29 setembro 2015

FLUXO DE FATOS

Cobertura burocrática para uma inédita maratona diplomática


Alberto Dines, no Observatório da Imprensa



Será que o complexo midiático contemporâneo consegue absorver, processar e entregar ao público o formidável fluxo de fatos devidamente ordenados, vinculados e hierarquizados?
Dificilmente.
Serão fruto de meras coincidências as visitas quase simultâneas aos Estados Unidos do papa Francisco, dos presidentes chinês, Xi Jinping e russo, Vladimir Putin, sem mencionar as dezenas de outros importantes Chefes de Estado, inclusive a presidente Dilma Roussef ?
É certo que a abertura da 70ª Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas nesta segunda-feira, 28/9, foi um dos vetores responsáveis pela seleta exibição de estadistas-celebridades no circuito norte-americano. Mesmo retornado na véspera o pontífice Francisco faz parte desta magnifica coleção de líderes.
Será que ao longo destes 70 anos todas as aberturas das assembleias da ONU foram tão pródigas e floridas? Nem a primeira, realizada em Londres a 10 de janeiro de 1946 — cinco meses depois de disparado o último tiro da maior catástrofe bélica dos últimos 500 anos — teve tamanha concentração de VIPs.
Qual a fórmula mágica do conclave deste annus horribilis de 2015?
Medo. Remissões. Pavor de repetições. As guerras da Coreia, do Vietnã, do Irã-Iraque foram provavelmente mais sangrentas e demoradas do que atual Guerra Civil na Síria. Mas o conflito para derrubar o presidente Bashar Al-Assad, último episódio da Primavera Árabe, mostrou um inesperado e devastador potencial de irradiação. Todos contra todos, não é apenas um tag para classificar guerras. É a constatação de que a humanidade não aguenta mais a sujeição à dinâmica bélica.
Na dramaturgia greco-romana, exodus designa a parte final das tragédias quando os exauridos protagonistas retiram-se de cena destroçados pelas emoções que viveram. O êxodo que assistimos ao vivo, em cores e HD no sul e centro da Europa, pegou uma humanidade distraída pelo narcisismo dos selfies, pela inútil trepidação dos Rock in Rio e/ou pela ideologia do ódio que as redes sociais candidamente oferecem aos usuários.
Os porteiros das redações formados na atual entre-safra generacional só descobriram muito tempo depois que as crianças sírias que morrem na praia não são sírias, são curdas ou yazidis. Os fantasmas que se escondem nos armários do palácio de Bashar Al-Assad são genocidas, étnicos ou religiosos, mas genocidas. Do que acontecerá em Damasco depende o futuro do Líbano, da Jordânia, da Turquia, Iraque, Irã e dos 35 milhões de curdos espalhados pela Ásia Menor, Criméia e Balkãs, somados ao arrogante Estado de Israel, criado em 1947 pela ONU e que agora recusa implementar suas determinações.
Os estadistas que acorreram à abertura da 70ª Assembleia-Geral da ONU não são obrigatoriamente experts em História. Mas pressentem que podem ser suas vítimas. Reuniram-se em Manhattan porque lá encontrariam um anfitrião fruto da tolerância, do diálogo, do multicultarismo, socialista para os reacionários, imperialista para os sectários, o estadista padrão-século XXI, inevitavelmente pacifista: Barack Obama
Os jornais que conseguirem enxergar e reproduzir o que acontece e palpita naquele prédio em Nova York diante dos painéis Guerra e Paz de Portinari, mesmo impressos em papel merecerão o prêmio de modernidade.
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Alberto Dines é jornalista, escritor e fundador do Observatório da Imprensa


26 setembro 2015

ILUSÃO



O voto e o veto

A decisão do Supremo de banir doações financeiras de empresas aos partidos políticos provoca a ilusão de pôr um fim à corrupção nas eleições

