27 fevereiro 2013

A INVEJA MATA

A "gastança" pública dez anos
depois


João Sicsú(*), na Revista CartaCapital





Em 2009, o PSDB soltou uma nota em que afirmava: “o Palácio do Planalto promove uma gastança…”. Em qualquer dicionário, gastança significa excesso de gastos, desperdício. A afirmação feita na nota somente tem utilidade midiática, mas não é útil para a produção de análises e discussões sérias em torno da temática das finanças públicas brasileiras.
A dívida pública deixada para o presidente Lula era superior a 60% do PIB. O déficit público nominal era de 4,4% do PIB. Esses são os números referentes a dezembro de 2002, o último mês de Fernando Henrique Cardoso na presidência.
Gasto social total per capita
Gasto social total per capita

De forma ideal, a administração das contas públicas deve sempre buscar a redução de dívidas e déficits. Deve-se buscar contas públicas mais sólidas. A motivação para a busca desta solidez não está no campo da moral, da ética, da religião ou do saber popular que diz “não se deve gastar mais do que se ganha”.
A motivação está no aprendizado da Economia. Aprendemos que o orçamento é um instrumento de combate ao desaquecimento econômico, ao desemprego e à falta de infraestrutura. Contudo, o orçamento somente poderá ser utilizado para cumprir estas funções se houver capacidade de gasto. E, para tanto, é necessário solidez e robustez orçamentárias.
A ideia é simples: folgas orçamentárias devem ser alcançadas para que possam ser utilizadas quando a economia estiver prestes a provocar problemas sociais, tais como o desemprego e a redução de bem-estar. Portanto, a solidez das contas públicas não é um fim em si mesma, mas sim um meio para a manutenção do crescimento econômico, do pleno emprego e do bem-estar.
A contabilidade fiscal feita pela equipe econômica do governo do presidente Lula mostrou como essas ideias podem ser postas em prática. Houve melhora substancial das contas públicas que resultaram da boa administração durante o processo de aceleração das taxas de crescimento. O presidente Lula entregou à presidenta Dilma uma dívida que representava 39,2% do PIB. Ao final de 2012, a dívida foi reduzida ainda mais: 35,1% do PIB. O presidente Lula entregou para a sucessora um orçamento com déficit de 2,5% do PIB. Ao final de 2012, este número foi mantido.
Foi essa administração fiscal exitosa que deu ao presidente Lula autoridade política e solidez orçamentária para enfrentar a crise de 2009, evitando que tivéssemos uma profunda recessão e uma elevação drástica do desemprego. No ano de 2009, a relação dívida/PIB aumentou para 42,1% e o déficit público nominal foi elevado de 2% para 3,3% do PIB. Em compensação, naquele ano de crise, foram criados mais de 1,7 milhão de empregos formais e o desemprego subiu apenas de 7,9%, em 2008, para 8,1%, em 2009.
Dívida líquida do setor público
Dívida líquida do setor público

Em paralelo à consolidação fiscal, os governos dos presidentes Lula e Dilma promoveram ampliação dos gastos na área social. A área social engloba: educação, previdência, seguro desemprego, saúde, assistência social etc. O investimento social per capita cresceu 32% em termos reais entre 1995 e 2002. De 2003 a 2010, cresceu mais que 70%. Cabe ser destacado que mesmo diante da fase mais aguda da crise financeira internacional de 2008-9 os investimentos sociais não foram contidos – a partir de 2009, houve inclusive uma injeção adicional de recursos nessa área.
Os números não são refutáveis. São estatísticas oficiais organizadas por milhares de técnicos competentes. O Estado brasileiro está consolidado em termos de responsabilidade com a geração de estatísticas. No Brasil, não há maquiagem ou ocultação de dados. Portanto, temos elementos para fazer análises consistentes das finanças públicas que dispensam a utilização de termos midiáticos jogados ao ar: gastança! Nos últimos dez anos não houve gastança, houve organização fiscal. Houve também aumento significativo de gastos na área social. Essa é a radiográfica precisa dos números.



