30 maio 2014

EXORCISTAS DE PAPEL

O Estadão contra a participação


Antônio Lassance, na Agência Carta Maior



Perigo vermelho
A turma do editorial do Estadão está em pânico. Apelou e perdeu a razão. Também, não era para menos. O jornal que ajudou a derrubar os governos Vargas, em 1954, e João Goulart, em 1964, não dorme em serviço.  Dilma que se cuide, pois estamos, de novo, em um ano de quatro.


Mais uma vez, e antes que seja tarde, o veículo que tem uma longa folha de serviços prestados ao País está pronto para defender a democracia de seu principal algoz: o povo.

O jornal descobriu e denunciou, em um editorial ('Mudança de regime por decreto', de 29/5), que o governo da presidenta Dilma Rousseff está cometendo um crime de lesa pátria.

Os ideólogos das furiosas linhas chamam Dilma de 'companheira'. Calma, os 'companheiros' editorialistas continuam os mesmos. Apenas estão usando o pronome de tratamento de forma irônica.

Alertam para o grave risco que temos pela frente: ‘a presidente Dilma Rousseff quer modificar o sistema brasileiro de governo’ por decreto, brada o jornal que sabe defender um regime como ninguém.

Abram alas para os companheiros vetustos que falam de democracia com autoridade:

‘O Decreto 8.243, de 23 de maio de 2014, que cria a Política Nacional de Participação Social (PNPS) e o Sistema Nacional de Participação Social (SNPS), é um conjunto de barbaridades jurídicas, ainda que possa soar, numa leitura desatenta, como uma resposta aos difusos anseios das ruas. Na realidade é o mais puro oportunismo, aproveitando os ventos do momento para impor velhas pretensões do PT, sempre rejeitadas pela Nação, a respeito do que membros desse partido entendem que deva ser uma democracia.’

E nós, incautos, dormindo, trabalhando e nos preparando para a Copa do Mundo de Futebol - quanta alienação! O gigante dormiu de novo. A coisa da ‘leitura desatenta’ é feita para gente como nós, míopes nas entrelinhas.

Por sorte, nada escapa à eterna vigilância dos companheiros que cavalgam de trombeta.

Cuidado com essa coisa de ‘sociedade civil’, pede o Estadão. Isso é um perigo.

Estejam todos atentos, pois querem destruir a democracia. Como pretendem fazê-lo? Trazendo a sociedade civil para dentro do governo.

Os funéreos redatores jogaram a pá de cal até em liberais moderninhos como Alexis de Tocqueville e John Stuart Mill, que defendiam a participação como base da boa representação, no século XIX.

A Constituição reescrita por um editorial

Em um de seus parágrafos mais histéricos, o editorial que baba afirma que ‘a companheira Dilma não concorda com o sistema representativo brasileiro, definido pela Assembleia Constituinte de 1988, e quer, por decreto, instituir outra fonte de poder: a 'participação direta'.’

Alguém poderia enviar de presente ao Estadão, pelos Correios, um exemplar da Constituição, pois o deles deve ter sumido faz tempo.

Já se esqueceram do parágrafo único do artigo 1o de nossa Carta Magna  , que diz:

‘Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição’.

Provavelmente não chegaram sequer ao artigo 84, que dá ao Presidente da República o poder de expedir decretos sobre a organização e funcionamento da administração federal, que é exatamente o objeto do abominado ato oficial.

Não bastassem alguns ministros do Supremo, também o Estadão agora quer reescrever a Constituição, a começar por editoriais - quem sabe, um dia, via classificados.

Ficaria assim o primeiro artigo da Constituição, pelas mãos dos companheiros trombeteiros:

‘Ora, a participação social numa democracia representativa se dá através dos seus representantes no Congresso, legitimamente eleitos.’

