30 março 2014

IMPRENSA & PALANQUE

A tática do turbilhão


Luciano Martins Costa, no Observatório da Imprensa



Os profissionais de comunicação com experiência em gestão de crise sabem o que é o turbilhão: é uma sucessão intensa de notícias negativas contra as quais nenhuma ação paliativa parece funcionar. Em casos como esses, quando as respostas, argumentações e justificativas são atropeladas pela sequência de acusações, muitas vezes a melhor atitude é o silêncio, ou ponderações pontuais e genéricas, tentando compor um espaço de serenidade no meio da tormenta.
É assim que se comporta, por exemplo, a atual diretoria da multinacional Siemens, cujo presidente vem a público enfrentar a imprensa e, com a maior clareza que permite a circunstância, admite que a empresa cometeu erros no passado e está disposta a corrigi-los, inclusive, se for o caso, indenizando o Estado e a sociedade por eventuais prejuízos.
A empresa não se defende pontualmente de cada ataque, porque sabe que no momento seguinte será publicada nova denúncia, ou uma velha denúncia será requentada com um novo detalhe.
O turbilhão foi detonado nesta semana e segue nas edições de sexta-feira (28/3) dos grandes jornais brasileiros, por conta das revelações sobre as trapalhadas cometidas pela Petrobras na aquisição de uma refinaria nos Estados Unidos. No meio da tormenta, os jornais publicam o resultado de uma pesquisa feita anteriormente ao escândalo, na qual se registra a queda da aprovação da presidente da República. Paralelamente, articulistas afirmam que essa perda de popularidade é a causa do movimento ascendente da Bolsa de Valores.
No mesmo contexto, a imprensa havia feito um grande barulho por conta do rebaixamento do status do Brasil no rating feito pela agência de avaliação de riscos Standard & Poor’s. Da mesma forma, pululam artigos e editoriais reforçando a tese de que o governo atual não é capaz de fazer frente aos desafios do seu tempo. No entanto, o jornalismo diário tem uma característica estranha: os editores não parecem considerar a relação que existe entre um dia e a edição seguinte. É como se a imprensa levasse ao pé da letra o predicado bíblico segundo o qual “basta a cada dia o seu próprio mal”.
Tudo vira comício
Logo após o grande barulho em torno da decisão da Standard & Poor’s, os jornais registram que a Bolsa sobe e o dólar cai, e reproduzem o palpite dos oráculos do mercado, segundo os quais isso se deveu à divulgação da pesquisa que mostra uma queda na aprovação do governo. Ao mesmo tempo, acontece também que, apesar de ter sofrido uma perda em sua avaliação por parte da agência, a Petrobras vê suas ações valorizadas subitamente.
Por outro lado, anuncia-se que o governo brasileiro conseguiu captar 1 bilhão de euros em bônus da dívida externa, a um custo extremamente baixo – a menor taxa de retorno em euros já registrada. Trata-se de uma demonstração concreta de confiança do mercado externo na economia brasileira, confirmada pela solicitação dos bancos emissores, que queriam aumentar o volume de títulos ofertados. Além disso, registra-se mais um mês com desemprego recorde para o período.
Há uma questão essencial na observação da imprensa que não costuma ser contemplada nos debates dos especialistas: para onde vai o jornalismo durante esses episódios que chamamos de turbilhão?
Com todos os riscos que se corre ao fazer tal afirmação, pode-se dizer que, em ocasiões como esta, a imprensa se desvincula do jornalismo. Sim, por incrível que possa parecer, a imprensa não tem obrigatoriamente uma relação umbilical com o jornalismo. Eventualmente, o interesse da imprensa vai na direção oposta daquilo que seria a boa prática jornalística. O turbilhão define bem esses momentos.
Coincidência ou não, nesta semana completam-se vinte anos do célebre caso da Escola Base. Acusados levianamente de abusar de crianças sob seus cuidados, os donos da escola e o motorista da perua escolar foram crucificados pela imprensa em peso, com exceção do extinto Diário Popular. Passado o furacão, demonstrou-se que eram inocentes, mas era tarde: suas vidas estavam destruídas.
Há uma grande distância entre esse caso e o de empresas, personalidades e governos atingidos pela força insana das notícias negativas. Em geral, instituições poderosas contam com assessorias competentes para administrar essas crises. Acontece que, diante de uma importante disputa eleitoral, os especialistas em comunicação institucional perdem espaço para os marqueteiros de campanha.
E tudo vira comício.
 
