a manipulação de ideias e se frustrar com o restrito uso de seu intelecto. Então, retornou algumas décadas na tecnologia e dois séculos na organização do trabalho: foi montar uma oficina de reparos de motocicletas antigas. No livro Shop Class as Soulcraft An Inquiry Into the Value of Work (The Penguin Press, 2009), Crawford narra sua saga e defende seus argumentos.
O autor parte da constatação de que uma mudança substantiva está em curso: o que antes fazíamos, agora compramos pronto; o que antes consertávamos, agora substituímos. Estamos, com isso, perdendo nossas habilidades manuais e nos tornando mais passivos e dependentes. Pior: estamos também perdendo alguns fatores intrínsecos de satisfação do trabalho.
Para Crawford, o retorno ao artesanato, como mecânico de motocicletas, devolveu-lhe o verdadeiro sentido do trabalho. Primeiro, porque o resultado é claramente visível e reconhecido pelo cliente. Segundo, porque o trabalho envolve operações cognitivas complexas que dependem de conhecimento prático e experiência acumulada. Terceiro, porque sua posição lhe confere um lugar na comunidade.
O autor argumenta que quem trabalha mais próximo dos fenômenos naturais consegue estabelecer correlações e princípios mais coerentes, enquanto quem lida permanentemente com abstrações e ignora a matéria-prima da realidade tende a gerar dogmas com base em poucas observações. Para o autor, o conserto de motocicletas envolve raciocínio mais amplo e complexo do que o trabalho no think tank, o contrário do que apontaria o senso comum.
Mas qual a raiz da desvalorização do trabalho artesanal? Segundo os manuais de gestão, o ponto de inflexão deu-se pela consolidação da linha de produção fordista e pela disseminação dos princípios de administração científica, que ocorreram no início do século XX. Esses fenômenos gêmeos aumentaram significativamente a produtividade, reduziram custos de manufatura e criaram as bases para a sociedade de produção e consumo em massa. Como efeito colateral, eles marginalizaram o trabalho artesanal. A separação entre o planejamento do trabalho (realizado por especialistas e gerentes) e a execução do trabalho (realizado mecanicamente por operários) destruiu algumas características que proviam satisfação intrínseca ao trabalho.
Esse movimento, que começou na indústria, avança agora firme no setor de serviços. Os bancos, as seguradoras e os hospitais têm processos que estão sendo cientificamente racionalizados, como se fossem linhas de produção. A separação que ocorreu com o trabalho industrial está agora ocorrendo com o trabalho no setor de serviços: enquanto os gestores se atolam em reuniões, PowerPoints e ­e-mails, o trabalho nos porões das centrais de atendimento e nos centros de serviços sofre forte padronização e rotinização.
Crawford é claro em sua valorização dos laços morais que ligam os trabalhadores ao seu trabalho e os empreendedores aos seus consumidores, laços que não deveriam ser tão prontamente sacrificados no altar da eficiência e do crescimento. O esfacelamento desses laços desencoraja a prudência e pode provocar efeitos nefastos. Não faltam recalls de produtos ou crises financeiras para ilustrar o argumento.


Thomaz Wood Jr.


(Transcrito do site http://www.cartacapital.com.br/)

O grande jogo de Barack Obama

Nos últimos dois meses de 2010, o presidente Barack Obama tomou decisões e obteve vitórias internacionais que poderão mudar radicalmente a geopolítica mundial do século XXI. Graças à intervenção direta do presidente americano, a reunião da OTAN, em Lisboa, no mês de novembro, conseguiu aprovar um “Novo Conceito Estratégico” que define as diretrizes da organização para os próximos dez anos, com a previsão de retirada de suas tropas do Afeganistão, até 2014, e com decisão de instalar um novo sistema de defesa antimísseis da Europa e dos EUA, com a possível inclusão da Rússia e da Turquia, apesar da resistência do governo turco a cooperar com os países que estão obstaculizando sua entrada na UE.

Esta vitória parcial do governo Obama, se somou à aprovação pelo Congresso americano, em dezembro, do acordo bilateral de controle de armas atômicas, que havia assinado com o presidente Dmitry Medvedev, no mês de abril, e que foi ratificado pelo parlamento russo, poucos dias depois de sua aprovação pelo Senado dos EUA. Estas iniciativas enterram definitivamente o projeto Bush de instalação de um escudo balístico na fronteira ocidental da Rússia, e aprofundam as relações entre as duas maiores potências atômicas mundiais, desautorizando a mobilização anti-russa dos países da Europa Central, promovida e liderada atualmente, pela Polônia e pela Suécia.

Neste mesmo período, no Oriente Médio, o presidente Obama aumentou sua pressão contrária à instalação de novas colônias israelenses em território palestino, e diminuiu a intensidade retórica de sua disputa atômica com o Irã, sinalizando de forma discreta, a disposição para um novo tipo de acomodação regional. Como ficou visível, com o acordo político que permitiu a formação do novo governo iraquiano do premier Nuri al Maliki, com a intervenção do Irã e com o apoio dos EUA, apesar de que Maliki não fosse o candidato preferido dos norte-americanos. E provavelmente, a crise atual do governo libanês só terá uma solução pacífica e duradoura, se envolver, de novo, um ajuste de posições e interesses entre os EUA e o Irã, mesmo que ele seja informal e não declarado.

Estas vitórias e decisões do governo Obama, estão apontando para uma nova política internacional dos EUA, de aproximação com a Rússia, e de acomodação negociada das crises sobrepostas, do Oriente Médio e da Ásia Central. No caso da aproximação da Rússia, os EUA contam com o apoio da Alemanha, por cima das resistências e das divergências intermináveis da UE, e se ela tiver sucesso, deverá redesenhar o mapa geopolítico da Europa moderna. Dentro da nova aliança, a Rússia colaboraria com a estabilização da Ásia Central, e ocuparia um lugar de destaque em uma negociação silenciosa – que já está em curso – envolvendo o Irã e a Turquia, por cima das alianças tradicionais dos EUA, dentro da região, com vistas a construção de um novo equilíbrio de poder, no Oriente Médio. Em compensação, a Rússia teria o apoio norte-americano para retomar sua “zona de influencia”, e reconstruir sua hegemonia nos territórios perdidos, depois da Guerra Fria, sem as armas, e pelo caminho do mercado e das pressões diplomáticas, como já vem ocorrendo neste momento.

Esta nova estratégia é ousada e de alto risco, mas não é original. No auge do seu poder, logo depois da II Guerra Mundial, os EUA perderam o controle da Europa Central para a URSS, em seguida perderam o controle da China, para a revolução comunista de Mao Tse Tung, e foram obrigados à um armistício inglório, na Guerra da Coréia. Como conseqüência, os EUA tiveram que mudar sua estratégia do imediato pós-guerra, e transformaram a Alemanha e o Japão, nas peças econômicas centrais da aliança em que se sustentou a sua posição durante a Guerra Fria. Duas décadas depois, em plena época de ouro do “capitalismo keynesiano”, os EUA voltaram a ser derrotados no Vietnã, Laos e Cambodja, e perderam o controle militar do sudeste asiático. E de novo mudaram sua política internacional, construindo uma aliança estratégica com a China, que dividiu o mundo socialista, fragilizou a URSS, e redesenhou a geopolítica e o capitalismo do final do século XX.

Deste ponto vista, o grande jogo proposto pelo governo Obama, para o mundo pós-Iraque e pós-Afeganistão, aponta na mesma direção da década de 1970, só que com o sinal trocado. Agora se trata de uma proposta de aliança estratégica com a Rússia, que bloquearia a expansão chinesa na Ásia, mas que também envolverá algum tipo de apoio ou “convite” ao desenvolvimento do capitalismo russo, bloqueado pelo seu excessivo viés “primário-exportadora”.

Roosevelt concebeu uma aliança parecida com a URSS, em 1945, mas sua proposta foi atropelada pela sua morte, e pela estratégia desenhada por Churchill e Truman, que levou à Guerra Fria. Agora de novo, o projeto de Barack Obama pode revolucionar a geopolítica mundial, mas também pode ser atropelado – entre outras coisas - pelas mudanças presidenciais que ocorrerão nos EUA e na Rússia, no ano de 2012.



(Transcrito do site http://www.cartamaior.com.br/ )

O Egito a caminho da revolução. O que fazer?

As mobilizações populares na Tunísia, Egito, Iêmen e em outros lugares são um alerta para o chamado mundo desenvolvido e seria uma grande avanço para a democracia se esta região que permanece imersa na violência, em fraudes eleitorais e miséria crescente da população recebesse o devido apoio internacional nesse momento.

O porta-voz da Casa Branca, Robert Gibbs, disse que os EUA poderão revisar a ajuda ao Egito. O presidente Obama solicitou às autoridades egípcias que evitem o uso de qualquer tipo de violência contra manifestantes pacíficos, alertando que " aqueles que protestam nas ruas têm uma responsabilidade de expressar-se pacificamente. Já a chanceler alemã, Angela Merkel, afirmou que a “estabilidade do país é muito importante, mas não a qualquer preço”. O secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, pediu que "os líderes do Egito escutem as preocupações legítimas e os desejos de seus cidadãos”. O primeiro ministro britânico David Cameron declarou: “Eu acho que precisamos de reformas. Quero dizer que nós apoiamos o progresso e o reforço da democracia”.