Maurício Dias, na Revista CartaCapital



Por larga margem de votos, o Supremo Tribunal Federal baniu do processo eleitoral brasileiro as doações financeiras de pessoas jurídicas para os partidos políticos. Das contribuições, agora vetadas, escoaram as somas volumosas de dinheiro que, legal e ilegalmente, irrigaram campanhas presidenciais e favoreceram também candidatos aos governos estaduais, ao Senado e à Câmara dos Deputados.
Adotando como ponto de partida o fim daditadura, um período de quase 30 anos, as empreiteiras, os bancos e outras grandes empresas agiram de acordo com o suspeito sistema político brasileiro batizado de “franciscano”: é dando que se recebe.
São Francisco que os perdoe.
Esse ciclo civil inclui, para surpresa de ingênuos e sorrisos dos cínicos, a própria eleição indireta em 1985, de Tancredo Neves, azeitada com doações informais, conforme é contado no livro Jogo Duro, do empresário Mario Garnero.
As digitais de empreiteiros, banqueiros e outras espécies aparecem também nas contas oficiais, além das informais, dos candidatos vencedores em eleições diretas: Collor, FHC, Lula e Dilma.
Nesse jogo de toma lá dá cá, os doadores oferecem generosas contribuições para um lado e para o outro. Assim, acertam no ganhador. Os candidatos, por sua vez, operam dentro de um princípio anunciado pelo pensador italiano Norberto Bobbio: “O voto, como qualquer outra mercadoria, pode ser comprado”.
Vigiar o dinheiro, ao que parece, passou a ser uma obsessão da Justiça Eleitoral. Daí brotou uma floresta de leis e de normas incapazes de adequar ao processo a contribuição privada sem corrupção.
Foi uma falsa obsessão. Não se experimentou, por exemplo, a classificação do caixa 2 como crime punível de forma rigorosa. Os doadores ilegais seriam proibidos de transacionar com o poder público. Os políticos favorecidos seriam afastados da vida pública por um tempo ou para sempre.
A influência do dinheiro na eleição é avassaladora. Há uma justificativa teórica para isso. Não se conhece capitalismo com ética. A regra vale para qualquer sistema de poder político.
Na prática, o dinheiro pode criar falsos consensos, distorcer a representação e, como alertava o romancista José de Alencar, extorquir “a soberania popular”. A grana é uma contradição irremovível das eleições. Assim também acontece no financiamento público, se colocado à disposição de candidaturas privadas.
Esse tema chegou, em 2013, ao plenário do Supremo. A maioria dos ministros acompanhou a ventania conservadora que percorre o mundo ocidental e envolve o Brasil. Embora não exista ninguém capaz de se afirmar favorável à corrupção – quem souber levante o dedo –, os corruptos estão em todas as partes.
Um dos votos favoráveis à continuidade das doações foi o de Gilmar Mendes. Ele ficou um ano e cinco meses sem apresentar sua posição sobre o caso. Foi tempo suficiente para a passagem dos anos 2013 e 2014. Em 2015, a Câmara dos Deputados, sob o comando de Eduardo Cunha, aprovou projeto similar à regra vigente eliminada agora pelo veto à doação privada. Coincidência?
O veto pode ter duração temporária. Talvez até o momento em que se perceba que o jeitinho brasileiro é mais ardiloso do que supõe a filosofia do Supremo.


19 setembro 2015

PRA FRENTE X PRA TRÁS

Dilma entre dois fogos


Maurício Dias, na Revista CartaCapital



Segundo um preceito bíblico, não se pode servir a dois senhores. É uma regra adaptável à situação vivida neste momento pela presidenta Dilma Rousseff. Essa doutrina religiosa descreve o destino de quem adota a ambiguidade: ou vai odiar um e amar outro, ou se dedicar a um e desprezar o outro.
Esse é o dilema ao qual a presidenta está submetida a partir das anunciadas medidas econômicas. Ela terá de resolver as contradições impostas a ela. Há fortes reações ao “pacote”. O PT, os movimentos sociais, os sindicatos de trabalhadores e, naturalmente, a oposição.
Para os petistas, o ponto crucial é o de guarnecer os programas sociais e a inédita inclusão de alguns milhões saídos da miséria puxados para a categoria de cidadãos com direitos iguais aos de qualquer outra classe. Além disso, reagem ao ataque contra a base eleitoral do partido, a exemplo do que ocorreu com o corte no aumento salarial para os servidores.
A redução desses investimentos tende a crescer e, com isso, tornar imperceptível a linha divisória entre o segundo governo Dilma e uma administração conservadora qualquer. A questão social tem sido a marca diferencial dos petistas. É o que ainda dá a eles o carimbo de centro-esquerda.
Não por acaso, em recente viagem à Argentina, o ex-presidente Lula, ao falar da crise brasileira, encaixou o problema na moldura de “uma luta de classes”. Isso pode ser traduzido, resumidamente, no inarredável conflito entre a esquerda e a direita.
Obviamente, não havia ninguém da imprensa brasileira na Argentina. Mas um repórter da BBC estava lá. Segundo ele, Lula disse que “a inclusão levou setores da sociedade brasileira a repetir frases como ‘o aeroporto parece rodoviária’, ou ‘crédito estudantil é gasto’ ’’ .
As duas frases brotam da soma do preconceito com a ignorância. O ex-presidente não citou na ocasião o bem-sucedido programa contra a fome.
Curiosamente, porém, na terça-feira 15, esse programa foi coberto de elogios por José Roberto Marinho, um dos três herdeiros do império Globo de comunicação, uma empresa cuja identidade poderia ser: “A serviço da casa-grande desde 1925”.
Marinho foi apanhado pela inevitabilidade, na cerimônia de entrega do Prêmio Jovem Cientista, no Palácio do Planalto, com a presença da presidenta Dilma Rousseff.
Ao discursar, ele destacou a decisão de a ONU ter excluído o Brasil do mapa da fome: “Uma iniciativa que nos motiva a continuar avançando rumo a uma alimentação cada vez mais farta e saudável para toda a população”. 
Alertou, com razão, que é preciso melhorar. No entanto, não fez nenhuma menção ao fato de o País ter reduzido em 82% a população em situação de subalimentação nos últimos 11 anos. Ou seja, tudo foi alcançado entre 2002 e 2013. Exatamente no ciclo dos governos petistas. O custo do ajuste pode apagar essa e outras conquistas. Do ponto de vista pragmático, poderá diminuir as chances do PT na disputa eleitoral de 2018.
Em tempo: salvo se, até lá, os oposicionistas não estiverem no poder e os petistas na oposição.