 
 

TCU, IBAMA, PIG, MP E ETC.

O Ibovespa e a volta à normalidade
do STF


Wanderley Guilherme dos Santos, na Agência Carta Maior
Arquivo


Segundo a versão da imprensa, o Ibovespa teria subido esta semana devido ao rebaixamento de grau do País patrocinado pela Standard&Poor’s e pelo o IBOPE aquecendo as oposições com a pesquisa sobre avaliação do governo. Finalmente, colhidas as necessárias assinaturas, o Senado pode instaurar uma Comissão Parlamentar de Inquérito sobre os negócios entre a Petrobras e a Astra a propósito da refinaria de Pasadena, nos Estados Unidos, também promovendo a alegria antecipada dos pré-candidatos oposicionistas, prevendo uma devastação do governo. Leitores amadurecidos devem estar tão entediados com a versão da imprensa quanto com o estilo modorrento deste parágrafo. Vamos a outra.

O Ibovespa, altar de todos os rentistas, bem que podia revelar-se satisfeito por motivos distintos. Aprovou-se, na semana, o marco civil da internet e o início da legislação definitiva sobre o regime diferenciado de contratações públicas (RDC), ato capaz de revolucionar a administração dos órgãos de Estado se monitorado com rigor. A obrigação de licitar toda compra governamental (grampos e escutas inclusive) representa uma ferramenta burocrática adequada à sabotagem de qualquer plano de governo. Faz parte das razões que explicam os atrasos nas grandes obras públicas (em associação com os poderes paralisantes do Tribunal de Contas da União), cobrado como fracasso pelas versões midiáticas.
 
Quebrar as algemas da legislação atual, vigilante de um Estado inerme, e alterar os dispositivos que permitem ao TCU interromper obras vultosas por meras suspeitas, é indispensável à redução dos custos de operação de um Estado de Bem Estar. A diferença entre o orçamento inicial de uma obra de infra-estrutura e seu custo final decorre em larga medida das interrupções infundadas sob mandados do TCU e de instituições policialescas como o IBAMA. Quanto a este, com a obtenção de um empréstimo no valor de trezentos milhões de dólares para financiamento de empresas pouco predatórias, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico faz mais do que a fiscalização preventiva e preconceituosa do IBAMA, e isso sem contabilizar os custos operacionais da burocracia ibamesca.  

Ao contrário das agências de avaliação, a opinião praticamente unânime dos economistas de prestígio internacional consagra o Brasil como um dos menos afetados em todo mundo pelo desabamento da economia internacional em mais uma das quedas anunciadas pela teoria dos ciclos capitalistas. Se o País está arranhado convém olhar para os hematomas dos que se submeteram ao tipo de ortodoxia adotado pelos assessores dos candidatos à Presidência, cujo programa é fazer do Brasil uma gigantesca Espanha. Os investidores da Ibovespa podem se animar com competentes juízos internacionais antes que com o inoportuno velório dos farejadores de carniça. Para estes, a fusão de duas das maiores firmas no comércio do açúcar criando, nesta semana, a maior trading do mundo (metade nacional, metade americana), a ser responsável por 25% das exportações globais de consumo, deve representar formidável carniça futura. E passam a torcer pela versão que eles próprios inventam.

Ao remeter o mensalão tucano à instância apropriada de julgamento, o Supremo Tribunal Federal, em autocrítica, definiu a etiqueta da AP470: um ponto fora da curva, isto é, um julgamento de exceção. O STF voltou à normalidade. Este evento, retorno à previsibilidade jurídica, animou o Ibovespa, com certeza. Ao mesmo tempo, a direita e a esquerda se agitam a propósito de certo cinqüentenário: a primeira, nostálgica, a segunda, reivindicativa. Os ânimos permanecerão assim até que o acontecimento originário se transforme em cisco histórico como o golpe de 37, por exemplo, ou como os 18 do Forte de Copacabana, diante do já então enorme percurso coberto pela democracia.
 
Os períodos ou tentativa de ditaduras estão destinados a não representar senão zero vírgula e cada vez mais zeros antes do mortiço 1 da história republicana.  Não terão capacidade de gerar filhotes, mas a de servir de alimento aos historiadores. Adepto do esclarecimento dos fatos, sou, não obstante, avesso a compassos de espera. A democracia e o progresso do país estão sob artilharia, tendente à piora.
 
