14 junho 2011

E C O N O M I A

O superávit primário e as prioridades do governo


Por Paulo Kliass(*)




A intensidade do destaque nas manchetes dos jornais ou nas chamadas das redes de televisão costuma variar de acordo com as exigências políticas do momento do anúncio. Nestes últimos dias, por exemplo, pouco se ouviu falar a respeito da divulgação dos números da execução fiscal e monetária do governo.

Mas não nos deixemos enganar pelas aparências. A firmeza com que as autoridades econômicas e a Presidenta resolveram encaminhar a solução ortodoxa para nossa economia, desde o começo de janeiro, continua a todo vapor. Mas o momento da apresentação dos resultados do superávit primário exigia um pouco mais de cautela. E assim foi feito. Afinal, tratava-se de período fortemente abalado pela crise de seu Ministro da Casa Civil envolvido em denúncias de súbito enriquecimento milionário, marcado pelo anúncio da inesperada privatização do sistema aeroportuário com o argumento de falta de recursos orçamentários e também lembrado pela divulgação do programa do governo federal destinado a eliminar a miséria. Falar em cifras bilionárias para usos tão obscuros, como os juros, não cabia muito bem no figurino recomendado.

Mas o superávit fiscal primário continua firme e forte! Os operadores do mercado financeiro e os interesses das grandes instituições bancárias não têm muito com o que se preocupar! O compromisso do governo com a transferência de vultosos recursos do orçamento público para a finalidade de pagamento de juros da dívida pública está mais do que assegurado. Na verdade, ele continua se realizando no nosso dia-a-dia, fazendo com que a drenagem de recursos arrecadados de toda a população por meio dos impostos seja direcionada para as contas de muito poucos - as elites que continuam a se locupletar com a irresponsabilidade de um governo que fala para muitos e beneficia, de fato, a bem poucos.

Apenas para recordar, o conceito de “superávit fiscal primário” corresponde a um eufemismo, criado pelos especialistas do mundo financeiro para assegurar que o esforço dos governos na manutenção do necessário equilíbrio entre suas receitas e suas despesas ganhasse uma sutil armadilha. Não basta mais apenas ser eficiente na gestão fiscal pura e simples. É necessário sempre gerar um superávit (nada contra, em princípio), mas o detalhe da perversidade vem depois: que estes recursos sejam direcionados para gastos com o pagamento de juros da dívida pública. Ou seja, tudo se passa como esse tipo de gasto orçamentário não fosse uma despesa.... Corta-se em educação, em saúde, em transporte, em infra-estrutura, enfim faz-se um grande esforço fiscal para ... acumular recursos e dirigi-los para a mais estéril de todas as despesas – a de natureza financeira. Não nos esqueçamos que estamos ainda sob a égide do corte de R$ 50 bi no Orçamento federal, anunciado no começo de fevereiro.

Os dados são oficiais. Durante os 4 primeiros meses do governo da Presidenta Dilma o resultado do superávit fiscal atingiu a incrível marca de R$ 57,3 bilhões! Ou seja, apenas entre janeiro e abril, o governo restringiu os gastos, fechou os torniquetes e conseguiu realizar mais de 50% do esforço previsto para todo o ano de 2011. Estamos destinando para essa rubrica o equivalente a 4,5% do nosso Produto Interno Bruto.

Mas os números que mais entristecem, ou nos indignam, são os relativos ao pagamento de juros. Ali, o relatório do Banco Central parece não ter problema algum de consciência ao informar que, ao longo dos mesmos 4 meses, o governo transferiu o montante de R$ 78,6 bi para o pagamento de juros da dívida pública, equivalente a 6,2% do PIB.

Pois é, pelos valores envolvidos e pela obstinação em atingir as metas, como bom aluno esforçado, tudo indica que essa continua a ser a verdadeira prioridade dos que estão no comando do nosso aparelho de Estado: transferir recursos para o setor financeiro!