ASSIM CAMINHA A HUMANIDADE

Lições do abismo


Alberto Dines, no Observatório da Imprensa



Cada geração tem direito a um grande erro — desde que não seja o mesmo. Tudo o que nos perturba neste momento já aconteceu antes, já foi experimentado, visto, revisto com pequenas diferenças. Nossa desgraça é a incapacidade de processar as mutações da realidade e assim reconhecer as referências com a rapidez necessária para acionar os alarmes. Por default, embarcamos num sonambulismo protetor, confortável, como se fôssemos neófitos.
Não somos: as atuais turbulências já se manifestaram com arranjos assemelhados em inúmeras ocasiões no passado recente, mas os aplicativos utilizados parecem descalibrados.
A atual conflagração é abrangente, endógena, múltipla e multipolar: temos guerras com diferentes intensidades em diferentes partes do mundo, as recessões não se limitam à América do Sul, nem apenas às economias emergentes. A visível recuperação norte-americana pode ser abalada pelas vacilações chinesas ou pelos desdobramentos da campanha eleitoral em 2016.
A catástrofe dos refugiados parece ter sido apontada intencionalmente para os pontos mais vulneráveis da União Europeia: os Bálcãs (há dois séculos convertidos em sinônimo de fragmentação e xenofobia) e os parceiros da antiga Cortina de Ferro sem grande apego à democracia, ao humanismo, por isso mais suscetíveis às tentações totalitárias.
Não esqueçamos que a Hungria, atual vilã na tragédia dos refugiados, só foi “invadida” pelos nazistas nos momentos finais da 2ª Guerra Mundial, até então parceira de suas barbaridades. A cada lance deste novo êxodo num continente que sonhava acabar com guerras e fronteiras, ficam visíveis as semelhanças com as expulsões no Leste Europeu pré-1939 e o extermínio perpetrado em seguida. Antes as vítimas foram os ciganos e os judeus, agora são os curdos, yazidis e outras minorias étnicas abominadas tanto pelos fundamentalistas islâmicos como por países com pretensões hegemônicas regionais como a Turquia.
No entrelaçamento de complexidades, por ironia, a distração maior relaciona-se com nossa irreprimível atração pelo abismo. Convivemos com ele sem saber identifica-lo. Marcados pela sucessão de golpes castrenses desde a implantação da República e, sobretudo, pelo horror à ditadura militar, imaginamos que a inexistência de fantasmas fardados retira da atual situação qualquer periculosidade.
Nunca demos a necessária atenção ao fascismo: com as bênçãos de seculares tradições esquecemos a força maléfica da Ação Integralista Brasileira, seu papel na proclamação do Estado Novo, sua tentativa de golpe no ano seguinte e, mais tarde, na sustentação da paranoia militar. Não percebemos que a maior aposta fascista reside no desgaste das instituições democráticas decorrente da intensa polarização política. Um regime atordoado, dominado pelo sectarismo e associado a um projeto de poder enferrujado é o caldo de cultura ideal para um neototalitarismo conservador com seus irresistíveis apelos à ordem e bons costumes.
A onda fascista atual, ao contrário da anterior de meados do século passado, espalha-se pelo mundo, personificada por figuras bem-sucedidas como o bilionário Donald Trump, a família francesa Le Pen, a revelação de estadista, o húngaro Victor Orban. Gente “normal”, aparentemente confiável, bem-falante, crente, sem exibir aberrações demoníacas de Adolf Hitler e Benito Mussolini.
Anestesiados pela incrível sucessão de sustos e emoções, não distinguimos a beira do abismo. Na era da informação não podemos alegar falta de conhecimento. Mas ela é uma realidade. Jornais esquálidos, telejornais alienados, percepções embotadas oferecem reprises, remakes e um indisfarçável bocejo de tédio que corre o risco de ser derradeiro.
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Alberto Dines é jornalista, escritor e fundador do Observatório da Imprensa