Com sintomas da síndrome de Estocolmo, a opinião pública parece tomar o progresso antecedente como natureza, desconsiderando o mérito da política que a tornou possível. Pois se a democracia e o progresso se transformaram em natureza cumpre aos democratas zelar por sua preservação. A bandeira anti conservadora vem a ser a sustentabilidade da democracia e do bem estar social, condição necessária à garantia dos ganhos efetuados. Alerta contra a mudança em direção ao passado.
Créditos da foto: Arquivo

ELEIÇÕES




Aécio e Eduardo


Marcos Coimbra, na Revista CartaCapital


A prevalecer o quadro hoje desenhado, faremos neste ano uma eleição presidencial diferente de todas as outras desde a redemocratização. Pela primeira vez, os dois principais candidatos são genuínos representantes de seus partidos.
Do lado do PT, isso não é novidade e Dilma Rousseff está escalada. Vem do PSDB a inovação. Está claro que é cedo para decretar que chegaremos a outubro com as intenções de voto no padrão de hoje. Mas as pesquisas são unânimes ao mostrar que, somados, os candidatos dos demais partidos mal alcançam 10%. Em outras palavras, a polarização entre PT e PSDB tem boa chance de se repetir.

Desta vez, eis a questão, os tucanos caminham para apresentar algo que não têm desde Mario Covas, um candidato do partido. Fernando Henrique Cardoso foi lançado e se reelegeu praticamente sobre a alcunha de “homem do real”. Em 1994 e 1998, seus eleitores mal sabiam a sua filiação partidária. Estivesse filiado a qualquer outro, o resultado não seria diferente.
Nas duas eleições das quais participou, José Serra foi candidato de si mesmo. Os correligionários tinham de ouvi-lo na televisão para se inteirar de suas pretensões e propostas. Em 2010, tanto mandava e desmandava que levou o PSDB para onde quis: associou-o ao moralismo conservador e ao que de mais reacionário existe na política e na sociedade brasileiras.
Geraldo Alckmin era desprezado pela elite tucana e foi escolhido para ser derrotado por Lula. Nunca expressou o sentimento da cúpula e das bases de seu partido (salvo, talvez, em Pindamonhangaba).
Agora, não. Aécio Neves caminha para a eleição como candidato genuíno do PSDB. Para o bem e para o mal.
Isso fica claro no modo como responde ao dilema que angustia os tucanos desde 2002, o de como lidar com a “herança de Fernando Henrique Cardoso”. Ao pensarem em termos eleitorais, Serra e Alckmin fizeram o lógico: esconderam a herança de FHC e tentaram se desvencilhar da impopularidade do ex-presidente. Como chegou a dizer Serra em 2010, no ápice da desfaçatez: “Eu sou o Zé que vai continuar a obra do Lula”.
Aécio, ao contrário, faz tudo para associar sua imagem àquela de FHC. Suas propostas, seus assessores e seu discurso têm Fernando Henrique escrito por todos os lados, a ponto de ensejar especulações a respeito da participação do ex-presidente como companheiro de chapa (algo impensável nas candidaturas de Serra).
Importa pouco se Aécio age assim por obrigação ou desejo. Se ele se oferece ao posto de continuador da “herança de Fernando Henrique” por convicção ou para assegurar a vaga de candidato do partido. O fato é que o faz. Torna-se assim um “legítimo tucano”, expressão da legenda e não de si mesmo.
É o oposto de Eduardo Campos, cuja candidatura é a enésima encarnação de um fenômeno recorrente em nossa história eleitoral, o personalismo daqueles que se apresentam como “indivíduos notáveis” e se creem dotados de atributos especiais. Nada há de estranho em estar ao lado de Marina Silva, outra dessas “personalidades” transbordantes de si mesmas, que se projetam acima dos partidos e pedem um cheque em branco ao eleitor (pretensamente garantido por seus “bons propósitos”).

Do modo como está formulada, a candidatura de Aécio traz uma contribuição para a consolidação de nossa cultura democrática. O pernambucano aposta nos preconceitos antipartidários e no velho estereótipo de que, na escolha eleitoral, o importante é “a pessoa do candidato”. O mineiro não esconde de que lado está e a quem está ligado. Sem discutir sua motivação, o relevante é o fato de educar o eleitor, enquanto o outro quer se aproveitar de seu equívoco.
Dizê-lo não é avaliar a utilidade estratégica das opções de ambos. “Tucanizar-se” pode ser (muito) nefasto para as pretensões eleitorais de Aécio, enquanto fingir-se “apartidário” pode ser uma estratégia esperta de Campos. Ou vice-versa.
Nada disso deve, porém, ter consequências de curto prazo nestas eleições. Mantidas as tendências conhecidas e a se considerar o cenário da disputa a seis meses do pleito, a chance de qualquer um dos dois, independentemente do que fizerem, é pequena. Dilma Rousseff é a favorita.
A discussão concentra-se no que deve acontecer no médio e longo prazos. Nesse horizonte, quem faz a coisa certa é Aécio Neves. Se não tomar cuidado, o futuro de Campos é ser mais um jovem político promissor perdido no meio do caminho. A estrada está cheia deles.