O Estadão acaba de proclamar o parlamentarismo, pois esqueceu-se até de incluir a Presidência da República como uma das instâncias de representação. Ou seja, Eduardo Cunha e Renan Calheiros, tudo bem; mas Dilma Rousseff, nem pensar.

Os tocadores de berrante pedem àqueles que consideram suas vaquinhas de presépio (‘Que o Congresso esteja atento’ e que venha ‘o STF, para declarar a inconstitucionalidade do decreto’) para derrubarem a norma do Executivo.

O argumento pífio é o de que ela ‘fere o princípio básico da igualdade democrática (‘uma pessoa, um voto’)’.

Hora de mandar mais um exemplar da Constituição para o Estadão. Nem o Brasil, nem qualquer país federalista do mundo segue o sistema de ‘uma pessoa, um voto’ na representação parlamentar.

Os caríssimos companheiros editorializantes até hoje não descobriram que nem a Câmara dos Deputados, nem o Senado Federal são constituídos pelo tal sistema de ‘uma pessoa, um voto’. Erraram de país.

A única instância de representação em que essa regra é aplicada, para o azar do Estadão, é justamente a Presidência da República.

Argumentos similares aos desse editorial já foram e continuam sendo usados contra invenções diabólicas como, por exemplo, o orçamento participativo - coisa perigosíssima, nascida da invencionice petista, dilmista, mensaleira e autoritária dos comissários.

O Estadão chamou para a briga. E pede ajuda a quem quer que seja para salvar nosso sistema representativo.

Sim, esse mesmo sistema representativo que todos os dias os editoriais do Estadão e de muitos outros jornais ajudam a desmoralizar, a esculhambar, a retratar como um ninho de bandidos, é esse sistema que eles conclamam que seja salvo. Avante, ‘companheiros’!

Dilma é acusada de ‘descaramento’ por conta do tal decreto. Aí descobrimos para que serve o cavalo do Estadão: para ajudar a escrever editoriais com coices.

Exorcistas de papel

Em momento algum o Editorialíssimo Jornal, do alto de sua cavalgadura, abandona a postura autoritária e de tutela da opinião pública. Jamais passou, por baixo das patas de suas ferraduras, a ideia de recomendar ao leitor um cuidado básico: o de ler o decreto.

O jornal, como sempre, confia no poder de seu berrante de produzir o efeito manada nos que compram suas páginas. Espera que simplesmente ruminem sobre o decreto: ‘não li e não gostei’.

Quem puder ler a norma verá que a mesma restringe-se a dar recomendações à administração pública federal. Nem Estados, nem Municípios, nem o DF estão obrigados a segui-la.

A Câmara, o Senado e o STF, invocados pelos exorcistas de papel, não têm nada a ver com a coisa e podem permanecer sem sociedade civil, se assim preferirem, no intuito de agradar o jornal.

Sabem qual o grande perigo do decreto? O grande perigo é o de serem criados conselhos e comissões de políticas públicas; conferências nacionais; ouvidorias; mesas de diálogo; fóruns interconselhos; audiências públicas; consultas públicas; e ambientes virtuais de participação social.

Se é disso que o Estadão tem medo, é bom esconder-se debaixo da cama imediatamente, pois, com esse decreto, o bicho vai pegar.


(*) Antonio Lassance é cientista político.