18 setembro 2015

ONDE ESTÁ A RAIZ DA CRISE

A casta contra o povo

A verdadeira raiz da crise política está na maneira como a classe política se coloca acima de seus representados


Vladimir Safatle, na Revista CartaCapital


Tânia Rêgo/ Agência Brasil
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Em 2013, com as grandes manifestações de junho, ficou evidente o deslocamento entre os dirigentes e as demandas populares
Brasil deve ser o único país do mundo no qual até viadutos e calçadas são batizados com nomes de figuras pretensamente notáveis. Difícil achar 1 metro de concreto que não tenha a alcunha de algum grande brasileiro a ornar sua existência. Se você começa a se perguntar, porém, sobre quem são esses que os brasileiros celebram em suas construções, ficará claro não se tratar, em sua esmagadora maioria, de escritores, músicos, professores, cidadãos de grande bravura. São em geral políticos. Antigos deputados, prefeitos, vice-prefeitos, secretários, presidentes, ministros, mulher de ministro, correligionário, governador, filho de governador, mãe de prefeito (esta é uma contribuição da cidade de São Paulo). Bem, a lista não termina. 
Pode-se ter a impressão, com toda essa profusão de homenagens, que os brasileiros amam seus políticos com todo o coração. Ou se pode perceber claramente como a classe política vive para celebrar a si mesma, em um comportamento de casta que mistura vínculos de sangue, tradição e pilhagem do espaço público. 
É difícil não pensar a esse respeito depois do término da votação do projeto de reforma política. Em 2013, com as grandes manifestações de junho, ficou evidente o descolamento entre os dirigentes e as demandas populares. O slogan “Não me representa” era uma das senhas das manifestações por expressar a consciência de que o Brasil estava travado devido à incapacidade de aproximar a política dos processos populares. Por expor a incapacidade da nação de se livrar de uma “partidocracia” corrupta e precocemente envelhecida, a fim de abrir espaço para a participação popular mais efetiva e direta. Ninguém precisa ser representado para existir politicamente. Esta é a lição fundamental que devemos aprender daqui para a frente.
Diante do trauma representado por junho de 2013, haveria duas coisas a fazer: levar em conta tais demandas ou procurar fazer de tudo para que nada do que ela poderia produzir alcançasse a esfera da política. Não impressiona que a escolha tenha recaído na segunda alternativa. A partir de então, embalou-se uma reforma cujo único objetivo era afastar ainda mais a casta política da pressão das ruas. 
Assim, o País acorda com um projeto que visa, entre outras coisas, perpetuar os partidos majoritários e impedir ao máximo a constituição de novas legendas, por meio da limitação do acesso das menores a fundos, tempo de mídia e condições para campanha. Dessa forma, não há risco de que o poder saia da mão do consórcio miserável de agremiações hegemônicas às quais o Brasil está submetido. O jogo consiste em limitar ao máximo a escolha real dos eleitores, criar condições completamente desiguais para aqueles que não fazem parte da casta e impor cláusulas de barreira que devem vigorar o mais rápido possível, para impedir alguma escolha que possa sair do controle.  
O projeto visa ainda garantir o financiamento escuso por meio de doações empresariais e reduzir o tempo de campanha para afastar de vez os políticos da vidraça das ruas. Ele não traz uma mísera linha sobre o aprofundamento da participação popular direta, pois se trata de reduzir a política a uma discussão de bastidores, na qual lobistas e operadores se entendem. Mesmo a proposta de reforçar a Lei da Ficha Limpa, ao exigir que os políticos comprovem, no momento do registro de candidatura, não possuírem condenações por improbidade administrativa, acabou rejeitada na Câmara dos Deputados. Razão para tal decisão não há, mas, na política gangsterizada em que vivemos, razão não é necessária. 
Por trás de toda crise econômica há um impasse político. A crise brasileira tende a se perpetuar por não sermos capazes de nos voltarmos contra o que perpetua nossa miséria, a saber, não um partido ou outro no poder, mas algo bem pior, a consolidação da classe política brasileira como casta. Esta crise é a verdadeira matriz da debacle econômica. Não foi para tal república de casta que lutamos desde a redemocratização. Por isso, que não coloquem o peso dessa monstruosidade em nossas costas. Não temos nenhuma obrigação de defender um regime que funciona mal e bloqueia nossa criatividade. 












