28 março 2014

50 ANOS DO GOLPE

O inaceitável risco da igualdade


Mino Carta, na Revista CartaCapital




Faz pouco tempo, a chamavam Revolução, com r grande, e ainda há quem assim a chame. O Brasil inovou ao batizar desta forma um golpe de Estado. O ex-ministro do STF e presidente da Câmara durante o “mandato” do ditador Ernesto Geisel, Célio Borja, em entrevista à Folha de S.Paulo, sustenta hoje, aos 85 anos, que a partir de 1º de abril de 1964 o Brasil teve “um regime de plenos poderes”. Não sei como o ilustre jurista definiria ditadura. Primeiro de abril, disse eu, mas se o golpe se deu nesse dia, ou em 31 de março, tanto faz. De todo modo não ocorreu de mentirinha. Mentiras monumentais houve para justificá-lo, e algumas continuam a ser proferidas.
Como Moniz Bandeira logo adiante escreve, o governo dos Estados Unidos teceu, de caso pensado ou de crença própria (de americanos tudo cabe esperar), um magistral enredo de pura ficção para mobilizar, debaixo de sua bandeira, diplomatas, espiões, mestres em tortura, tropa e até um porta-aviões. Segundo os ficcionistas de Washington, o Brasil preparava-se para enfrentar uma guerra civil, provocada pela insurgência de comunistas de inspiração cubana, como se sabe canibais de criancinhas. Os reacionários nativos, instalados solidamente na casa-grande, engoliram mais umbest seller ianque, e lhe acrescentaram capítulos decisivos, com a colaboração dos editorialistas dos jornalões.
Soprava o entrecho que a subversão ensaiava sua marcha e a intervenção militar era recomendada, ou melhor, indispensável. A invocação prolongou-se in crescendo desde o instante em que o vice-presidente João Goulart assumiu o posto abandonado por Jânio Quadros, o tragicômico homem da renúncia, antes contida enquanto durou o imbróglio parlamentarista, enfim em tons de desespero quando Jango mandou às favas o sistema de governo inventado para cerceá-lo e retornou ao presidencialismo. A história prova que Goulart era um democrata sincero, nenhuma das suas atitudes, do começo ao fim do mandato constitucional, demonstra o contrário. Quanto à marcha da subversão, nunca a vi passar.
Outra marcha desfilou diante dos meus olhos estupefactos, a “da família, com deus e pela liberdade”. Dirigia então a redação de Quatro Rodas, instalada na capital paulista em um prédio da Rua João Adolfo, esquina da Avenida 9 de Julho. Na tarde do 19 de março de 1964, dia de São José, o resignado padroeiro da família, deixei a redação e andei não mais que 500 metros para alcançar a esquina da Rua Marconi com Barão de Itapetininga, onde estacionei para assistir ao desfile.
Vinham na frente os sócios do Harmonia, clube mais elegante de São Paulo, acompanhados por seus fâmulos, mucamas, aias, capatazes, colonos, jardineiros, motoristas, cocheiros, massagistas, pedicuros, manicures etc. etc. Em seguida trafegaram os sócios do Clube Paulistano (sinto por eles, menos faustosos que o Harmonia), também seguidos por seus serviçais, em número menor e mesmo assim expressivo. Depois passaram os demais, em ordem decrescente, ditada ou pelo clube frequentado, ou pelo bairro da residência. Na rabeira, os remediados, irrefreáveis aspirantes a inquilinos da casa-grande. Sobrevoava o cortejo o governador Adhemar de Barros, de helicóptero em voo quase rasante, desfiava o rosário guardado na algibeira do colete.
A “marcha da família”, capaz de incomodar o Altíssimo e negar a liberdade que diziam defender, revela a verdadeira natureza do golpe de Estado que precipitou a ditadura. A qual é, ou não é. Como a de Hitler, de Mussolini, de Stalin. E não excluamos Franco, ou Salazar, e os fardados de quepe descomunal em toda a América Latina. No caso de Fidel Castro, é natural que tenha merecido uma avaliação especial por parte de quem viveu a condição de relegado ao quintal dos Estados Unidos. De minha parte, confesso, não me agradam personagens que atravessam a vida de uniforme.
Irrita, de todo modo, que seja comum ler ou ouvir a referência à ditadura militar brasileira. Quiséssemos ser precisos, afirmaríamos ditadura civil e militar. A bem da verdade factual, há de se reconhecer que nos começos de 1964 não seria missão impossível atiçar os nossos fardados, e na tarefa o governo americano, e os privilegiados do Brasil, por meio dos seus porta-vozes midiáticos, saíram-se à perfeição. A tal ponto que eles próprios, jornalistas inclusive, acabaram por acreditar no enredo criado em Washington, pelo qual a guerra civil batia às portas. Houve até civis graúdos que estocaram armas nos porões e nas adegas.
Calibrados para a intervenção, os militares cumpriram o seu papel de gendarmes da casa-grande, de exército de ocupação, e com notável aparato partiram para a refrega de fato impossível. A renúncia de Jânio Quadros deveria ter sido lição profícua. Este sim, ao contrário de Jango, pretendia provocar a reação popular e errou dramaticamente. No mesmo dia, o Santos jogava em terra estrangeira e o povo comprimia-se nos bares para ouvir a irradiação. Reação houve, delirante, aos gols de Pelé.
A 1º de abril, ou 31 de março, que seja, vieram os blindados e os canhões, Carlos Lacerda armou-se de fuzil e fez do Catete uma trincheira. O golpe se deu, porém, com a imponência de um corriqueiro desfile de 7 de setembro. Houve um ou outro episódio de violência aqui e acolá, enfrentamento nunca. As calçadas não ficaram manchadas de sangue. Os militares executaram o serviço sujo com a eficácia e o risco de quem vai à guerra sem inimigo. Do outro lado, havia idealistas, sonhadores, nacionalistas, esperançosos de um futuro melhor para um país que amadurecia lentamente demais para a contemporaneidade do mundo.