MANIPULAÇÃO POLÍTICA

Barbosa protagonizou falso moralismo que
comprometeu o CNJ


, no Jornal GGN 
O anúncio da aposentadoria do Ministro Joaquim Barbosa livra o sistema judicial de uma das duas piores manchas da sua história moderna.
O pedido de aposentadoria surge no momento em que Barbosa se queima com os principais atores jurídicos do país, devido à sua posição no caso do regime semi-aberto dos condenados da AP 470. E quando expõe o próprio CNJ (Conselho Nacional de Justiça) a manobras pouco republicanas. E também no dia em que é anunciada uma megamanifestação contra seu estilo ditatorial na frente do STF.
A gota d’água parece ter sido a PEC 63 – que dispõe sobre o aumento do teto salarial da magistratura.
Já havia entendimento no STF que corregedor não poderia substituir presidente do CNJ na sua ausência. Não caso da PEC 63 – que aumenta o teto dos magistrados – Barbosa retirou-se estrategicamente da sessão e colocou o corregedor Francisco Falcão na presidência. Não apenas isso: assumiu publicamente a defesa da PEC e enviou nota ao Senado argumentando que a medida seria “uma forma de garantir a permanência e estimular o crescimento profissional na carreira” (http://tinyurl.com/mf2t6jl).
O Estadão foi o primeiro a dar a notícia, no dia 21. À noite, Barbosa procurou outros veículos desmentindo a autoria da nota enviada ao Senado ou o aval à proposta do CNJ (http://tinyurl.com/m5ueezb).
Ontem, o site do CNJ publicou uma nota de Barbosa, eximindo-se da responsabilidade sobre a PEC.
O ministro ressalta que não participou da redação do documento, não estava presente na 187ª Sessão Ordinária do CNJ no momento da aprovação da nota técnica, tampouco assinou ofício de encaminhamento do material ao Congresso Nacional.

A manipulação política do CNJ

Não colou a tentativa de Barbosa de tirar o corpo do episódio. É conhecido no CNJ – e no meio jurídico de Brasília – a parceria estreita entre ele e o corregedor Francisco Falcão.
É apenas o último capítulo de um jogo político que vem comprometendo a imagem e os ventos de esperança trazidos pelo CNJ.
Para evitar surpresas como ocorreu no STF - no curto período em que Ricardo Lewandowski assumiu interinamente a presidência -, Barbosa montou aliança com Falcão. Em sua ausência, era Falcão quem assumia a presidência do órgão, embora a Constituição fosse clara que, na ausência do presidente do CNJ (e do STF) o cargo deveria ser ocupado pelo vice-presidente – no caso Ricardo Lewandowski.
Muitas das sessões presididas por Falcão, aliás, poderão ser anuladas.
Com o tempo, um terceiro elemento veio se somar ao grupo, o conselheiro Gilberto Valente, promotor do Pará indicado para o cargo pelo ex-Procurador Geral da República Roberto Gurgel.
Com o controle da máquina do CNJ, da presidência e da corregedoria, ocorreram vários abusos contra desafetos. Os presos da AP 470 não foram os únicos a experimentar o espírito de vingança de Barbosa.
Por exemplo, o presidente do STJ (Superior Tribunal de Justiça) Félix Fischer é desafeto de Falcão e se candidatará ao cargo de Corregdor Geral quando este assumir a presidência do STJ. De repente, Fischer é alvejado por uma denúncia anônima feita diretamente a Joaquim Barbosa, de suposto uso de passagens aéreas para levar a esposa em viagens internacionais. O caso torna-se um escândalo público e o conselheiro Gilberto Martins é incumbido de investigar, na condição de corregedor interino (http://tinyurl.com/qg6cjx3) .
Passa a exigir, então, o detalhamento de todas as viagens oferecidas pelo STJ a ministros, mulheres de ministros e assessores (http://tinyurl.com/l6ezw3k). A investigação é arquivada por falta de fundamentos mas, àquela altura, o nome de Fischer já estava lançado na lista de escândalos.
A contrapartida de Falcão foi abrir uma série de sindicâncias contra desembargadores do Pará, provavelmente adversários de Gilberto Martins.
Nesse jogo de sombras e manobras, Barbosa foi se enredando em alianças e abandonando uma a uma suas bandeiras moralizadoras.
Sua principal agenda era combater o “filhotismo”, os escritórios de advocacias formado por filhos de ministros.
Deixou de lado porque Falcão, ao mesmo tempo em que fazia nome investindo-se na função de justiceiro contra as mazelas do judiciário, tem um filho – o advogado Djaci Falcão Neto – que atua ostensivamente junto ao STJ (mesmo quando seu pai era Ministro) e junto ao CNJ (http://tinyurl.com/ku5kdl5), inclusive representando tribunais estaduais. Além de ser advogado da TelexFree, organização criminosa que conseguiu excepcional blindagem no país, a partir da falta de ação do Ministro da Justiça.
Por aí se entende a razão de Falcão ter engavetado parte do inquérito sobre o Tribunal de Justiça da Bahia que envolvia os contratos com o IDEP (Instituto Brasiliense de Direito Público), de Gilmar Mendes.
E, por essas estratégias do baixo mundo da política do Judiciário, compreende-se porque Barbosa e Falcão crucificaram o adversário Fischer, mas mantiveram engavetado processo disciplinar aberto contra o todo-poderoso comandante da magistratura fluminense, Luiz Sveiter, protegido da Rede Globo.
 