Como avaliar a atitude desses líderes mundiais? Patética, cínica, hipócrita, irresponsável? Talvez devêssemos recorrer a um grande pensador liberal do século XIX, Aléxis de Tocqueville, e ouví-lo a respeito dos períodos revolucionários na França. Tocqueville alertava para o fato de líderes, que adquiriram experiência em lidar com a política em ambiente de ausência de liberdade, quando se encontraram diante de uma revolução que chegou “inesperadamente”, se assemelhavam aos remadores de rio que, de repente, se vêem instados a navegar no meio do oceano. Os conhecimentos adquiridos em suas viagens por águas calmas vão proporcionar mais problemas do que ajuda nessa aventura, e na maioria das vezes exibem mais confusão e incerteza do que os próprios passageiros que supostamente deveriam conduzir.

Já havia sinais reveladores dessas turbulências, mas o Ocidente preferia se preocupar com burcas, minaretes e terrorismo. Um relatório do Banco Mundial, publicado em 2009, informava que os países árabes importavam cerca de 60% dos alimentos que consomem e já são os maiores importadores de cereais no mundo, dependendo de outros países para a sua segurança alimentar. A elevação dos preços nos mercados mundiais, desde 2008, já causou ondas de protestos em dezenas de países e milhões de desempregados e pobres nos países árabes, como foram os casos da Argélia , em 1988, e da Jordânia em 1989. Um exemplo mais recente, além da região árabe, é o Quirguistão onde um aumento da eletricidade e tarifas de celulares causaram manifestações com dezenas de mortos e milhares de feridos.

Aqueles que temem o crescimento do “islamismo radical” como fator de instabilidade nessa região, deveriam estar mais atentos em relação às “ditaduras amistosas” que, na verdade, são as principais responsáveis pela insegurança no mundo. Desemprego em massa, preços dos alimentos e repressão política é uma combinação explosiva mais perigosa do que os homens bomba.

A demografia no mundo árabe é também um grande problema. A população cresceu cinco vezes durante o século XX, e o crescimento continua a uma média anual de 2,3%. A população do Egito está em torno de 80 milhões. Em 2050 (de acordo com projeções da ONU) deverá ter 121 milhões. A população da Argélia irá crescer de 33 milhões em 2007 para 49 milhões em 2050; a do Iêmen de 22 a 58 milhões. Isso significa que mais empregos precisam ser criados - e mais alimentos importados, ou aumentar a capacidade para produzir mais. No caso do Egito dois terços da população são jovens abaixo de 30 anos, dos quais 90% estão desempregados.

Baseada no turismo, na agricultura e na exportação de petróleo e algodão, a economia é incapaz de sustentar a taxa de crescimento demográfico. 40% da população vive com menos de US$ 2 (R$ 3,30) por dia, o país está na 101ª posição no IDH (Índice de Desenvolvimento Humano)

De certa forma a auto-imolação do jovem tunisiano, Mohamad Bouazizi, que deflagrou a onda de protestos na Tunisia revela, no nível individual, aquilo que está acontecendo nas sociedades daquela região como um todo. Ele não se rebelou, apenas porque não encontrou trabalho que refletisse suas ambições profissionais, mas sim quando um oficial da polícia confiscou as frutas e legumes que estava vendendo sem autorização. Quando foi fazer uma reclamação para buscar justiça, sua demanda foi rejeitada.

Provavelmente foi este sentimento de injustiça que levou Mohamed Bouazizi e milhares de pessoas às ruas, empenhados em quebrar o ciclo da miséria e opressão.

Talvez seja mais confortável para a chamada comunidade internacional lidar com um mundo árabe dividido entre nacionalistas, relativamente seculares, de um lado e islamismo radical, de outro, do que um mundo mais complexo, com problemas econômicos, sociais e políticos que conta com sua cumplicidade.

(*) Professor de Relações Internacionais da PUC-SP



(Transcrito do site http://www.cartamaior.com.br/ )

O ESTADO DAS UNIVERSIDADES BRASILEIRAS

Depoimento de um experiente leitor de quadros de avisos

Uma fonte de informações interessantes do estado atual da academia é representada pelos quadros de avisos de universidades. Entre anúncios tipo - aluga-se vaga em república feminina, vendem-se bicicleta com 12 marchas, geladeira semi-nova e um Gol 1998 em bom estado - aparecem chamadas vagamente relacionadas com estudo e carreira; por exemplo, avisos de palestras e cursos.

Um tema que vem aparecendo mais e mais nos quadros de aviso, mas também em jornais e revistas que de vez em quando se ocupam de educação e afins, é o empreendedorismo. Assim mesmo: com dois ‘és’. Todos nós sabemos do que se trata: uma atitude independente e corajosa, que pressupõe espírito de iniciativa, destemor ao risco e, por fim, conhecimento técnico, atitudes “manageriais” e um bocado de ambição.

Com minha longa experiência de quadros de aviso de universidades posso atestar que nossa juventude está sendo bombardeada por mensagens que endeusam a tal atitude. Os recipientes são estudantes das engenharias e ciências da computação, como também físicos, químicos e biólogos. Não consigo me livrar da impressão de que as mensagens carreguem a silenciosa premissa de que seguir uma carreira acadêmica ou fazer carreira, primeiro em chão de fábrica e depois em atividades mais estratégicas, seja próprio dos menos capazes. Talvez esteja sendo injusto, mas é o que implica a adjetivação utilizada, que recobre de méritos o engenheiro (ou químico, ou físico...) empreendedor, e lhe aponta como inevitável o sucesso de sua pequena empresa, invariavelmente de base científica e com grande carga de inovação.

Em torno dessa idéia, a partir de 1984 começam a nascer os parques tecnológicos, que hoje no Brasil são mais de duzentos (na minha cidade tem dois), alimentados por diversos tipos de financiamento; CNPq, Secretaria de Ciência e Tecnologia dos Estados, etc., e cujo desempenho – perdas e ganhos – nunca foi apresentado aos pagadores de imposto. Notável é a ausência quase que completa de capital de risco provindo de grandes empresas ou mesmo de investidores pessoas físicas.

Sabemos que o tempo presente é a era dos serviços, natural sucessora da era da indústria, e o empreendedorismo, alardeado como a vocação dos mais capazes, passou a formar um mercado per se, sobre o qual se pode ganhar dinheiro. Isso levou à proliferação de parques tecnológicos, incubadeiras de novas empresas e entes do tipo, que logicamente necessitam de presidentes, diretores e administradores, perpetuando-se assim o ciclo do existo porque existo e quero continuar existindo. Das empresas amparadas por esses Parques e incubadeiras sabe-se pouco, e as perguntas que se colocam são: qual a taxa de mortalidade – Suíça ou de terceiro mundo? Qual o peso econômico das empresas? Qual o seu nível tecnológico médio?

Lembro-me de quando visitei a Feira de um desses Parques, e surpreso me deparei com o estande de uma (hoje falida) fábrica de tratores exibindo o seu já então vetusto produto. Naturalmente há exceções, e muitas, e pontos de vista diferentes, mas a intenção deste artigo não é tanto discutir os prós e contras do empreendedorismo no plano econômico ou no de formador de estruturas tecnológicas consistentes, como de levantar questões sobre o efeito que esse pesadissimo marketing da carreira possa ter sobre os estudantes.

Os apelos ao empreendedorismo deixam de mencionar que uma empresa de base tecnológica depende do aparecimento de uma idéia que não surge do ar, mas é pacientemente garimpada entre princípios científicos, experimentos e, principalmente, conhecimento de causa. Lembro que em uma eleição passada, o mote que acompanhava um dos candidatos era “deixe o homem trabalhar”. Eu adaptaria essa frase aos estudantes universitários (e secundaristas também): “deixem o estudante estudar em paz”. Sem o distrair continuamente com palestras de empreendedorismo, ou de como elaborar um curriculum vitae, escrever uma patente, e coisas do tipo. Tudo isso está sendo ministrado antes do tempo, e os que seguem essa sereia (porque é mais fácil ouvi-la do que espremer o cérebro sobre um texto de termodinâmica) acabam perdendo a oportunidade de se preparar melhor e fundamentar melhor suas idéias, que aí sim serão criativas.

A falta de engenheiros no Brasil é muito grande; formamos 30.000 profissionais por ano, pouco se comparado com a China – 400 mil; Índia – 250 mil, e Coréia do Sul – país pequenino com 50 milhões de habitantes que forma 80 mil engenheiros. A urgência é grande, e uma meta da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – órgão do MEC) é a evolução daqueles 30 mil para 40 mil nos próximos três anos. Esses números dão razão à CNI (Confederação Nacional da Indústria) que prevê um excesso de 150 mil vagas em setores técnicos.

Mas além da questão quantitativa, há a qualitativa: José Roberto Cardoso diretor da Escola Politécnica da USP faz notar que "... só um entre quatro engenheiros possui formação adequada...”. De fato, dependendo de como se contam há 1.087 cursos no país, dos quais a metade em escolas particulares, e uma olhada nas notas do ENADE dessa metade explica as palavras do professor.

Se ainda por cima desviamos antes do tempo um porcentual de estudantes desse mercado, e o distraímos com falsas e anti - tempo preocupações, não estamos colaborando muito com a solução dos problemas, estamos?