Brasil padeceu de várias desgraças ao longo de cinco séculos. A colonização predatória, a matança dos aborígenes, três séculos e meio de escravidão, uma independência sem sangue, uma proclamação da República perpetrada por obra de um golpe de Estado militar, a indicar o caminho convidativo daí para a frente. O entrecho de desgraças, entre elas a carga mais deletéria representada pela escravidão, cujos efeitos permanecem até hoje, influenciou profundamente a história do século passado. Dominada em boa parte por Getúlio Vargas, um estadista, decerto, ao pensar um Brasil moderno, e também ditador no primeiro período da sua atuação, o que não depõe a favor.
O golpe de 1964, reforçado na sua essência daninha pelo golpe dentro do golpe de 1968, uma vez imposto o Ato Institucional nº 5, é a última das desgraças. A mais recente, e de repercussões duradouras. Leiam, por exemplo, o texto de Vladimir Safatle, mais adiante. A derrubada de Goulart assinala o enterro de um processo que levaria o Brasil bem mais longe do que se encontra hoje. Não imagino, está claro, a chegada da marcha da subversão para impor uma ditadura também, embora de esquerda, mesmo porque as lideranças disponíveis, os cassados daquele momento, estavam longe de mirar neste alvo. Digo lideranças como o próprio Jango, Brizola, nem se fale de Juscelino.
Mudanças sensíveis se dariam aos poucos, caso não ocorresse uma reviravolta armada, no espaço de uma ou mesmo duas décadas, a partir das chamadas reformas de base, encabeçadas pela reforma agrária, indispensável em um país em que 1% da população é dona de cerca de 50% das terras férteis. As circunstâncias favoreceriam o surgimento de partidos autênticos em lugar de clubes recreativos de uns poucos sócios, a representarem, quase todos, os interesses do privilégio. Baseado no parque industrial paulista, o mais desenvolvido de todo o Hemisfério Sul, brotaria um proletariado consciente da importância e da força do seu papel, e portanto sindicatos dignos deste nome.
O golpe de 1964 aconteceu exatamente por causa da perspectiva renovadora que apavorava os senhores. Chega a ser ridículo invocar a ameaça da guerra civil, como alega Célio Borja na entrevista à Folha de S.Paulo, e como alegam muitos outros como ele, convictos de que é da conveniência do Brasil ser satélite de Tio Sam, bem como manter de pé a casa-grande e a senzala, da qual vale convocar eventuais marchadores. Os senhores escravocratas do século XXI ainda se movem ao sabor das crenças de 50 anos atrás (ou de 500?), certos do velho axioma, melhor prevenir do que remediar. Daí a oposição sistemática aos governos Lula e Dilma. Aquele já fez alguns estragos, esta é sua criatura, donde para ela a berlinda é automática.
Sempre que ouço pronunciar a palavra redemocratização padeço de um sobressalto entre o fígado e a alma. É justa e confiável a democracia em um país que ocupa o quarto lugar na classificação dos mais desiguais do mundo? Os senhores do privilégio querem é uma democracia sem povo e um capitalismo sem risco. De qualquer forma, à democracia não basta promover eleições periódicas, mas algo é mais grave, nesta instância do pós-ditadura: o espírito golpista ainda lateja nas entranhas da sociedade, como vocação inapagada e impulso natural.