 
 

JÁ VAI TARDE

O NOVO PAPEL DE JOAQUIM

Ao deixar STF, ministro ficará longe de cenas constrangedoras que aguardam futuro da AP 470

Paulo Moreira Leite, em seu blogue
 
A saída de Joaquim Barbosa do STF representa um alívio para a Justiça do país e é uma boa notícia para os fundamentos da democracia brasileira. Abre  a oportunidade para a recuperação de noções básicas do sistema republicano, como a separação entre poderes, e o respeito pelos direitos humanos – arranhados de forma sistemática no tratamento dispensado aos réus da Ação Penal 470, inclusive quando eles cumpriam pena de prisão.
Ao aposentar-se, Joaquim Barbosa ficará longe dos grandes constrangimentos que aguardam “o  maior julgamento do século,” o que pode ser util na preservaçãdo do próprio mito.
Para começar, prevê-se, para breve, a absolvição dos principais réus do mensalão PSDB-MG, que sequer foram julgados – em primeira instância – num tribunal de Minas Gerais. Um deles, que embolsou R$ 300 000 do esquema de Marcos Valério – soma jamais registrada na conta de um dirigente do PT -- pode até sair candidato ao governo de Estado.
Joaquim  deixa o Supremo depois de uma decisão que se transformou em escândalo jurídico.  Num gesto que teve como consequencia real manter um regime de perseguição permanente aos condenados da AP 470, revogou uma jurisprudência de quinze anos, que permitia a milhares de réus condenados ao regime semi-aberto a trabalhar fora da prisão -- situação que cedo ou tarde iria incluir José Dirceu, hoje um entre tantos outros condenados. Mesmo Carlos Ayres Britto, o principal aliado que Joaquim já fez no STF, fez questão de criticar a decisão. Levada para plenário, essa medida é vista como uma provável derrota de Joaquim para seus pares que, longe de expressar qualquer maquinação política de adversários, apenas reflete o desmonte de sua liderança no STF. 
Em outro movimento na mesma direção,  o Supremo acaba de modificar as regras para os próximos julgamentos de políticos. Ao contrário do que se fez na AP 470 – e só ali -- eles não serão julgados pelo plenário, mas por turmas em separado do STF. Não haverá câmaras de TV. E, claro:  sempre que não se tratar de um réu com direito a foro privilegiado, a lei será cumprida e a ninguém será negado o direito de um julgamento em primeira instância, seguido de pelo menos um novo recurso em caso de condenação. É o desmembramento, aquele recurso negado apenas aos réus da AP 470 e que teria impedido, por exemplo, malabarismos jurídicos como a Teoria do Domínio do Fato, com a qual o Procurador Geral da Republica tentou sustentar uma denúncia sem provas consistentes contra os principais réus. 
 Hoje retratado como uma autoridade inflexível,   incapaz de qualquer gesto inadequado para defender interesses próprios – imagino quantas vezes sua capa negra será exibida nos próximos dias, num previsível efeito dramático  – Joaquim chegou ao STF pelo caminho comum da maioria dos mortais. Fez campanha.
 Quando duas aguerridas parlamentares da esquerda do PT – Luciana Genro e Heloísa Helena – ameaçaram subir à tribuna do Congresso para denunciar um caso de agressão de Joaquim a sua ex-mulher, ocorrido muitos anos antes da indicação, quando o casal discutia a separação,  o presidente do partido José Genoíno (condenado a seis anos na AP 470) correu em  defesa do candidato ao Supremo. Argumentou que a indicação representava um avanço importante na vitória contra o preconceito racial e convenceu as duas parlamentares. (Dez anos depois desse gesto, favorável a um cidadão que sequer conhecia, Joaquim formou sucessivas juntas médicas para examinar o cardiopata Genoíno. Uma delas autorizou a suspensão da prisão domiciliar obtida na Justiça).
 O diretor do Banco do Brasil Henrique Pizzolato (condenado a 12 anos na AP 470) foi procurado para dar apoio, pedindo a Gilberto Carvalho que falasse de seu nome junto a Lula. José Dirceu (condenado a 10 anos e dez meses, reduzidos para sete contra a vontade de Joaquim), também recebeu pedido de apoio. Dezenas – um deputado petista diz que eram centenas – de cartas de movimentos contra o racismo foram enviadas ao gabinete de Lula, em defesa de Joaquim. Assim seu nome  atropelou outro juristas negros – inclusive um membro do Tribunal Superior do Trabalho, Carlos Alberto Reis de Paula – que tinha apoio de Nelson Jobim para ficar com a vaga.
Quando a nomeação enfim saiu, Lula resolveu convidar Joaquim para acompanha-lo numa viagem presidencial a África. O novo ministro recusou. Não queria ser uma peça de marketing, explicou, numa entrevista a Roberto dÁvila. Era uma referência desrespeitosa, já que a África foi, efetivamente, um elemento importante da diplomacia brasileira a partir do governo Lula, que ali abriu embaixadas e estabeleceu novas relações comerciais e diplomáticas.
  De qualquer modo, se era marketing convidar um ministro negro para ir a África, por que não recusar  a mesma assinatura da mesma autoridade que o indicou   para o Supremo?
    