(*) Professor do Departamento de Engenharia de Materiais, na Universidade Federal de São Carlos.


(Transcrito do site http://www.cartamaior.com.br/ )

22 janeiro 2011

OS MALES DO SERRISMO

Marcos Coimbra (*)


Não há partidos ou movimentos políticos exclusivamente bons ou unicamente ruins, se os considerarmos em seu tempo e lugar. Na vida real das sociedades, eles são uma mistura de coisas boas e más, de acertos e erros (salvo, é claro, exceções como o nazismo).
Tudo é uma questão de proporção, do peso que o lado ruim tem em relação ao bom. São bons os movimentos políticos e os partidos (bem como as tendências que existem no interior de alguns), cuja atuação tende a ser mais positiva para o País, seus cidadãos e instituições. São os opostos aqueles que fazem o inverso, que agem, na maior parte das vezes, de maneira negativa.
Tome-se o serrismo, um fenômeno pequeno, do ponto de vista de sua inserção popular, mas relevante no plano político. Afinal, não se pode subestimar uma tendência tucana que conseguiu aprisionar o conjunto de seus correligionários, mesmo aqueles que não concordavam com ela (e que eram maioria), e os levou a uma aventura tão fadada ao insucesso quanto a recente candidatura presidencial do ex-governador José Serra. E que tem, além disso, tamanha super-representação na mídia, com simpatizantes espalhados nas redações de nossos maiores veículos.
Por menor que seja sua base social e inexpressiva sua bancada parlamentar, o serrismo existe. E atrapalha. Muito mais atrapalha que ajuda.
Neste começo de governo Dilma, recém-completada sua primeira quinzena, o serrismo já mostra o que é e como se comportará nos próximos anos. Os sinais são de que será um problema para todos, seja no governo, seja na própria oposição.
Vem da grande imprensa paulista (uma insuspeita fonte na matéria), a informação de que seus integrantes estão revoltados com a trégua que outras correntes do PSDB estariam dispostas a oferecer à presidenta. Em vez da “colaboração federativa” buscada pelos governadores tucanos e as bancadas afinadas com eles, os serristas querem “partir para o pau”.
O senador Aloysio Nunes (PSDB-SP), expoente máximo da tropa de elite serrista, dá o mote, ao afirmar que o PSDB deveria ser duro contra Dilma desde já, de forma a ser uma referência oposicionista no futuro. O pano de fundo do que propõe, percebe-se com facilidade, é posicionar o serrismo (de novo!) para a sucessão de Dilma.
Segundo as informações disponíveis, a primeira meta do grupo de José Serra (cujo tamanho, diga-se de passagem, é ignorado) é aproveitar-se da tragédia das chuvas na região serrana do Rio para golpear a presidenta, responsabilizando-a pela ocupação caótica de encostas e outras áreas de risco nas cidades atingidas. Para esses personagens, seria a incompetência de Dilma, à frente do PAC, a causa de tantas mortes e sofrimento. Ou seja, vão tentar vender a versão de que, se ela fosse melhor gerente, nada teria acontecido.
Em nossa permissiva cultura política, não há surpresa no oportunismo da proposta. Ninguém se espanta que alguém faça um jogo como esse, que queira tirar dividendos de uma catástrofe e que, para isso, torça fatos e procure­ enganar os incautos. Todos nos acostumamos com essa falta de seriedade.
Mas até os mais céticos ficam perplexos com o contraste entre o que dizem agora os serristas e o que foi a campanha que fizeram na eleição de 2010.
Ou será que ninguém ouviu José Serra se apresentar como “verdadeiro continuador” de Lula? Que não viu Serra evitar qualquer crítica ao ex-presidente, dizendo que concordava com ele e que nada mudaria em seu governo (a não ser aumentar o salário mínimo para 600 reais e conceder uma 13ª parcela do Bolsa Família aos beneficiários)?
Derrotado, o serrismo virou oposição intransigente, e quer levar os grupos vitoriosos de seu partido com ele. Enquanto esteve à frente do governo de São Paulo, buscou a boa convivência e a colaboração com o Planalto, avaliando que, ao agir dessa maneira, aumentava suas­ chances na sucessão de Lula. Agora que não tem escolha, se exime de qualquer compromisso e parte para o pau.
É pouco provável, no entanto, que consiga arrastar o restante do PSDB e os demais partidos de oposição para a radicalização anti-Dilma. No fundo, o serrismo apenas tenta preservar algum espaço em um cenário cada vez mais desfavorável para seus propósitos.
É só se tudo der errado, seja para a presidenta, seja para as novas forças oposicionistas, que o serrismo tem sobrevida. Sua aposta é o fracasso de todos.




UMA DECISÃO CONSERVADORA

A decisão tomada pelo Copom (Comitê de Política Monetária) em aumentar a taxa de juros não se trata simplesmente de discutir se aumentou em 1% ou 0,5% p.p., mas sim, compreender a política monetária implementada, ou seja, o pensamento ortodoxo está impregnado no Banco Central e do ponto de vista monetário, qual é seu ideário?
Para esses economistas, geralmente o produto real é dado pela sua oferta, a única variável determinada pela demanda é o nível de preços (inflação). A procura por bens e serviços é determinada pela quantidade de moeda (nível de crédito, taxa de juros), portanto, políticas monetárias expansionistas, ou seja, abundância de crédito e moeda no mercado afeta diretamente o nível geral de preços.
Nesse modelo, a demanda possui um papel totalmente passivo na determinação do produto. Neste sentido, a política monetária está mais preocupada com o lado monetário do que com qualquer outra variável real econômica, como salários, emprego, investimentos etc. Essa foi e está sendo a política do Banco Central nos últimos 16 anos.
Desde 1999 quando introduziu-se a política de metas de inflação, a vontade insana do Banco Central é atingir o centro da meta projetada, centro esse atingido uma única vez em 2000. Diversos estudos empíricos na teoria econômica concluíram que o regime de metas é efetivo na redução da inflação por motivos outros que não a taxa de juros.
Além disso, os países que adotaram o regime de metas observaram queda na volatilidade das taxas de crescimento econômico em relação aos que não adotaram. Assim como o objetivo último do regime de metas é o controle da inflação, o objetivo da política econômica deve ser o crescimento sustentado da renda. A estabilidade monetária não pode ser um fim em si mesmo, mas uma condição necessária ao crescimento com melhor distribuição de renda.
Com a elevação dos juros, a propensão de ampliar a entrada de capital externo principalmente em portfólio é enorme, portanto, a tendência de valorização do Real perante ao Dólar se manterá, por isso, as medidas adotadas, até o momento, para combater a sobrevalorização do câmbio tenderão a ser inócuas.
Uma das várias batalhas econômicas no governo da Presidenta Dilma Rousseff (PT) a primeira foi vencida pelo conservadorismo, o foco agora será outro; a política fiscal. O governo será pressionado ao ajuste fiscal, elevando seu superavit primário com o objetivo maior de manter a remuneração do capital financeiro nacional e internacional.
O governo vem economizando receitas de impostos para pagar juros, a alegação é de que o superavit primário, conseguido através de cortes de gastos na administração pública, mais o esforço de arrecadação serviriam para compensar, ao menos em parte, os encargos da dívida, evitando uma trajetória explosiva, entretanto, esse esforço não se verifica na prática.
Mas, se o ajuste primário não segura a expansão da dívida, por que cortar despesas que podem sacrificar programas importantes do Governo Federal? Isto na verdade tem a ver com a necessidade de ingresso de capitais, e a questão das expectativas dos investidores internacionais, que tomam a relação dívida pública/PIB como um importante indicador macroeconômico.
Na verdade, a economia fica na total dependência da análise dos organismos internacionais, que se baseiam fortemente nestes indicadores de curto prazo. Parece que o ajuste não tem fim.
No entanto, é preciso ter claro que a dívida mobiliária atrelada ao juro está transferindo recursos para os detentores de riqueza e que a redução de gastos públicos (projetos sociais, aposentadorias, salários de servidores) para pagar juros ao nível requerido tem limites sociais, nunca considerados pelos organismos internacionais.
Resta saber até quando é possível continuar apenas nesta via de ajuste, com o intuito central de gerar confiança aos investidores externos.

DO FUNDO DAS TREVAS

Nos últimos meses o Brasil passou a viver uma escalada do anacronismo que preocupa.

Lá, no fundo da história, revirado no ano passado pelo candidato José Serra nas eleições, estava o atraso, sereno como um pântano coberto pela intolerância e por preconceitos de toda natureza. Movido por uma ambição desmedida pelo poder, José Serra não teve o menor pudor em trazê-lo de volta à tona. Trouxe junto o que há de mais abominável no reino da política: o ódio de classe. Serra deu voz a setores que cultivam valores medievais, derrotados no processo de democratização do país, e proporcionou-lhes espaço para estúpida performance no cenário político nacional.

Alimentados por instituições religiosas, educacionais e políticas que não aceitam as diferenças, os preconceitos e o ódio de classe se espraiam pela internet e pelas ruas em ondas de intolerância, principalmente entre jovens ainda vulneráveis a apelos desses grupos, no vácuo da ausência de escolas laicas e democráticas. O atraso está por aí, vociferante, e pode até atacar cidadãos mortalmente, como já aconteceu.