De um lado há a fé em um recurso extremo, porém disponível ad aeternitatem, como aspiração latente em caso de necessidade. Do outro lado, o medo, enraizado nos demais, mal acostumados. Raros os brasileiros que, ao se arriscarem a vislumbrar a possibilidade de uma situação de agitação social, não temam a solução golpista. Há quem suponha que, a esta altura, exageram em temores. Há também quem sustente que basta pensar para tornar o pior admissível.
Agrada-me relembrar Raymundo Faoro, que sustentava a competência da direita, tranquila vencedora em 1964. A respeito discutíamos. Na minha opinião, o nível da competência é determinado pela qualidade do adversário. O que me impressiona, isto sim, é a ausência de adversários à altura desta direita tão, como direi, medieval, responsável pelo brutal oximoro: um país grande por natureza e forte por vocação se vê tolhido por uma elite prepotente, arrogante e ignorante. Deste ponto de vista, a ditadura brasileira tem, aquém ou além da tragédia, ou a despeito da tragédia, um aspecto patético. Quantos perseguiu e até matou e agora são, ou seriam, tucanos convictos, inequivocamente bandeados para a reação?
Com a premissa de que o acaso é entidade insondável, faltou uma esquerda capaz de acuar os donos do poder, como se deu em muitos outros países habilitados à democracia e à civilidade. Para ser de esquerda atualmente é suficiente empenhar-se a favor da igualdade, conforme recomenda Norberto Bobbio, cujo ensaio a respeito Fernando Henrique leu sem proveito algum. Nesta quadra, pretensamente de redemocratização ou, pelo menos, de democratização, o Brasil não conta, na quantidade necessária, com batalhadores da igualdade. Salvo melhor juízo.
 
 
 