    À frente da AP 470, Joaquim Barbosa jamais se colocou na posição equilibrada que se espera de um juiz. Não pesou os dois lados, não comparou argumentos.
    Através do inquérito 2474, manteve em sigilo fatos novos que poderiam embaralhar o trabalho da acusação e que sequer chegaram ao conhecimento do plenário do STF – como se fosse correto selecionar elementos de realidade que interessam a denúncia,  e desprezar aqueles que poderiam, legitimamente, beneficiar os réus.   Assumiu o papel de inquisidor, capaz de tentar destruir, pela via do judiciário, aquilo que os adversários do governo se mostravam incapazes de obter pelas urnas.
     Ao verificar que o ministro era capaz de se voltar em fúria absoluta contra as forças políticas que lhe deram sustentação para chegasse a mais alta corte do país, os adversários da véspera esqueceram por um minuto as desconfianças iniciais, as críticas ao sistema de cotas e todas políticas compensatórias baseadas em raça.
    Passaram a dizer, como repete Eliane Cantanhede na Folha hoje, que Joaquim rebelou-se contra o papel de “negro dócil e agradecido.” Rebelião contra quem mesmo? Contra o que? A favor de quem?
     Já vimos e logo veremos.
     Basta prestar atenção nos sorrisos e fotografias da campanha presidencial. 



 


AI,AI, AI, MEU NETINHO

Eduardo Campos mancha a honra do avô

Muito à vontade

A definição de Eduardo Campos contra qualquer mudança na Lei da Anistia, para possível punição legal de criminosos da repressão, divide-se em duas partes bem distintas. Na primeira, o pré-candidato à Presidência adota o chavão dos militares acusados de tortura, assassinatos e desaparecimentos: "Acho que a Lei da Anistia foi para todos os lados. O importante agora não é ter uma visão de revanche". Na segunda, Eduardo Campos reforça, por um dado pessoal, a sua identificação com aqueles militares: "Falo isso muito à vontade porque a minha família foi vítima do arbítrio".