Mas como governar exige também outras decisões e medidas para além de satisfazer as necessidades dos poderosos do mercado financeiro, a equipe da presidenta vai tocando o barco do jeito que pode.

A ampliação e a modernização da rede aeroportuária é exigência antiga. A polêmica e arriscada decisão de trazer a Copa do Mundo para cá em 2014 só sublinhou o atraso de nossas instalações. Mas como o governo insiste em afirmar que “não tem recursos”, optou-se pelo modelo da privatização dos aeroportos. O fato que ninguém menciona é que as tais “vultosas” necessidades de investimento seriam tranquilamente cobertas por um desvio de rota dos recursos do pagamento de juros. Os valores dos investimentos necessários para o setor variam de acordo com a paternidade dos estudos considerados, mas em geral oscilam entre R$ 8 bi e R$ 30 bi ao longo de vários anos, com uma média de dispêndio anual não superior a R$ 3 bi. Ora, apenas durante o mês de março o governo transferiu R$ 21 bi para o setor financeiro sob a forma de juros. Isso equivale a quase R$ 1 bi por dia útil. É incrível, mas bastariam apenas 3 dias para assegurar à Infraero os recursos para as obras necessárias ao longo do ano todo! Mas, não! Com o falacioso argumento de que não há recursos, o governo optou por ceder a concessão por 20 anos aos consórcios privados. Fico só imaginando, aqui com meus botões, como vão se dar as pressões e chantagens pela obtenção de reajustes das tarifas lá em 2029...

No dia seguinte à divulgação dos resultados do superávit primário, a Presidenta anunciou com muita pompa um de seus compromissos de campanha, a política de erradicação da miséria. Perfeito! Excelente medida, um mínimo que o nosso País tinha mesmo que fazer no caminho da redução das desigualdades. Mas, nos aprofundemos um pouco mais, para além das aparências. O novo Programa incorpora as políticas do já existente Bolsa Família e as amplia, incorporando mais famílias beneficiadas e atingindo outras áreas, com complementação de programas em educação, saúde, capacitação profissional, agricultura familiar, preservação ambiental etc.

Porém, os números apresentados são referentes aos programas consolidados. Ao longo dos 4 anos de governo, a equipe de Dilma pretende alocar R$ 80 bilhões. Ou seja, entre 2011 e 2014 deverá um gasto anual de R$ 20 bilhões. Ora, mas apenas o Bolsa Família já tinha previsão orçamentária superior a R$ 16 bi para o presente ano. E esses valores pretendem atingir um universo de mais de 16 milhões de pessoas.

Quem tiver a curiosidade de comparar os valores, chegará à conclusão que, apenas nos 4 primeiros meses deste ano, o governo já gastou na esfera financeira o equivalente a esse programa quadrienal. Sim, pois já transferiu quase R$ 80 bi para o pagamento de juros, que beneficiam uma parcela substancialmente mais reduzida que aqueles milhões de famílias.

Ao invés de sinalizar com mudanças de orientação, o governo parece só confirmar suas verdadeiras prioridades, aquelas que consomem as quantias expressivas de seus recursos. Dias 7 e 8 de junho teremos a nova reunião do COPOM, que deverá decidir sobre a SELIC, a taxa de juros oficial. Atualmente ela está definida no patamar de 12%. Com o valor da dívida pública federal em R$ 1,65 trilhão, caso não haja redução da taxa, os valores gastos com pagamento de juros ao longo do presente ano certamente serão superiores a R$ 200 bi.

Por outro lado, no governo concreto e real, aquele que deve lidar com pessoas, escolas, hospitais, estradas, reforma agrária, etc a coisa é bem diferente. A cada pleito na definição de novas políticas públicas voltadas para a maioria, os interessados pouco conseguem fazer, pois os ministérios têm suas verbas contingenciadas. A resposta é sempre a mesma: “não há recursos disponíveis”...

Como vimos, cada qual escolhe suas prioridades.




(*)Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.


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