Recentemente o líder da pregação pelo boicote à candidata Dilma Rousseff na campanha presidencial, o bispo de Guarulhos, dom Luiz Gonzaga Bergonzini, encampou nova mobilização que repercutirá na esfera política. Ele recolhe nas paróquias sob sua jurisdição assinaturas para um projeto de iniciativa popular que visa eliminar a permissão legal ao aborto nos casos de estupro e risco à vida da mãe. O movimento já conta com o respaldo de oito dioceses e foi referendado em reunião da Regional Sul-1 da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, que abrange as principais cidades de São Paulo.

A escalada de intolerância ganhou força com a articulação da campanha eleitoral de José Serra. Uma avalanche de mensagens acintosas inundou a internet naquele período, continua a alimentar o anacronismo e promove ações em várias localidades no país. Os atentados que estão ocorrendo são inadmissíveis.

Na Praça 11, no Rio de Janeiro, um monumento a Zumbi, líder do quilombo dos Palmares, erguido em 1986, amanheceu pichado com uma suástica nazista; a estudante do último ano de direito da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), Meire Rose Morais, sofreu ofensas racistas de uma colega de sala em uma lista de e-mails. Segundo ela, é comum os bolsistas negros do Prouni serem tratados de maneira preconceituosa.

Recentemente, jovens de classe média atacaram dois rapazes supostamente homossexuais em São Paulo com lâmpadas fluorescentes; uma jovem, também de classe média, atacou nordestinos em seu blog e acendeu o preconceito regional.

A Universidade Mackenzie divulgou uma nota contra a Lei da Homofobia, dizendo que “a lei interfere diretamente na liberdade e na missão das igrejas de todas as orientações de falarem, pregarem e ensinarem sobre a conduta e o comportamento ético de todos, inclusive dos homossexuais.” Segundo a nota, os direitos dos homossexuais não podem ser “privilégios de um grupo” sobre os demais direitos dos cidadãos. Essa nota é reveladora da dimensão da intolerância, baseada em moral religiosa, que se espalha pelas instituições em toda a sociedade.

O preconceito de classe também cresce e se manifesta em aeroportos e shoppings, contra as pessoas que melhoraram de vida e estão tendo dinheiro para viajar e consumir. O colunista Luiz Carlos Prates, do grupo RBS, afiliado à Globo, manifestou seu preconceito num dos programas de uma emissora catarinense do grupo, em novembro passado. Disse que a popularização do automóvel seria responsável pelo aumento dos acidentes de trânsito. "Hoje, qualquer miserável tem um carro. O sujeito jamais lê um livro, mora apertado em uma gaiola, que hoje chamam de apartamento. Não tem nenhuma qualidade de vida, mas tem um carro na garagem". Disse ele. Depois de 23 anos na emissora, Prates foi demitido. Talvez a demissão tenha sido causada pela reação de parte da sociedade a esse tipo de posição.

As melhorias na economia com inclusão social estão provocando uma nova acomodação de classes e revelando conflitos escamoteados na sociedade brasileira. Conflitos que me fizeram lembrar o que foi mostrado num programa da TV Globo, há alguns anos, (perdoem-me por não conseguir me lembrar dos detalhes, se não me engano, no Fantástico), sobre as diferenças entre a Zona Norte e a Zona Sul do Rio de Janeiro. A matéria mostrou o incômodo de pessoas de classe média de Ipanema, Leblon e Barra da Tijuca, em conviver com pessoas da Zona Norte nas praias cariocas. Guardadas as devidas exceções, no Rio as pessoas da Zona Norte ou moradores dos morros, costumam ser chamadas por alguns cariocas, de “suburbanos”, “farofeiros” e “paraíbas”. Assim como alguns paulistanos costumam chamar de “baianos” os nordestinos que não pertencem às classes média e média alta.

Uma moça da Zona Sul ao ser entrevistada disse ao repórter, em tom de revolta, que os cariocas da Zona Norte e dos morros não sabiam se comportar numa praia e que uma solução para evitar o incômodo, seria cercar as praias da Zona Sul. Segundo ela, com isso, somente moradores das cercanias, “gente de classe”, poderiam ir à praia “sem se misturar” com as pessoas da Zona Norte e dos morros.

Recentemente o noticiário sobre a ocupação dos morros do Complexo do Alemão povoou corações e mentes. A exploração de imagens do conflito para ganhar audiência na grande mídia beirou a barbárie. Na cobertura da Globo, como lembra José Arbex Jr., em artigo no Le Mond Diplomatique, as expressões utilizadas por repórteres e comentaristas, “ocupar o território” “expulsar o inimigo” e “extirpar o mal”, entre outras, de cunho militarista, pode ter reforçado ainda mais os preconceitos de classe. A performance das Forças Armadas no confronto com traficantes mexeu não só com os cariocas, mas com o Brasil. Levou uma parte considerável da população a apoiar incondicionalmente a guerra contra o tráfico no Rio. A exploração das imagens foi tão forte que deixa transparecer que ser policial hoje é como ser um astro de TV. Até onde vai a sociedade do espetáculo?

Não se sabe ao certo o que está acontecendo com os conflitos latentes que sempre existiram entre “morro e asfalto”, entre “a sala, a cozinha e a dependência de empregados”. Não se sabe também a dimensão do anacronismo com o impulso conseguido nas últimas eleições.

Vivemos dias de escalada da intolerância movida por preconceitos e por motivações de fundo religioso. Para fazer frente a isso, precisamos avançar na revolução educacional no estabelecimento de uma escola laica e na mobilização da sociedade para consolidarmos a democracia.

Para finalizar, fica um alerta do arcebispo emérito Desmond Tutu, um religioso progressista, que participou da luta contra o “Apartheid”, na África do Sul. “Sempre que um grupo de seres humanos é tratado como inferior por outro, o ódio e a intolerância triunfam”.

(*)É jornalista e escritor, autor de “Florestan Fernandes vida e obra” e “Florestan Fernandes – um mestre radical.”


(Transcrito do site http://www.caartamaior.com.br/ )

Elogio à intolerância: o que a mídia tem a ver com isso?

Publicado originalmente no Observatório da Imprensa

Já foram muitas as análises e os comentários publicados neste Observatório e em outros veículos sobre os eventos ocorridos em Tucson, Arizona, no sábado, dia 8 de janeiro.

Apesar do enorme desastre da região serrana do Rio de Janeiro – que nos afeta a todos, muito mais de perto – é imperativo que se faça pelo menos um registro em relação aos trágicos eventos nos Estados Unidos por envolverem diretamente o objeto principal de nossa observação semanal: a mídia.

Intolerância em nome da democracia
Em recente balanço que fiz sobre as políticas públicas de comunicações ao longo dos oito anos de governo Lula (ver, neste OI, "O balanço dos governos Lula") mencionei o que acredito tenha sido uma das características do período, isto é, o recrudescimento da posição radical dos grupos privados de mídia em relação a qualquer proposta de regulação das comunicações, oriunda ou não do governo.

Como exemplos citei a partidarização da grande mídia e as inacreditáveis reações provocadas pela aprovação do Projeto de Indicação nº 72.10, pela unanimidade da Assembléia Legislativa do Ceará (depois vetado pelo governador Cid Gomes). Em Brasília, o advogado e editor do suplemento "Direito & Justiça" do Correio Braziliense, referindo-se às propostas aprovadas pela 1ª Conferência Nacional de Comunicação, escreveu que "Goebbels, encarregado por Hitler da difusão da propaganda nazista e de eliminar adversários do regime, não teria feito melhor".

Terminava, então, o referido balanço afirmando que "considerando a radicalização e a intolerância que têm marcado a relação entre os principais atores do campo nos últimos anos, o futuro próximo certamente reserva imensos desafios para a democratização das comunicações no Brasil".

Quão distante de nós ainda está o tipo de intolerância radical que se transforma em violência criminosa e que já se tornou uma triste rotina nos Estados Unidos?

Intolerância radical na mídia americana
Em novembro de 2010, em comentário que não constava do texto escrito preparado para a audiência pública da qual participava, o senador Jay Rockefeller (democrata da Virgínia do Oeste), presidente da Comissão de Comércio, manifestou sua irritação contra a radicalização política na mídia dos EUA. Referindo-se diretamente aos principais executivos das redes de TV a cabo, disse ele:

"Tem um pequeno ‘bug’ dentro de mim que quer a FCC [Federal Communications Commission] dizendo à FOX e à MSNBC: ‘Fora. Desligue. Chega. Adeus’. Isso faria um enorme favor ao discurso político; à nossa habilidade de fazer nosso trabalho aqui no Congresso; e ao povo americano, para que todos fossem capazes de conversar uns com os outros e ter alguma fé em seu governo e, mais importante, em seu futuro"

No texto escrito ele também afirmou:

"Quando se trata de produzir conteúdo, nossa máquina de entretenimento está, muito frequentemente, numa corrida para baixo. Ainda pior, nossos noticiários se entregaram totalmente às forças do entretenimento. Ao invés do fiscal que exerce um controle sobre os excessos do governo e dos negócios, temos o latido interminável de um ciclo noticioso de 24 horas [the endless barking of a 24-hour news cycle]. Nós temos um jornalismo que está sempre ávido pelo próximo rumor, mas insuficientemente interessado pelos fatos que podem nutrir nossa democracia. Como cidadãos, estamos pagando o preço" (ver aqui nota do New York Times sobre o assunto).