A CASA GRANDE

Eterno golpismo


Mino Carta, na Revista CartaCapital



Na esteira do Cruzado 1, em outubro de 1986 José Sarney cometeu estelionato eleitoral logo após a vitória peemedebista nas eleições para os governos estaduais, Congresso e Assembleias, ao lançar o Cruzado 2 e arrastar o País para uma crise econômica de grande porte. A situação, complicada pelo fracasso da moratória do começo de 87, perdurou até o fim do mandato de Sarney.
Nem por isso se cogitou, em momento algum, do impeachment do ex-vice-presidente tornado presidente pela morte de Tancredo Neves, em claro desrespeito a qualquer regra do jogo pretensamente democrático.
Ao lançar o olhar além-fronteiras, temos o exemplo recente de Barack Obama, atingido em cheio pela explosão da bolha financeira de 2008, a mergulhar os Estados Unidos em uma crise de imponentes proporções. Obrigado a enfrentar a queda progressiva do valor do dólar, assoberbado pelas habituais pressões e ameaças das agências de rating, vítima de índices de aprovação cada vez mais rasos, Obama acabou sem o apoio da maioria parlamentar. Nem por isso sofreu o mais pálido risco de impeachment, mesmo porque hipóteses a respeito seriam simplesmente impensáveis aos olhos dos parlamentares americanos, mesmo republicanos.
Fernando-Henrique
FHC o mereceu, mas goza da impunidade automática / Crédito: Fernando Donasci/Ag. O Globo
Se a ideia já teve no Brasil razão de vingar, ao menos de ser aventada, foi em relação aFernando Henrique Cardoso: comprou votos para se reeleger e comandou privatizações que assumem as feições inequívocas das maiores bandalheiras-roubalheiras da história pátria, realizadas às escâncaras na certeza da impunidade. Praticante emérito do estelionato eleitoral, fez campanha para a reeleição à sombra da bandeira da estabilidade para desvalorizar o real 12 dias depois da posse para o segundo mandato.
FHC é recordista, conseguiu quebrar o Brasil três vezes. Ao cabo, entregou a Lula um país endividado até a raiz dos cabelos e de burras vazias. Ao longo da sua trajetória presidencial, jamais se imaginou a possibilidade do seu impeachment.
O príncipe dos sociólogos, outrora encarado como elemento perigoso por quantos hoje o veneram, tornou-se xodó da mídia nativa e dos senhores da casa-grande. Favor irrestrito e justificado: nunca houve alguém tão capacitado para a defesa dos interesses do reacionarismo na sua acepção mais primitiva.
Hoje em dia, FHC arca com o papel de oráculo da política brasileira com invulgar destemor. Tudo dentro dos conformes, a desfaçatez, a hipocrisia e o oportunismo tucanos não têm limites. O enredo é típico, assim como já é clássico o caso de Fernando Collor, que se retirou antes de sofrer impeachment. Exemplar entrecho, de todos os pontos de vista, que vivi de perto por mais de dois anos, quando dirigia a redação de IstoÉ.
Para mim a história começa 25 anos atrás. O então repórter da IstoÉ Bob Fernandes tocaia por dois meses o operador do presidente, PC Farias. Chega a hospedar-se por algum tempo no apart-hotel, onde em São Paulo vive o tocaiado. Enfim a revista publica uma reportagem de capa sobre as façanhas do PC, em que se relata tudo aquilo que o irmão de Collor diria a Veja um ano e meio depois, com exceção dos supositórios de cocaína.
Eis aí, neste roteiro, um aspecto ineludivelmente brasileiro. Quando da reportagem, a mídia cuidou de não lhe dar eco e seguimento, ao contrário do que se daria em qualquer país democrático e civilizado.
Até então, a casa-grande suportava que o presidente cobrasse pedágios elevadíssimos em relação a obras feitas e ainda assim o imaginava adequado ao cargo de propiciador de benesses. Fora a Veja, aliás, que popularizara a definição de Collor como “caçador de marajás”.
Com o tempo, a cobrança collorida passou a ser considerada insuportável e se entendeu que valeria submeter o cobrador a um aperto sério, embora comedido. Foi a hora da entrevista do irmão, esta sim imediatamente repercutida.
A CPI convocada para cuidar do caso moeu meses de sessões inúteis à falta de provas. Não fosse IstoÉ, daria em nada. A sucursal de Brasília da revista, dirigida por João Santana, foi capaz de demonstrar a ligação entre a Casa da Dinda e o Palácio do Planalto, e o encaminhamento do impeachment foi inevitável.
A Globo prontificou-se a chamar para as praças manifestações bastantes parecidas àquelas que pipocam de dois anos para cá, frequentadas, sobretudo, por burguesotes festeiros, enquanto a Veja ganhava o Prêmio Esso de Jornalismo, remota invenção alienígena destinada a consagrar o jogo corporativo, festival do compadrio da mídia nativa.
Há quem diga que estamos a transitar por uma conjuntura similar àquela, e se engana, está claro, por hipocrisia ou ignorância. O impeachment de Dilma Rousseff é totalmente impossível à luz da Constituição. Se quiserem mandar as aparências às favas, seria golpe mesmo, conforme conhecimento até do mundo mineral. Mas golpismo é inerente ao país da casa-grande. Editoriais, colunas, artigos e reportagens dos jornalões recordam, cada vez mais, os textos de 51 anos atrás. 





