Uma das maiores vítimas imediatas do golpe em 1964 foi Miguel Arraes, então governador de Pernambuco. Retirado do palácio sob a mira de armas, Arraes foi preso e, depois dos maus-tratos esperáveis, deportado para a ilha de Fernando de Noronha como prisioneiro sem condenação e sem prazo. Quando, afinal, pôde voltar ao continente e à vida civil, a iminência de nova prisão levou-o a asilar-se e daí ao exílio.

Eduardo Campos é neto de Miguel Arraes. Por isso diz estar "muito à vontade" quando subscreve o pretexto da "anistia para os dois lados". Nas duas condições, está, portanto, desafiado a indicar os crimes de que seu avô foi anistiado. Os crimes cuja anistia justifica, no que lhe cabe, a anistia do lado dos que o prenderam depois de o derrubarem do governo conquistado pelo voto e exercido com o que sempre se achou ser impecável dignidade.

No exterior, residente na Argélia e depois na França, Arraes integrou a oposição ativa à ditadura brasileira. É possível que, do ponto de vista de Eduardo Campos, oposição ao regime dos generais ditadores fosse prática criminosa, como os próprios consideraram. A identificação de Eduardo Campos com o pretexto usado pelos militares reforça tal hipótese. A ser assim, porém, sua pretensão a concorrer à Presidência de um regime democrático não poderia ser vista senão como farsa. Farsa perigosa, como sugerem as identificações que exibe.

Não menos sugestivo é que esse mesmo Eduardo Campos integra, com os seus conceitos, o Partido Socialista Brasileiro. Vê-se que aprecia essa coisa de "para todos os lados". Mas, se não tem fatos a narrar que justifiquem a anistia de Arraes como compensação para a anistia do "outro lado", então Eduardo Campos está manchando a história de um homem honrado. Da qual e do qual até agora só tirou proveito: sem ambas, não se sabe o que seria, mas por certo não teria sido o que já foi e não seria o que é.
 
 
(Extraído do ESQUERDOPATA)
 
 

29 maio 2014

O RESTO É ARROCHO

O emprego e a urna


Saul Leblon, na Agência Carta Maior



Berço do Renascimento e das ideias libertárias, a Europa se transformou em um enorme depósito de desempregados.

Vinte e seis milhões de trabalhadores foram cuspidos do mercado de trabalho pelo arrocho neoliberal que se arrasta por seis anos.

Vinte e cinco por cento dos eleitores do continente responderam à desordem dando seus votos às ideias xenófobas, de extrema direita, eurocéticas e fascistas nas eleições deste domingo, na renovação do parlamento  europeu.

O conservadorismo brasileiro faz olhar de paisagem.

A mídia trata o terremoto como um sismo em terras distantes.

Um assunto estranho a sua pauta.

Não é.

Os interesses que modularam o funeral do Estado Social europeu nas últimas décadas, e jogaram a pá de cal  nesta crise,  estão mais do que nunca atuantes na disputa presidencial em curso no Brasil.

O palanque conservador nomeia o arrocho fiscal, de consequências sabidas, como a principal alavanca corretiva para os gargalos da economia brasileira.

Trata-se de recuar o Estado para o mercado agir e a sociedade prosperar.

É a ‘contração expansiva’.

Bordão do discurso ortodoxo, ela resultou no estado de sítio econômico imposto à Grécia, Espanha, Portugal, Irlanda etc

A semeadura foi colhida nas urnas de domingo.

A  extrema direita capturou um em cada quatro votos depositados nas urnas.

Seu lema remete à legenda  dos salvadores da pátria dos anos 30.