A polêmica posição do senador Rockefeller foi, por óbvio, bombardeada pela grande mídia nos EUA como uma ameaça à liberdade de imprensa. Sua lembrança, no entanto, serve para mostrar como não escapava a empresários/políticos como ele o papel de instigadora da intolerância que a mídia americana vem desempenhando no país, sobretudo após a eleição e posse de Barack Obama.

Que se saiba, as declarações de Jay Rockefeller não mereceram maiores comentários na grande mídia brasileira. O fato é apenas mais um a confirmar as imensas dificuldades que a mídia tem de lidar criticamente com o papel que ela própria joga na construção democrática, para além da retórica da defesa da liberdade de expressão associada a seus interesses comerciais.

Por outro lado, não é fácil para um jornalista setorial, imerso no cumprimento de uma pauta e no atendimento ao "enquadramento" esperado por seu editor/patrão, avaliar qual a "representação" da sociedade está ajudando a construir cotidianamente.

Some-se a tudo isso a preocupante característica da internet que parece facilitar a radicalização de opiniões. Perry Hewitt, da Universidade de Harvard, afirmou recentemente:

"A internet pode ser uma força positiva para criar laços sociais, mas negativa no que diz respeito à violação das liberdades civis e no aumento da polarização de opiniões" [ver aqui].

EUA vs. Brasil
Não temos entre nós o que tem sido chamado de "cultura do ódio" e, menos ainda, a tradição de acesso e uso indiscriminado de armas de fogo que existe nos EUA.

Apesar disso, não deixa de ser assustador que nossa oposição política e eleitoral, não só já se utilize de técnicas e estratégias importadas dos radicais de direita americanos (ver "Guerra suja na campanha eleitoral"), como sua retórica discursiva muitas vezes resvale para a irresponsabilidade de acusações e comparações históricas infundadas e descabidas.

Estaria sendo construído aqui um rastro de intolerância política radical que, de certa forma, tem se manifestado nos embates sobre a regulação da mídia?

Oxalá minha análise esteja equivocada.


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Venício A. de Lima é professor titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado) e autor, dentre outros, de Liberdade de Expressão vs. Liberdade de Imprensa – Direito à Comunicação e Democracia, Publisher, 2010.


(Transcrito do site http://www.crtamaior.com.br/ )

América Latina: a mídia versus a democracia

Sexo não é mais tema tabu, embora José Serra na última campanha tenha procurado englobar em um obscurantismo pautas correlatas: a livre orientação sexual, uma opção individual, e a prática do aborto, um problema de saúde pública. A picardia funcionou para associar a direita nativa às correntes internacionais extremistas do conservadorismo e catalizar o apoio de alas ultra-retrógradas, como a católica Opus Dei. Com o que, a candidatura do “bolinha de papel” atingiu o preocupante patamar de 43% dos votos no segundo turno, tendo por pano de fundo a herança cultural excludente e elitista do país.

Hoje, a censura da mídia patronal não recai sobre “a moral e os bons costumes”, mas sobre os esforços de democratização da América Latina. O bloqueio contumaz esconde os avanços no combate às desigualdades sociais. Os noticiários manipulam o imaginário social e ferem o direito à informação. À indagação do nacional-desenvolvimentista Celso Furtado, “saber se temos um futuro como nação no devir humano”, respondem buscando “interromper o nosso processo histórico de formação de um Estado-Nação”. A tática que adotam é a da omissão altista sobre as conquistas que distanciam-nos do passado colonial e escravagista, em combinação diuturna com as acusações histriônicas e gratuitas à suposta falta de moralidade nos atos das lideranças. A disco toca sempre a mesmíssima faixa.

As classes médias altas, por não sentirem o impacto imediato gerado com as políticas de qualificação dos serviços públicos, distribuição de renda, valorização do salário mínimo e expansão do crédito mostram-se mais suscetíveis à sabotagem. As camadas empobrecidas, usufruindo no cotidiano os benefícios da inversão de prioridades, possuem uma consciência com maior imunidade ao mal humor dos donos da opinião pública. A situação é agravada pela ausência de uma legislação que proíba a propriedade cruzada, o que implica uma ameaça à veiculação de idéias plurais e uma limitação à capacidade de formulação de juízos independentes pelos indivíduos. Paradoxo que mina as bases da própria democracia liberal!

A midiatização oposicionista, encenada com sensacionalismo e virulência, tem um preço. O jornal argentino de maior circulação, Clarin, perdeu 30 mil leitores diários no ano passado, o que é bastante. Nem assim arrefeceu as baterias contra a Lei dos Meios de Comunicação, a qual estabeleceu que as licenças outorgadas serão divididas alocando 33% de emissoras de rádio e televisão para o Estado, 33% para as emissoras comunitárias e 33% para as empresas privadas. A medida, que tem repercussão econômica e política, visa desconstituir os monopólios na área, alguns de posse de 60 frequências televisivas regionais. A Agência de Notícias Reuters (Inglaterra) divulgou a informação como um atentado à “liberdade de expressão” (leia-se: “acumulação”), tecendo um juízo de valor. Adicionava que “a aprovação da lei polêmica no Senado deve enfraquecer as grandes empresas jornalísticas críticas ao governo de Cristina Kirchner” (10/10/2009). A nota foi reproduzida em tom de lamento pela imprensa comercial. Seria risível, se não fosse melancólico.

Projetos em disputa
Dois projetos políticos seguem em disputa na AL, o neoliberal e o democrático-participativo. O primeiro detém-se em um conceito de democracia apenas procedimental, com vértice nas eleições, sendo culpado pela decepção espraiada com o rendimento societal pífio dos governos civis nos anos 90. O segundo amplifica a esfera pública, reabre possibilidades para o exercício da cidadania, reconfigura a relação entre os governados e os governantes. A este deve-se: a) a extensão de instâncias decisórias, que socializam o poder político e interferem de maneira propositiva na elaboração de programas e leis abrangentes; b) o reconhecimento das diferenças, que garante o aparecimento de novos sujeitos e; c) a universalização de direitos, que alicerça o incipiente edifício da igualdade republicana.

No discurso, ambos os projetos enaltecem as ações participativas. No governo FHC, por intermédio da “Comunidade Solidária” que tratava os pobres como objeto de filantropia e retirava da administração central qualquer obrigação no combate à pobreza. A questão social apelava à caridade, ao invés de clamar alto e bom som por justiça. O estratagema demotucano, decorrente dos ajustes fiscais inspirados no Consenso de Washington, serviu de paradigma para o Fondo de Solidariedad e Inversión Social (Chile) e a Red de Solidariedad (Colômbia). As palavras mágicas ouvidas então eram “responsabilidade social”, “terceiro setor” e “voluntariado”, com os cidadãos reduzidos à condição de “consumidores” e a sociedade civil dissolvida nas “fundações empresariais”. Nada a ver com a noção de participação ilustrada nas “Conferências Nacionais” realizadas pelo governo Lula: mais de 70, abrangendo da pesca à saúde, passando pelos serviços de telecomunicações e radiodifusão. Todas atentas aos ideais simbólicos de um Estado de bem-estar social que aumente consideravelmente o PIF, isto é, o Produto Interno de Felicidade.

A utilização de um mesmo conceito para designar conteúdos distintos é o que certos autores classificam de confluência perversa de significados. “A perversidade se localizaria no fato de que, apontando em direções opostas e até antagônicas, os dois conjuntos de projetos utilizam um discurso comum” (Evelina Danigno, Alberto Olvera, Aldo Panfichi, A disputa pela construção democrática na AL, 2006). Os neoliberais embaralham os sentidos para apropriarem-se da demanda de participação dos movimentos sociais, sobretudo em conjunturas de refluxo das lutas populares. No lusco-fusco, ocultam as intenções privatistas para reverberar a semântica pega de empréstimo de outra ideologia. Pura malandragem.

A participação social, que os peregrinos do caminho da servidão querem privatizar, reatualiza a inserção dos trabalhadores nos processos políticos, organizando os coletivos para intervirem nas estruturas (que não são homogêneas) do Estado. A democracia participativa designa um “modo de vida” voltado para o desfrute pleno dos direitos civis, políticos e sociais. A democracia representativa, assentada na formalidade das regras do jogo, resume-se a um regime político. A coabitação, no caso, aperfeiçoa as engrenagens da representação política e relativiza o peso do clientelismo e do personalismo. “O legado de Lula é ter tornado a participação no governo federal efetiva. O desafio agora é transformar as decisões das conferências em políticas, e articular melhor as formas de participação com a produção legislativa no Congresso Nacional”, resumiu em entrevista o professor Leonardo Avritzer. Dessa articulação resultará um sistema político híbrido mais adequado.

Novos atores políticos
Assiste-se na AL à erupção de novos atores políticos e temáticas no espaço público, que deixa de ser uma trincheira de resistência ao despotismo estatal, como no ciclo ditatorial, para se converter em um laboratório de práticas associativas capazes de levantar propostas vinculantes à ordem estabelecida. “O Brasil não falava de extrativistas, de varzeteiros, de ribeirinhos, de pescadores ou de quilombolas”, declarou o ex-ministro Guilherme Cassel no balanço de sua gestão no Ministério do Desenvolvimento Agrário. Esse contingente estava excluído dos arranjos políticos. O fenômeno repete-se por toda parte, onde os grupos étnicos e as mobilizações indígenas ganham visibilidade social. Impossível desconsiderar tais segmentos ao prospectar o futuro da democracia.