16 setembro 2015

JORNAIS: POUCOS E IGUAIS

Os jornais, o ódio fabricado e a terceirização do ridículo



Laurindo Lalo Leal Filho, na Agência Carta Maior



(Artigo publicado na edição de setembro de 2015 da Revista do Brasil)
 
Houve época no Brasil em que a oferta diária de jornais passava de uma dezena. 
 
Embora a maioria estivesse alinhada com interesses conservadores, existiam alternativas. 
 
Basta lembrar a Última Hora, de Samuel Wainer, comprometida com a defesa de causas populares.
 
Hoje os jornais são poucos e quase sempre iguais. 
 
É comum vermos em determinados dias fotos e manchetes idênticas estampando suas capas. 
 
Mesmice que acompanha os conteúdos, unificados em linhas editoriais voltadas para fustigar diariamente o governo federal.
 
Mas evitam ultrapassar certa linha de ataques que os levaria ao ridículo. 
 
Afinal tem uma aura de seriedade que precisa ser preservada. 
 
Para escapar dessa encruzilhada abrem espaço para que terceiros digam o que eles gostariam de dizer.
 
Nos editoriais, onde se expressa a “voz do dono” surgem por vezes argumentos ponderados em defesa das instituições democráticas e de respeito aos resultados eleitorais. 
 
É a seriedade oferecida como álibi para dar a leitores radicalizados e personagens opacos os espaços necessários para as suas diatribes contra o governo, os movimentos populares e mesmo as instituições republicanas. 
 
As seções de cartas dos leitores são um espaço muito mais nítido que os editoriais para conhecermos o que pensam os donos do jornal sobre determinado assunto.
 
Alguns só publicam cartas que dizem o que lhes interessa, outros tentam disfarçar com mensagens divergentes, sempre em número e contundência menor que as outras.
 
Nas reportagens a escolha das fontes é primorosa. 
 
Da noite para o dia surgem “lideres” de movimentos cujas origens e sobrevivência são obscuras.
 
Ganham espaços generosos no noticiário porque dizem o que os jornais querem falar mas não têm coragem. 
 
Não voltariam, por exemplo, a acenar com o fantasma do comunismo, mas deixam que seus entrevistados o façam à vontade.
 
Nem fazem a apologia escancarada do impeachment da presidenta, sabedores da sua inconsistência jurídica, mas colocam essa palavra na boca dos seus personagens e fazem questão de destacá-la nas fotos das manifestações conservadoras. 
 
Para não falar dos defensores da “intervenção militar”, igualmente abrigados nos jornais por textos e imagens. 
 
O crime contido na mensagem raramente é mencionado.
 