Suásticas de ilustrativa rigidez prometiam então substituir a desordem econômica  alarmante por uma ordem policial atuante.

Nenhuma outra dimensão da luta política condensa de forma tão significativa o conflito de interesses subjacente às eleições brasileiras de 2014 quanto a pergunta:

- Que futuro os candidatos reservam ao  emprego no país? (leia a arguta análise Wanderley Guilherme dos Santos; nesta pág) .

A economia brasileira terá que  criar 6,7 milhões de vagas nos próximos cinco anos. Pouco mais de 1,2 milhão por ano,  para responder ao aumento da população economicamente ativa.

O cálculo é da Organização Internacional do Trabalho, a OIT.

No ciclo de governos do PT (de 2003 a 2013), o Brasil criou cerca de 15,8 milhões de empregos.

Os oito anos do governo Fernando Henrique Cardoso deixaram  um saldo  de apenas  800 mil vagas na economia.

Assim: um corte de milhão de vagas no primeiro mandato e um acréscimo de 1,8 milhão de empregos nos quatro anos seguintes.

A  criação média de empregos no Brasil sob a presidência do PSDB, portanto,  foi de 100 mil postos por ano.

No ciclo de governos progressistas (2003/2013)  foi de 1,5 milhão/ano.

Ao mês, o PT gerou mais vagas do que cada ano de mandato tucano.

As condições econômicas foram distintas, pode-se argumentar.

Sem dúvida.

Assim como é forçoso recordar:  desde 2007/2008 o mundo mergulhou na maior crise do capitalismo dos últimos 80 anos.

O que teria sido do país se os sábios banqueiros do PSDB estivessem no comando da economia então?

Não estavam e  11 milhões de empregos foram criados no período: quase 1,6 milhão de vagas por ano.

Ignorar a lógica econômica que condicionou o resultado das eleições europeias é perturbador.

Os mercados festejaram.

As bolsas europeias subiram com força na segunda-feira e nesta terça, enquanto os números consolidados dimensionavam os talhos no futuro da democracia.

A Frente Nacional (FN), de extrema direita, passará a dispor de 24 cadeiras parlamentares, tendo alcançado cerca de 25% dos votos na França – 18 pontos acima do último pleito (leia a análise de Eduardo Febbro, de Paris; nesta pág.).

Na Inglaterra, o direitista Partido da Independência se tornou a  bancada mais forte, ultrapassando o Partido Trabalhista de David Cameron (leia a análise de Marcelo Justo, de Londres; nesta pág.)

Na Áustria, o Partido da Liberdade (FPÖ) conquistou 20,5% dos votos em todo o país.

Nos  países escandinavos, as propostas da extrema direita abriram espaços inéditos  no Parlamento de Estrasburgo, no qual 140 dos 751 assentos serão ocupados por deputados para os quais o ideário chauvinista e antissemita não é estranho.

O coletivo dos professores banqueiros do PSDB --e seu ativo retransmissor midiático-- está longe de endossar o nacionalismo de  uma Europa machucada pelo alto preço da subordinação a uma moeda manejada em benefício de Berlim,  Bruxelas e da alta finança.

Mas as ideias econômicas que alimentam seus candidatos formam costelas do mesmo espinhaço a partir do qual ganharam vida própria os Le Pen, o Aurora Dourada, os Nigel Farage e assemelhados.

A saber:

a) o país vive uma pressão inflacionária decorrente do excesso de demanda;

b) este deriva do abusivo aumento do poder de compra dos trabalhadores, puxado pelo reajuste real de 60% do salário mínimo nos governos Lula/Dilma;

c) a renda das famílias cresce ininterruptamente há mais de 4 anos ;

d) sustenta o insustentável: a expansão da demanda interna --atendida, em mais de 20%, no caso de manufaturados, pelas importações;

e) a solução para o estresse macroeconômico, somatizado em alta de preços, passa por um tratamento de choque: alta dos juros, arrocho fiscal do Estado, desemprego e  achatamento salarial.