A complexidade do real opõe-se aos esquemas reducionistas das vanguardas dogmáticas, que importavam fórmulas redentoras do hemisfério Norte ao invés de debruçarem-se sobre as circunstâncias do Sul. Nunca foi tão atual a observação do intelectual peruano José Carlos Mariátegui (1894-1930) para “evitar a imitação européia e situar a ação revolucionária em uma apreciação exata de nossa própria realidade”. A onda democrática pós-neoliberal não teria acontecido com a esquerda ainda submetida a um eurocentrismo, o que experiências como o Foro de São Paulo ajudaram a corrigir. Mas há muito por fazer para a elaboração de um pensamento anticapitalista autóctone, que se nutra da perspectiva internacionalista conquanto sem submissão ou obediência.

A geração de militantes formada sob os governos eleitos pelo voto direto aprendeu a dizer “não” às imposições, pois cresceu com autonomia para fazer escolhas. Pela formação societária, rejeita os ditames burocráticos. Ao contrário dos velhos comunistas diante das cúpulas dirigentes de antanho, substitui o argumento da autoridade pela autoridade do argumento. Ou seja, à heterogeneidade dos atores políticos, soma-se uma juventude crítica que cultua o empenho dialógico, recusa os sistemas organizacionais verticais, está familiarizada com as modernas tecnologias e ciente do direito a ter direitos. A tradição se reinventa. E, em um contexto de institucionalização das divergências, traduz uma vocação democrática e participativa que pode ser condensada na expressão “reformismo revolucionário”. A luta armada quedou na memória, à espera de esclarecimentos, a menos que surjam graves crises não equacionáveis dentro do Estado democrático de Direito.

A longa noite do autoritarismo provocou o surgimento de uma sociedade civil conservadora que, na sequência, conferiu uma sustentação política ao neoliberalismo. Contudo, o que se observa no período recente é o amanhecer de um tempo progressista com apoio nas maiorias, em especial nas camadas de baixa renda. O individualismo cede a vez ao solidarismo institucional por via da recuperação das funções clássicas do Estado. “No plano social, a inclusão só será plenamente alcançada com a universalização e a qualificação dos serviços essenciais. Este é um passo, decisivo e irrevogável, para consolidar e ampliar as grandes conquistas obtidas pelo nosso povo... E este é o sonho que vou perseguir”, reiterou com determinação a presidenta Dilma Rousseff durante a posse em 1° de janeiro.

Politizar os conflitos
A hostilidade aos protagonistas dessas mudanças alvissareiras não se coaduna com a razão e a vontade geral. A mídia dos patrões que comportam-se como senhores de escravos, ao vociferar para a metamorfose sócio-econômica que percorre as nações latino-americanas, faz-se auto-referente, ladra em frente ao espelho. Lembrando o poeta João Cabral de Melo Neto, é como se recitasse: “Falo somente com o que falo: / com as mesmas vinte palavras / girando ao redor do sol”. Aquela vocaliza o ódio, a intolerância, as calúnias da reação em face da emancipação da senzala, sintetizada nos grotões brasileiros de sotaque nordestino. Sua credibilidade desce a ladeira. Sua cólera sobe em igual proporção, celeremente.

O projeto encarnado pelos mass (em inglês, massa) media (em latim, meios) move-se por uma intencionalidade. Desqualificar o trabalho dos que defendem a coisa pública para, no lugar, pôr em relevo a iniciativa privada e a lógica do mercado, entendida como o eixo primaz da economia e das relações sociais. Escaldados, receiam que os países que promovem reformas exerçam um efeito demonstrativo sobre os demais. Acostumados aos privilégios, apostam na despolitização dos conflitos e na restrição da arena política, sem hesitar em criminalizar os movimentos sociais por exprimirem um “viés político”. Não espanta. “Na AL, a história dos meios de comunicação é a história de como se constituíram as oligarquias locais e regionais... é essencialmente uma história política, de favorecimentos a classes ou setores de classes em detrimento de outras”, escreveu o jornalista Gilberto Maringoni no Panorama das Comunicações e das Telecomunicações no Brasil (Ipea, 2011).

Na contramão, desenvolvem-se orçamentos participativos, conselhos gestores de políticas públicas, mesas de concertação, mecanismos de prestação de contas para os quais reserva-se o termo accountability. Formas alternativas e criativas de política irrompem no palco da luta de classes, a sociedade civil, acompanhadas de princípios éticos que travam um embate com a gramática da mercantilização. A discussão pública transcende a preocupação gerencial com a governabilidade e a eficácia administrativa, trazendo a incerteza para o horizonte das elites convencionais e, a civilização, para o presente da população. A democracia contém uma definição de “boa sociedade” que, se generaliza oportunidades e resultados, potencializa o controle público sobre o Estado e aponta para o autogoverno, finaliza no socialismo. Com nuances e ritmos diferenciados, as transformações estruturais dinamizadas pelo projeto democrático-participativo têm como tarefa concluir duas revoluções inacabadas, a burguesa e a socialista: haciendo camino al andar.

É preciso inserir na agenda das organizações sociais (sindicatos, associações, redes, etc) a denúncia contra o papel deletério cumprido pelos veículos informativos. O boicote e o vilipêndio são momentos táticos de uma estratégia mais ampla para barrar a democratização em curso no território demarcado pela utopia de Simon Bolívar e João Cândido. Trata-se de uma convocação permanente ao golpismo, frustrado na Venezuela (2002) e no Equador (2010), bem sucedido em Honduras (2009). Para esconjurar as tendências golpistas há que introduzir a democracia participativa também nos mass media: “Um sistema de comunicação social de fato democrático envolveria a participação do povo em larga escala, refletindo tanto os interesses públicos como valores autênticos – a verdade, a integridade, a descoberta” (Noam Chomsky, Segredos, mentiras e democracia, 1999). Outro mundo é possível. Outra comunicação, idem. Com a condição de que os conflitos sejam politizados.



(*)Luiz Marques é professor de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).



(Transcrito do site http://www.cartamaior.com.br/ )

18 janeiro 2011

O DRAMA DA REGIÃO SERRANA DO RIO É DE TODOS NÓS

Sulamita Esteliam (*)



Difícil manter a racionalidade diante da tragédia que atingiu a região serrana do Rio de Janeiro. As imagens são dilacerantes. A extensão do drama humano supera nossa capacidade de raciocínio. Impossível não se emocionar. Em particular ante a grandeza da gente brasileira, traduzida em solidariedade com as vítimas. E ao poder de resignação daqueles que escapam. Perderam tudo, mas estão vivos.

Muitos tiveram a família inteira levada pelas águas ou soterradas nos escombros do que um dia foi um lar. Ainda assim, mantêm aceso o espírito que dá sentido à vida: é preciso recomeçar.

De onde vem tamanha força? Talvez da fé. E quem somos nós, pretensos observadores, paladinos da consciência política, para duvidar? Sim, eles serão capazes e, talvez, seja extamente isso, a fé – que seja em si próprio – que alimente a mística do “brasileiro, profissão esperança”.

No tempo presente, resta-lhes contar e enterrar os mortos. E eles já passam dos 500 nas setes cidades devastadas, em três dias de resgate. Só em Nova Friburgo são 246, na contagem da tarde desta sexta-feira, segundo a Defesa Civil. Em Teresópolis, 229. Petrópolis, 41. Sumidouro, 20. São José do Rio Preto, dois. Areal também foi devastada, mas não há vítimas fatais conhecidas, por enquanto.

Mas, infelizmente, tudo pode ficar pior: as buscas certamente trarão mais corpos, e a meteorologia indica que os céus não darão trégua.

Outros estados do Sudeste vêm sendo castigados pelas chuvas: em Minas, 74 municípios estão sob as águas e decretaram estado de emergência; São Paulo não para de contabilizar prejuízos materiais e humanos; Espírito Santo e Goiás também sofrem com a força desvastadora das águas. Nada e em lugar nenhum, porém, se compara ao desastre no Estado do Rio. A diferença é que, desta vez, a catástrofe atinge pobres e ricos, indistintamente.

Ano após ano, verão após verão, a tragédia se repete neste pedaço do Brasil – em menor ou maior grau. Há dois anos, Santa Catarina, no Sul, sofreu devastação semelhante. O próprio estado fluminense é pródigo em exemplos: no reveillon do ano passado, Angra dos Reiscontabilizou 53 mortos nos deslizamentos de terra no Morro da Carioca e na Ilha do Bananal. As chuvas que fecham o verão levaram quase duas centenas de vidas nos deslizamentos no Morrodo Bumba, em Niterói, no início de abril de 2010; um lixão desativado há 50 anos torna-se abrigo de 200 famílias. O mesmo acontece com o Nordeste, no período de inverno.

Em junho do ano passado, as enchentes devastaram a Zona da Mata de Pernambuco e Alagoas, sobretudo. Os rastros da destruição permanecem ainda hoje. Cidades inteiras transformadas em lama e lixo. Dezenas de mortos, milhares de desabrigados. Prejuízos incalculáveis não se recuperam, assim, da noite para o dia. Para a morte, não tem retorno.