Não vale relativizar tudo isso dizendo que pouca gente lê jornais. 
 
É verdade que as tiragens no Brasil são baixíssimas mas as mensagens impressas vão muito além da leitura do jornal. 
 
Elas reverberam pela internet, onde os sites de noticias que as reproduzem são os mais acessados.
 
Espalham-se pelas emissoras de rádio, tanto nas noticiosas como nas de entretenimento. 
 
As primeiras usando as notícias para a elaboração de suas pautas, indo atrás dos personagens dos jornais, para por no ar vozes até então desconhecidas. 
 
As outras, encaixando entre músicas, receitas e aconselhamentos pessoais a leitura do noticiário impresso, feita de forma sedutora, quase sempre coloquial. 
 
São os chamados comunicadores populares falando para milhões de ouvintes diariamente através do rádio.
 
Na televisão, esse aparelho que mesmo que não queríamos somos obrigados a ver em salas de espera, bares, restaurantes e outros lugares públicos, lá estão os telejornais e seus comentaristas repercutindo aquilo que está estampado nos jornais.
 
Para não falar das bancas nas ruas, onde transeuntes se juntam para ler e, às vezes, comentar as manchetes. 
 
Assim como dos outdoors e dos painéis nos pontos de ônibus e nas TVs dentro deles e dos vagões dos metrôs, mostrando as capas de revistas transformadas em peças de propaganda política fora do período eleitoral.
 
Resultado de tudo isso: a grande maioria da sociedade mesmo passando longe dos jornais impressos é por eles impactada absorvendo o ódio que destilam contra governos e partidos populares, vociferado em manifestações de rua e nas redes sociais. 
 
A linha editorial desses jornais é responsável também pela exacerbação da crise econômica fazendo com que muitas pessoas, mesmo imunes à ela, sintam-se atingidas. 
 
Os agentes econômicos se retraem, a crise se acentua e o pais todo sofre as consequências. 


15 setembro 2015

AS BANDEIRAS

Um presente para Lula


Janio de Freitas, na Folha



Ganhar presente é uma das delícias, só comparável à de dar presente. Deve ser por isso que Lula se mostrou, na Argentina, tão vibrante e afirmativo como o Lula dos velhos tempos. Mas não foi um presente argentino,se bem que Buenos Aires, com sua mesa e suas livrarias, possa ser um presente por si mesma.(PS: Com boa companhia, claro).

Foi lá que Lula recebeu a notícia de que Dilma se curvava aos cortes de verbas dos chamados programas sociais e do PAC, cobrados pelos neoliberais, pelos adeptos do impeachment e pela oposição vai com as outras. Sua reação imediata foi inflamada, com centro na declarada “incapacidade de entender esses ajustes que cortam ganhos sociais e dos trabalhadores”.

Mas Lula, arguto, sabe que a face política do plano de “ajuste” pregado pela oposição e aceito por Dilma lhe é favorável. É um presente, involuntário embora, que resolve o seu mais grave problema na eventualidade de desejar candidatar-se em 2018.

São, ou eram, duas possibilidades. Caso o governo de Dilma seguisse, durante o atual mandato, na batida que teve durante a maior parte do primeiro, a próxima sucessão não seria fácil para Lula. As insatisfações deixadas mesmo pelos melhores governos, a vontade quase instintiva de mudança, um cansaço vago mais efetivo, isso influi no eleitorado depois de governos longos como quatro mandatos de mesma linhagem. Por muito menos, Lula, com todo o seu êxito, sofreu para eleger Dilma. E Dilma se reelegeu ajudada por Aécio com sua campanha desprovida de ideia, obcecado com críticas ao governo e ataques à concorrente. José Serra já sucumbira a isso mesmo, e Aécio não percebeu.

O segundo mandato de Dilma não teve a oportunidade de imitar os melhores aspectos do primeiro. Mantenha-se com ela ou passe-se a outro, está condenado a outra imitação: a do “ajuste” aplicado em Portugal, na Grécia, em menor escala na Espanha e em outras terras de povos arrochados. No começo do ano, Joaquim Levy prometia que já neste segundo semestre teríamos os primeiros “benefícios” do seu “ajuste”. Veio aumentando as exigências para o “ajuste” à medida que a situação veio se agravando: no nono mês de ajustanças, nada melhorou, nada mostrou sequer indício de melhora próxima. Esse “ajuste” vai longe.