A mídia cuida de dar a esse receituário um sentido de urgência, travestido na narrativa diuturna de um país aos cacos.

Ingredientes objetivos evocados no confronto político de uma época muitas vezes são idênticos dos dois lados da disputa.

O que distingue as margens do rio é menos a sua composição e mais a natureza determinante que se atribui a cada um dos  elementos.

Resistir passa por identificar politicamente os fatores que podem diferenciar a qualidade social da transição para um novo ciclo.

Hoje, por exemplo:

- a inflação reflete pressões conjunturais de safra, mas também outras que vieram para ficar, decorrentes de uma mudança estrutural na economia;

- o setor de serviços (telefonia, saúde, energia, bancos etc.), que teve gordas fatias capturadas pelo capital estrangeiro (leia neste blog ‘Um tabu que sangra o Brasil’)  elevou sua participação no PIB, de 63% para 68,5% nos últimos oito anos;

- a inflação dos serviços tem crescido acima de 8% ao mês (dois ou três pontos acima da média);

- combate-se isso com mais oferta, fiscalização e, sobretudo, regras de reinvestimento;

- nenhuma ‘abertura comercial’ do tipo ‘deixai o mercado agir por conta própria’ vai resolver: serviços são de difícil importação;

- tampouco a alta dos juros supera o impasse; na verdade, apenas agravará seu outro polo : o enfraquecimento do setor industrial;

- o recuo da industrialização vem de longe: em 1985 o setor fabril produzia 27% da riqueza agregada ao PIB brasileiro; em 1996  a fatia retrocederia oito pontos e mais quatro  agora, situando-se em 14%;

- a desindustrialização pesada do ciclo tucano foi impulsionada justamente pela panaceia  livre mercadista que se pretende reeditar:  privatizações, câmbio desfavorável, juro alto e abertura comercial suicida.

Os governos do PT agiram sobre essa lógica parcialmente. E de forma  lenta.

Manteve-se até 2008 a dupla turbina do juro alto e câmbio valorizado.

A política econômica dos últimos anos, no entanto, introduziu um redefinidor potente na equação.

Ele dificulta sobremaneira a aplicação da vacina ortodoxa novamente.

Os programas sociais, o salário recomposto e a forte geração de emprego  elevaram o mercado de massa à inédita condição de ator principal do enredo econômico brasileiro.

A centralidade desse novo protagonista vincula o ajuste preconizado pelo conservadorismo  a uma taxa de desemprego de teor inflamável equivalente à produzida pela troika na UE.

Tampouco, porém, a nova escala social cabe no figurino  da infraestrutura e da logística existente.

Estudos de organismos do Banco Mundial, citados pelo jornal Valor esta semana, indicam que o estoque de infraestrutura existente no país equivale a 16% do PIB.

A média nos países desenvolvidos é de 71% do PIB.

O novo mercado de massa reúne  53% da população, que nos últimos 12 anos elevou, por exemplo, em 182% o número de passageiros nos aviões e fez crescer em 182,5% o trânsito nas rodovias.

Como superar esse descompasso no menor prazo de tempo possível é a pergunta que grita na equação política brasileira, sendo cada vez mais audível nas ruas.

O conservadorismo quer resolver o impasse cortando o mal pela raiz.

Devolvendo a pasta de dente ao tubo do desemprego e do arrocho saneador.

Foi a solução endossada pela socialdemocracia  europeia com as consequências contabilizadas no último domingo.

Cabe ao campo progressista brasileiro aprofundar a lógica oposta,  abraçada pela esquerda que emerge das cinzas da rendição socialdemocrata.

Ou seja, dar ao novo protagonista social o espaço democrático necessário para renovar a  correlação de forças do  desenvolvimento brasileiro.

A eleição de outubro deve servir a esse credenciamento.

O resto é arrocho.