UM TIRO NO PRÓPRIO PÉ

A imprensa, inimiga de si mesma


Luciano Martins Costa, no Observatório da Imprensa



A Folha de S. Paulo divulga na edição de quinta-feira (27/3) parte do resultado do mais recente relatório do Centro de Pesquisas Pew sobre o “Estado da Mídia” nos Estados Unidos. O jornal paulista destaca o fato de que os veículos originários da mídia impressa ainda recebem a maior parcela (61%) da receita destinada pela publicidade aos meios noticiosos americanos. Os telejornais de emissoras locais e de TV a cabo ficam com 14,1% do bolo publicitário e apenas 2,1% vão para os noticiários nacionais em TV aberta.
Paralelamente, o relatório destaca a evolução dos veículos nascidos na era digital, cujas redações crescem e começam a ampliar sua influência internacional. O exemplo mais próximo dos brasileiros seria, no caso, a chegada do Huffington Post, que se associou ao grupo Abril para lançar seu conteúdo em português (veraqui). O estudo conclui que a chamada imprensa tradicional ainda respira, pelo menos nos Estados Unidos, mas está longe de alcançar um sistema de captação de receita capaz de assegurar sua sobrevivência no longo prazo.
A questão específica do modelo de negócio vem sendo estudada há anos por especialistas e profissionais experientes, como explica Caio Túlio Costa em entrevista reproduzida neste Observatório (ver aqui). No entanto, há outras questões que não são captadas na pesquisa anual do Centro Pew sobre a imprensa americana e que afetam de maneiras diversas os mercados específicos.
Uma delas é, certamente, o grau de diversidade que os veículos de alcance nacional oferecem à sociedade. Nos Estados Unidos e na Europa, embora predomine uma imprensa conservadora, há muito mais alternativas para os que pensam de maneira diversa. No Brasil, a predominância de três diários e duas revistas semanais como principais captadores de verba publicitária destinada a veículos da chamada imprensa de papel ocorre num contexto em que eles funcionam praticamente como um único título, dada a homogeneidade de suas opiniões sobre política e economia e do recorte ideológico que representam.
Isso define em boa parte a resistência de seus dirigentes a adotar projetos realmente inovadores e sua preferência por contratar consultorias igualmente conservadoras.
Jornalismo e imprensa
Na análise sobre alternativas disponíveis para a mídia jornalística tradicional, Caio Túlio Costa observa que talvez seja necessário dar vazão ao complexo de Édipo, ou conforme a preferência do observador, ao complexo de Electra, ou seja, para sobreviver na era digital, os títulos clássicos da mídia noticiosa nascida no papel teriam que matar sua própria empresa-mãe.
Um exemplo desse processo pode ser observado no grupo Folha, onde o portal UOL se consolida progressivamente como a locomotiva, enquanto a versão de papel perde público.
No Brasil, há uma enorme complexidade de desafios a serem enfrentados, entre os quais a dificuldade de monitorar os hábitos voláteis dos brasileiros mais jovens, que não incluem entre suas prioridades a leitura de notícias da forma como são tradicionalmente organizadas pela imprensa.
Deve-se levar em conta um processo de mudança no traçado demográfico e de renda da sociedade brasileira, que altera a distribuição da população segundo as faixas etárias, revelando um maior protagonismo dos jovens e de famílias resgatadas recentemente da pobreza. Contraditoriamente, o modelo econômico adotado pelo governo que a imprensa ama detestar tem assegurado a receita publicitária capaz de amenizar a queda no número de leitores.
Claramente, a política econômica adotada há dez anos, com foco na criação de um mercado interno dinâmico, é a responsável pela profusão de anúncios que sustentam os jornais. O crescimento de uma nova classe de renda média, produzido por políticas sociais que a imprensa sempre condenou, estimula a concorrência no comércio, na indústria automotiva, na construção civil e em outros setores ligados ao consumo, alimentando os cofres das empresas jornalísticas.
Essa constatação induz a uma discussão paralela e fundamental sobre a necessidade de separar os conceitos de imprensa e jornalismo. Nesse sentido, há um aspecto crucial a ser encarado pelas redações: a quase irresistível tentação da imprensa em agir contra seus próprios interesses.
Para simplificar, mas longe de esgotar esse filão, basta observar que a insistência dos jornais em produzir um clima de pessimismo na economia atenta contra o dinamismo do mercado que sustenta a própria mídia.
 
 
 

É A POLÍTICA, ESTÚPIDO!

A "tempestade perfeita" é na
política


Fernando Brito, n'O TIJOLAÇO


temps
Durante um bom tempo ouvimos falar na “tempestade perfeita” que ameaçava a economia.
Dólar em alta, investidores fugindo, contas públicas dissolvendo-se em déficits.
Como se pode notar, termina o primeiro semestre com mais chuvas no Cantareira que nesta “tempestade econômica”.
Embora modesto, mas vão se avolumando os  indícios  de uma recuperação da economia brasileira, inclusive no que tange às contas públicas, vá lá que seja dentro da “cartilha do superávit” que o rentismo.
Emprego e consumo em alta, crédito idem, inadimplência em baixa.
Hoje à tarde, a divulgação do resultado primário do Governo Federal, salvo surpresas, deverá apontar um resultado bem melhor do que o de fevereiro do ano passado, embora bem próximo do zero, é esperável para meses como fevereiro. A arrecadação recorde e a redução em 30% – em valores reais – do déficit da Previdência autorizam a imaginar um resultado pelo menos próximo do zero.
Mas o que, então, afinal, cria o clima de pessimismo que, de fato, vem desanimando muitas pessoas?
É a política, estúpido.
Porque comunicação é política e este governo resolveu fingir que não existe no Brasil um sistema monstruoso de comunicação, que tem como tarefa destruir a credibilidade de sua política econômica.
Sistema que perdeu, até mesmo, qualquer pudor em deformar notícias.
A Folha consegue transformar em tragédia o menor desemprego da história para fevereiro:
Lá no finalzinho da matéria é que se vai ler, quando se chega lá, que esse registro de dispensas no comércio é típico desta época. Aliás, em 12 anos de pesquisa, o desemprego em fevereiro é ligeiramente maior do que em janeiro. Novidade zero.
Mas o Governo desapareceu do debate político.
As dirigentes que estão no centro da polêmica, neste momento, Dilma Rousseff e a presidente da Petrobras, Graça Foster, dão entrevistas onde só são duras e agressivas com os eventuais problemas internos de suas administrações.
Será que acreditam que as boas intenções e a transparência de seus atos e providências vão fazer com que a imprensa lhes bata palmas pela franqueza?
Será que não percebem que o mercado financeiro sequer disfarça mais sua intenção de destroçar o governo Dilma.
Entregar seu futuro político a pesquisas de opinião, porque estas, eventualmente, lhes sorriem é entregar o pescoço à faca do açougueiro.
Temos agora a CPI e uma nova onda de pesquisas.
As nuvens estão aí para quem quiser ver.
E algumas delas produzidas por quem vai se molhar nessa chuva.
 