Vai até 2017 com folga. Ano em que a sucessão presidencial se lançará, precipitada pelas ansiedades do PSDB e, forçado, do PMDB. E então Lula, se disposto a candidatar-se, será ele o candidato da mudança. Com a bandeira de restauração da luta contra as desigualdades, de retomada do crescimento industrial e do emprego, da distribuição de renda e do Bolsa Família atualizado, do Brasil no mundo com a diplomacia ativa –tudo que ele vê como seu legado perdido. Terá ganho estas bandeiras de Dilma e dos seus adversários.

E a verdade é que –está provado desde Getúlio, depois Juscelino e Jango– são bandeiras muito fortes, tão persuasivas que os três continuam vivos. Ao passo que a oposição fica na contingência de repetir José Serra, impossibilitado de propor a continuidade do governo Fernando Henrique e de adotar posições contrárias às que vinham de lá, rejeitadas por acúmulo de inflação alta, arrocho e paralisia econômica.

A decisão de 2018 será nas urnas, não no impeachment.


PROVOCAÇÃO

Escaladas e ultimatos de grosso calibre


Alberto Dines, no Observatório da Imprensa



Justifica-se a preocupação da direção da “Folha” com a rápida deterioração da situação político-econômica. Um jornal responsável – qualquer que seja o tamanho da audiência, seu prestígio ou o acúmulo de vivências passadas – não pode imaginar-se “líquido” (para usar o conceito de Zygmunt Bauman), desobrigado de intervir naqueles momentos cruciais em que as circunstâncias deixam a esfera secundária para tornarem-se vitais para todos, pacientes e agentes.
Diante da inação e das perplexidades dos protagonistas políticos e econômicos (acrescidos subitamente pela entrada em cena dos órgãos fiscalizadores internacionais) impunha-se o acionamento do alarme para emergências.Folha-editorial-Ultima-chance-02friso
Esgotado o repertório habitual de advertências fazia-se necessário subir o tom e a intensidade, algo mais forte, retumbante, de maior calibre: um editorial na primeira página e de preferência num domingo.
O comando do jornal não vacilou: sapecou-o no fim de semana seguinte ao rebaixamento do país pela agencia de avaliação de riscos, Standard&Poor’s (13/Setembro).
Exposto com firmeza, sem meias palavras porém, firme. Sereno, mas não contemplativo, “A última chance” tem a capacidade de sacudir o leitor, retirá-lo das turbulências singulares e encaixá-lo na maré montante das desgraças nacionais.
O jornal errou justamente no título. Os ilustres camaradas foram longe demais. Esqueceram que jornalismo é um processo periódico, crescente, envolvente: editoriais na primeira página não são prescritos para doses únicas. Integram um encadeamento, fazem parte de uma escalada.
Ao não compreender esta sutileza e na ânsia de intervir imediatamente na derrubada de João Goulart, os editorialistas do poderoso “Correio da Manhã” dispararam uma dupla de misseis arrasadores na primeira página com apenas um dia de diferença.
O “Basta” (31 de Março de 1964) e o “Fora” (de 1 de Abril) não foram precedidos daquilo que na terminologia militar chama-se “salva de advertência”, Além disso, entre os dois não houve intervalo suficiente para que o governo Jango avaliasse seus erros e interrompesse a própria escalada iniciada no comício de 13 de Março.
Com apenas dois berros seguidos e ambos com estridência máxima evidenciou-se o fato consumado sem dar tempo aos não-radicais de ambos os lados para tentar uma intervenção.
É claro que as situações de 1964 e 2015 são rigorosamente diferentes. O atual cronograma nada tem de militar, é político, econômico, institucional. Descabido o “timing” castrense.
Em situações de emergência cabe à imprensa o papel de poder moderador. Ao contrário do que se diz no final do primeiro parágrafo, a administração Dilma Roussef   NÃO está por um fio, está garantida por um fato concreto, sólido – o resultado das eleições até agora não desmentidos, embora contestados.
O adjetivo “última” do título é absolutamente impróprio. Claramente provocador. Impressão reforçada pela edição da “Folha” no dia seguinte (segunda, 14/9) que parecia ter sido produzida por outro jornal, com outro padrão editorial, sobretudo outras premências.
Depois da última chance, o que – caos?
Um pluralzinho seria suficiente para esvaziar a abominável entonação de ultimato. Ou simplesmente convocar o brilhante redator para repetir a dose nos próximos dias/semanas/meses.
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Alberto Dines é jornalista, escritor e fundador do Observatorio da Imprensa