É fácil culpar as chuvas. Mas fato é que nenhuma cidade está preparada para a fúria da natureza, quando ela resolve cobrar a degradação cotidiana a que é submetida. E o agente de seu próprio infortúnio é o homem.
Tenha ele o nome que se lhe atribuir: especulação imobiliária; excesso de detritos gerado pelo consumo exarcerbado, irresponsabilidade ambiental; falta de habitação e de saneamento adequados, ausência de política urbana, leniência e descaso do poder público – tudo isso junto. Anos e anos, séculos a fio…

Choremos os nossos mortos. Lamentemos nossos prejuízos. Apontemos o dedo, também, para nós mesmos. Mas é leite derramado.

Catástrofe se previne. Por mais que existam problemas estruturais crônicos, e os há de grande monta. Por mais que as manifestações naturais possam vir a ser imponderáveis.

É inadiável a definição e a implementação de políticas públicas que garantam o ordenamento urbano, com respeito às pessoas, ao meio ambiente, à coletividade, à vida. Claro que é trabalho para resultados a longo prazo. Mas é questão de sobrevivência humana. Sim, porque o Planeta se fez, e se refez, em milhões e milhões de anos. Está em mutação permanente, e sobreviverá – com ou sem os humanos.

(**) A propósito, leia entrevista da arquiteta Ermínia Maricato à Caros Amigos a propósito do futuro das nossas cidades.

* Sulamita Esteliam é jornalista e escritoraa. Autora dos livros Estação Ferrugem, romance-reportagem que resgata a história da região operária de Belo Horizonte-Contagem, Vozes, 1998; Em Nome da Filha – A História de Mônica e Gercina, sobre violência contra mulher em Pernambuco; e o infantil Para que Serve Um Irmão, os dois últimos ainda inéditos. http://www.atalmineira.wordpress.com //sulamitaesteliam@hotmail.com



(Transcrito do site http://www.cartamaior.com.br/ )

17 janeiro 2011

TEMPO COMO SERVIÇO, NÃO COMO ESPETÁCULO

Todas as redes comerciais de televisão no Brasil têm as suas moças do tempo. São herdeiras, em São Paulo, do Narciso Vernizzi, o primeiro “homem do tempo” da rádio Jovem Pan.

Elas surgem do nada, entre uma notícia e outra, aparecem no canto da tela e caminham para o centro, mostrando mais que o tempo as suas belas curvas.

Em casa, o telespectador vê atrás das moças as indicações do clima e da temperatura em todo o Brasil. Com algumas variações, esse tipo de informação é universal. O canal mundial da BBC mostra o tempo em várias partes do mundo, sem as moças.

São informações úteis, mas limitadas. Ajudam a sair de guarda-chuva no dia seguinte ou, aos viajantes, a escolha do que colocar na mala. Não sei se informações tão superficiais e genéricas contribuem para decisões mais importantes, como dos agricultores, por exemplo.

Apesar do avanço da internet, o rádio e a televisão ainda são os mais eficientes e abrangentes serviços públicos de informação. Não há outro meio que consiga falar de forma tão rápida para milhões de pessoas ao mesmo tempo.

Em momentos críticos tornam-se imprescindíveis. Pena que, por aqui, são pouco usados nesse tipo de prestação de serviços.

No caso de tragédias, como as deste início de ano, ao invés de moças desfilando à frente de ilustrações artísticas, deveríamos ter as programações interrompidas.

Em seu lugar seriam formadas cadeias nacionais ou locais de rádio e TV, antes das catástrofes, dando orientações seguras para a população. Sem pânico, mas com precisão e firmeza. E não generalizando com frases do tipo “chove no litoral do nordeste”.

Trata-se de um de trabalho que deve ser o mais localizado possível, com o envolvimento articulado dos serviços de meteorologia, da defesa civil e do jornalismo, na produção das informações.

Quantas vidas não poderiam ter sido salvas se, em vez colocar no ar o Ratinho ou o Big Brother, as emissoras tivessem avisado à população de que fortes chuvas estavam previstas para a serra fluminense na noite anterior à tragédia, com instruções dos poderes públicos sobre como agir.

Ou, no caso, de São Paulo que vias deveriam ser evitadas na iminência dos temporais, já que não há segredo nessa cidade sobre onde se localizam os eternos pontos de alagamento.

Para obter mais eficiência, esse serviço deveria ter seu foco nas informações locais. Dai a importância da regionalização das programações de rádio e TV, tão combatida pelos concessionários do setor.

No entanto são elas que darão às emissoras regionais e locais experiência, tanto na produção como na técnica, para enfrentar com competência situações extraordinárias.

Nem todos se salvariam, é verdade. Mas, com certeza, os danos seriam menores.

Furacões violentos que varrem o Caribe todos os anos causam grandes estragos materiais em Cuba, mas pouquíssimas vítimas.

Simplesmente porque as autoridades estabelecem planos precisos para a retirada da população das áreas criticas e a orientam através do rádio e da TV, com razoável antecedência, sobre as medidas que devem ser tomadas.

Muitos navios não foram à pique na costa brasileira graças ao programa radiofônico “A Voz do Brasil”. A seção “Aviso aos navegantes” informava todos os dias, minuciosamente, as condições das bóias de luz, sinalizadoras dos perigos naturais existentes no mar.

Era o rádio atuando como serviço público numa época de recursos eletrônicos muito limitados, se comparada aos hoje existentes.

Satélites transmitem informações meteorológicas com alto grau de precisão e as redes de rádio e TV cobrem todo o território nacional.

Falta apenas articular esses dois serviços com planos nacionais e locais de prevenção à catástrofes naturais.

No caso das enchentes no sudeste e centro-oeste, trata-se de problema datado, de dezembro a março. Há todo o resto do ano para o trabalho de planejamento e articulação.

Quem toma a iniciativa?



(*)Laurindo Lalo Leal Filho, sociólogo e jornalista, é professor de Jornalismo da ECA-USP. É autor, entre outros, de “A TV sob controle – A resposta da sociedade ao poder da televisão” (Summus Editorial). Twitter: @lalolealfilho.


(transcrito do site http://www.cartamaior.com.br/ )

Os sintomas de uma nova crise alimentar mundial

A Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO), com sede em Roma, alertou a semana passada que os preços mundiais do arroz, do trigo, do açúcar, da cevada e da carne seguiram altos ou registraram significativos aumentos em 2011, podendo replicar a crise de 2007-2008. Rob Vos, diretor de políticas de desenvolvimento e análise no Departamento de Economia e Assuntos Sociais da ONU relata que o aumento dos preços já está afetando vários países em desenvolvimento. Ele indicou ainda que nações como Índia e outras do leste e do sudoeste da Ásia sofrem inflação de dois dígitos, impulsionada pelo aumento dos preços dos alimentos e da energia. Na Bolívia, o governo se viu obrigado a reduzir os subsídios a alguns dos alimentos da cesta básica, já que estavam provocando uma disparada no déficit fiscal.

As implicações no curto prazo não são apenas que os pobres serão afetados e que mais gente poderá ser arrastada para a pobreza, mas sim que ficará mais difícil a recuperação dos países que enfrentam uma maior inflação e cairá o poder aquisitivo dos consumidores em geral. Alguns bancos centrais estão endurecendo suas políticas monetárias e governos estão se vendo obrigados a apertar o cinto, assinalou Vos, que é também chefe dos economistas da ONU.

Frederic Mousseau, diretor de políticas do Instituto Oakland, com sede em São Francisco, declarou que, em setembro passado, Moçambique já havia sofrido revoltas populares pelos altos preços do pão. Cerca de 13 pessoas morreram nestes protestos. “Ocorreram manifestações em uns 30 países em 2008 e isso pode se repetir agora uma vez que a situação não mudou nos últimos três anos”, sustentou Mousseau, autor do livro “O desafio dos altos preços dos alimentos: uma revisão das respostas para combater a fome”. Os países mais vulneráveis são os mais dependentes das importações e os menos capazes de enfrentar o aumento dos preços nos mercados com políticas públicas, sustentou. Isso concerne a muitas das nações mais pobres, com menos recursos, menos instituições e menos mecanismos públicos para apoiar a produção de alimentos”, explicou ainda Mousseau.

No final do ano passado ocorreram protestos na China pelos altos preços das refeições dos estudantes do ensino secundário, e na Argélia, pelo aumento do preço da farinha, do leite e do açúcar. Os argelinos voltaram a tomar as ruas na semana passada para protestar contra as duras condições econômicas. As manifestações terminaram com três mortos e centenas de feridos, enquanto que, na vizinha Tunísia, distúrbios similares causaram pelo menos 20 vítimas fatais.

Segundo o índice da FAO divulgado na semana passada, os preços dos cereais, dos grãos oleaginosos, lácteos, carnes e açúcar seguiram aumentando por seis meses consecutivos. “Estamos entrando em um terreno perigoso”, disse Abdolreza Abbassian, economista da FAO, para um jornal de Londres. Mousseau explicou que os preços começaram a aumentar em 2010 após as quebras de safras na Rússia e Europa Oriental, em parte causadas pelos incêndios de verão. Agora, as severas inundações que atingiram a Austrália, quarto maior exportador mundial de trigo, provavelmente afetarão a produção desse cultivo, elevando ainda os preços. “Qualquer outro acontecimento, como outro desastre climático em algum país exportador ou um novo aumento do preço do petróleo, sem dúvida alguma fará os preços dispararem, tornando a situação pior que a de 2008 e ameaçando o sustento de milhões de pessoas em todo o mundo”, acrescentou.