 
 

IDOS DE MARÇO

A verdade e a impunidade


Eric Nepomuceno - Página/12
Arquivo


Na véspera dos cinquenta anos do golpe civil militar que derrubou o governo de João “Jango” Goulart e instaurou uma ditadura de 21 anos, há um pouco de tudo no Brasil. Há os nostálgicos, há os que se esquecem daqueles tempos maléficos e há os indiferentes, que acreditam que voltar ao passado é algo dispensável. E estes são a maioria – dona de um silêncio muito revelador sobre o pavor crônico dos brasileiros diante de um passado infame.

E há também os poucos – pouquíssimos – agentes do terrorismo de Estado que, por alguma razão, decidiram contar uma parte do que sabem. Dessa forma, a verdade começa, aos poucos, a se desenterrar. Isso ocorre sob o respaldo de uma lei esdrúxula e infame de autoanistia decretada pelos militares no início do declínio da ditadura, e que foi ratificada de forma tão surpreendente quanto abjetamente covarde pelo Supremo Tribunal Federal, há quatro anos.

Entre esses pouquíssimos que agora falam, um – o coronel aposentado do exército Paulo Malhães – o faz com uma tranquilidade assustadora. E ele tem razão: a anistia o protege agora de contar como arrancava os dentes e os dedos dos assassinados para impedir que os corpos fossem reconhecidos. Descreve com uma meticulosidade de jardineiro como abria a barriga dos cadáveres que logo seriam jogados em algum rio, e a precisão empregada na hora de colocá-los em sacos de aniagem, calculando o peso exato das pedras para que flutuassem, sem aparecer na superfície. Admite placidamente sua participação em sessões de tortura e em assassinatos. Disse não saber quantos matou.

Quando perguntado sobre a violência sexual contra presas políticas, desconversou. “Se houve casos de abuso, foram um ou dois”, diz. Há dezenas e dezenas de relatos de mulheres que foram presas e abusadas. Malhães esclarece que, por ele, nenhuma: “Uma mulher subversiva, para mim, é um homem. Foram presas algumas mulheres lindas, mas não me atraíam. Eu as considerava e considero como um inimigo”.

Diz tudo isso na Comissão Nacional da Verdade instaurada por Dilma Rousseff, ela mesma uma ex-presa política que passou por todo tipo de tortura. É um dos únicos, na véspera do aniversário, que assume o que cometeu. Outros, como o coronel também aposentado Alberto Brilhante Ustra, famoso pela forma descontrolada com que torturada os presos, especialmente as mulheres, se dão ao luxo de fazer piadas prepotentes quando são convocados a depor diante da Comissão da Verdade. 

Impressiona também a resistência pétrea de militares aposentados em sequer admitir que o que ocorreu em 1964 foi um golpe de Estado. Garantem que jamais houve ditadura: houve uma revolução, que logo se transformou em um regime forte. No máximo, autoritário. Mas ditadura, não.

Talvez também por essa razão que Dilma Rousseff tenha proibido expressamente que se faça qualquer tipo de comemoração da data em instalações militares. A determinação da presidenta não atinge os militares aposentados, que têm seus próprios clubes – é assim que eles os chamam: clubes – para comemorar a infâmia. Para os militares, inclusive para os que não eram nascidos, o que ocorreu em 31 de março de 1964 foi uma revolução para impedir que um regime comunista se instalasse no Brasil. É mentira, e todo mundo sabe.  

E tem uma coisa muito esclarecedora, muito simbólica. Na verdade, o golpe aconteceu em 1° de abril. Os golpistas retrocederam o calendário em 24 horas porque, no Brasil, o 1° de abril é o dia dos bobos. O dia da mentira.