Por outro lado, Mousseau esclareceu que não se trata agora de um problema de escassez, como ocorreu em 2007-2008. “Não se pode usar a palavra escassez se consideramos que mais de um terço dos cereais produzidos no mundo são usados como alimento para animais, e que uma parte cada vez maior é utilizada para produzir agrocombustíveis”, observou. De fato, produziram-se 2,23 bilhões de toneladas de cereais no mundo em 2008, uma cifra sem precedentes. O nível de produção para o período 2010-2011 é levemente menor que o de 2008. A diferença é que, em 2008, foi o arroz que impulsionou a alta de preços, enquanto que, desta vez, é o trigo. Mas, em todo o caso, há uma combinação de fatores agindo: uma má colheita em uma parte do mundo provoca uma pressão sobre o mercado, que envia sinais negativos aos especuladores. Esses então começam a comprar e os preços disparam.



(*) Economista da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação

Tradução: Katarina Peixoto



(transcrito do site http://www.cartamaior.com.br/)

BBB11 - ética pelo ralo





No dia 11/1/201 a TV Globo levou ao ar seu programa de maior audiência no verão brasileiro: Big Brother Brasil 11. Sucesso de público, sucesso de marketing, sucesso financeiro, sempre na casa dos milhões de reais. Fracasso ético, fracasso de cidadania, fracasso de respeito aos direitos humanos fundamentais.

O prêmio será de R$ 1,5 milhão para o vencedor. O segundo e terceiro lugares levam, respectivamente, R$ 150 mil e R$ 50 mil. As inscrições para a próxima edição do BBB já estão encerradas. Ao todo, nas dez edições, foram 140 participantes. E já foram entregues mais de R$ 8,5 milhões em prêmios. Balanço raquítico, tanto numérico quanto financeiro para seus participantes, para um programa que se especializou em degradar a condição humana.

Aos 11 anos de existência, roubando sempre 25% do ano (janeiro a março) e agora entrando na puberdade como se humano fosse, o BBB começa anunciando que passará por mudanças na edição 2011. Se você pensou que as mudanças seriam para melhorar o que não tem como ser melhorado se enganou redondamente. O formato será sempre o mesmo, consagrado pelo público e pelos anunciantes: invasão de privacidade com a venda de corpos quase sempre sarados, bronzeados e bem torneados e com a exposição de mentes vazias a abrigar ideias que trafegam entre a futilidade e a galeria de preconceitos contra negros, pobres, analfabetos funcionais.

Após dez anos seguidos, sabemos que a receita do reality show inclui em sua base de sustentação as antivirtudes da mentira, da deslealdade, dos conluios e... da cafajestagem. Aos poucos, todos irão se despir de sua condição humana tão logo um deles diga que "isto aqui é um jogo". Outros ensaiarão frases pretensamente fincadas na moral: "Mas nem tudo vou fazer para ganhar esse jogo."

Como miquinhos amestrados, os participantes estarão ali para serem desrespeitados, não poucas vezes humilhados e muitas vezes objeto de escárnio e lições filosóficas extraídas de diferentes placas de caminhões e compartilhadas quase diariamente pelo jornalista Pedro Bial, ao que parece, senhor absoluto do reality show. Não faltarão "provas" grotescas, como colocar uma participante para botar ovo a cada trinta minutos; outra para latir ou miar a cada hora cheia; algum outro para passar 24 horas de sua vida fantasiado de bailarina ou para pular e coaxar como sapo sempre que for ativado determinado sinal acústico. O domador, que terá como chicote sua lábia de ocasião ou nalgumas vezes sua língua afiada, continuará sendo Pedro Bial que, a meu ver, representa um claro sinal de como as engrenagens que movem a televisão guardam estreita semelhança com aqueles velhos moedores de carne.

O último a sair da jaula
É inegável que Bial é talentoso. É inegável que passou parte de sua vida tendo páginas de livros ao alcance das mãos e dos olhos. É inegável também que parece inconsciente dos prejuízos éticos e morais que haverá de carregar vida afora. Isto porque a cada nova edição do reality mais se plasmam os nomes BBB e Pedro Bial. E será difícil ao ouvir um não lembrar imediatamente o outro. Porque lançamos aqui nosso nome, que poderá ter vida fugaz de cigarra ou ecoará pela eternidade. Imagino, daqui a uns 25 anos, em 2035, quando um descendente deste Pedro for reconhecido como bisneto daquele homem engraçado que fazia o Big Brother no Brasil. E os milhares de vídeos armazenados virtualmente no YouTube darão conta de ilustrar as gerações do porvir.

E, no entanto, essas quase duas dezenas de jovens estarão ali para ganhar fama instantânea, como se estivessem acondicionados naqueles pacotinhos de sopa da marca Miojo. Imagino cada um deles a envergar letreiro imaginário a nos dizer com a tristeza possível que "Coloco à venda meu corpo sem alma, meu coração quebrado e minha inteligência esgotada; vendo tudo isso muito barato porque vejo que há muita oferta no mercado". E teremos aquele interminável desfile de senso comum. Afinal, serão 90 dias de vida desperdiçada, ou melhor, de vida em que a principal atividade humana será jogar conversa fora. O que dá no mesmo. E não será o senso comum exatamente aquele conjunto de preconceitos adquiridos antes de completarmos 15 anos de vida?

Friederich Nietzsche (1844-1900) parecia ter o dom da premonição. É que o filósofo alemão se antecipava muito quando se tratava de projetar ideias sobre a condição humana. É dele esta percepção: "O macaco é um animal demasiado simpático para que o homem descenda dele". Isto porque Nietzsche foi poupado de atrações quase sérias e semi-circenses, como o BBB. No picadeiro, o macaco é aplaudido por sua imitação do humano: se equilibra e passeia de triciclo e de bicicleta, se veste de gente, com casaca e gravata, sabe usar vaso sanitário, descasca alimentos. No picadeiro do BBB, os seres humanos são aplaudidos por se mostrarem intolerantes uns com os outros, se vestem de papagaios, ladram, miam, coaxam, zumbem – e tudo como se animais fossem. Chegam a botar ovo em momento predeterminado. Se vestem de esponja e se encharcam de detergente a limpar pratos descomunais noite afora.

Em sua imitação de animal, o humano que se sobressai no BBB é aquele que consegue ficar engaiolado – digo, literalmente engaiolado – junto com outros bípedes não emplumados – por grande quantidade de horas. E sem poder satisfazer as necessidades humanas básicas, muitas vezes tendo que ficar em uma mesma posição, como seriemas destreinadas. E são os únicos animais que demonstram imensa felicidade em permanecer por mais tempo na gaiola. Não lhes jogam bananas nem pipocas, mas quem for o último a sair da jaula semi-humana ganha uma prenda. Pode ser um passeio de helicóptero, pode ser um carro, pode ser uma noite na Marquês de Sapucaí.

Heidegger reconheceria
O leitor atento deve ter percebido que em algum momento deste texto mencionei que o BBB 11 terá mudanças. Nem vou me dar ao trabalho de editar. Eis o quecopiei do site G1:

"Boninho, diretor do BBB, falou em seu Twitter nesta quarta-feira, 24/11, sobre a nova edição do programa, a 11ª, que estreará em janeiro de 2011. E ele adianta que, desta vez, as coisas vão mudar. ‘Esse ano tudo vai ser diferente... Nada é proibido no BBB, pode fazer o que quiser’, postou Boninho em seu microblog. Questionado sobre o que estaria liberado no confinamento que não estava em edições anteriores, ele respondeu: ‘Esse ano... liberado! Vai valer tudo, até porrada’. Boninho também comentou sobre as bebidas no reality show: ‘Acabou o ice no BBB... Vai ser power... chega de bebida de criança’, escreveu."

Não terá chegado a hora de o portentoso império Globo de comunicação negociar com o governo italiano a cessão do Coliseu romano para parte das locações, ao menos aquelas em que murros e safanões, sob efeito de álcool ou não, certamente ocorrerão? E como nada compreendo de Heidegger, só me resta dizer que ao longo de toda sua vida madura Heidegger esteve obcecado pela possibilidade de haver um sentido básico do verbo "ser" que estaria por trás de sua variedade de usos. E são recorrentes suas concepções quanto ao que existe, o estudo do que é, do que existe: a questão do Ser (i.e. uma Ontologia) dependente dos filósofos antes de Sócrates, da filosofia de Platão e de Aristóteles e dos Gnósticos.

Quem sabe tivesse assistido uma única noite do BBB – caso o formato da Endemol estivesse em cena antes de 1976 –, o filósofo, por muitos cultuado, não apenas teria uma confirmação segura de que não valia mesmo a pena publicar o segundo volume de sua obra principal, O Ser e o Tempo, como também haveria de reconhecer a inexistência de algo anterior ao ser. Mas, com certeza, se fartaria com a miríade de usos dados ao verbo "ser".



(*)Washington Araújo é jornalista e escritor. Mestre em Comunicação pela
UNB, tem livros sobre mídia, direitos humanos e ética publicados no Brasil,
Argentina, Espanha, México. Tem o blog http://www.cidadaodomundo.org
Email - wlaraujo9@gmail.com


(transcrito do site http://www.cartamaior.com.br/ )