(*) Professor do Instituto de Economia da UFRJ.



SABOTAGEM?

Pratos cuspidos e trilhos
entalados


Saul Leblon, no Blog das Frases




O governo vai em romaria aos grandes centros financeiros mundiais para atrair investidores interessados em construir ferrovias, estradas, portos e aeroportos no país. 

Não é um passeio. Pode ser uma cartada decisiva.

A continuidade do desenvolvimento requer algo em torno de R$ 500 bilhões em investimentos para dilatar a fronteira logística de um sistema econômico originalmente projetado para servir a 30% da sociedade. 

O Brasil corre contra o tempo, mas o momento é favorável.

O governo oferece projetos de concessão pré-esquadrejados pelo Estado.

O interesse público define as prioridades , prazos, qualidade do serviço e taxas de retorno – atraentes, diga-se, de até 15% ao ano.

Num mundo estagnado pela desordem neoliberal, com juro negativo e dinheiro embolorando no caixa das corporações, pode dar certo.

Mas a romaria que começa nesta sexta-feira não visa apenas o capital externo. 

Na verdade, destina-se também a desfechar um safanão no rentismo local.

Em 2012 ele já fora abalroado por um corte de 5,5 pontos na taxa da Selic.

Dilma roçou baixo o pasto gordo da renda fixa, livre, leve e líquida propiciada pelos títulos públicos.

Ainda assim a manada hesita.

Resiste em migrar dos piquetes de engorda de curto prazo para canteiros de obras de longo curso.Mesmo com taxas de retorno maiores que a do juro real da dívida pública.

A relutância não é totalmente espontânea.

Anima-a a lira musical conservadora que sassarica dando voltas no salão, a embalar expectativas de que o Brasil de Dilma vai acabar na próxima curva.

A estratégia tem lógica.

Trata-se de engessar a economia em um imenso gargalo de infraestrutura, capaz de emprestar alguma relevância ao discurso do senhor Neves, em 2014.

O governo tenta contornar a arapuca trazendo a concorrência do investidor estrangeiro para atiçar o investimeto local.

Mas não é o único obstáculo que enfrenta.

O país que pretende construir 10 mil kms de ferrovias nos próximos anos não dispõe de uma única fábrica de trilhos para atender a demanda prevista.

O colapso dos trilhos, curiosamente, não integra os hits da lira musical conservadora.

De todos os colapsos alardeados pelas manchetes nos últimos meses, o dos trilhos é o mais palpável.

Não como ameaça.

É a realidade palpitante dos dias que correm.

Um trecho de 600 km da Ferrovia Norte-Sul, que ligará as cidades de Ouro Verde (GO) e Estrela D"Oeste, em São Paulo, em construção pela Valec, está com as obras prestes a parar.

Por falta de trilhos, informa o insuspeito jornal Valor Econômico.

Que a fuzilaria midiática não se debruce sobre esse férreo gargalo causa espécie.

O Brasil, ao lado da Austrália, é o maior exportador de minério de ferro do mundo.

Não qualquer minério.

A mina de Carajás, no Pará, concentra a maior reserva de ferro de alto teor do planeta. Bom para fazer o aço requerido por uma laminadora de trilho.

Trata-se de uma reserva nuclear rodeada por um imenso estoque de manganês, além de ouro, dez jazidas de cobre e quatro de níquel.

Carajás, que fica próximo a Serra Pelada, tem fôlego para cerca de quatro séculos de exploração.

O paradoxo não fica nisso.

A China compra 70% do minério de ferro embarcado pelo Brasil.

E o país importa da China cada centímetro de trilho de aço de que necessita.

Quando há problema com as importações, como agora no caso da Valec, o comboio descarrila. 

Como entender que o senhor Neves, seus padrinhos de partido e os embarcados da mídia não explorem um desconcerto como esse que grita ao sol do meio dia?

Uma rápida recapitulação ajuda a entender o paradoxo dentro do paradoxo.

A Vale do Rio Doce, detentora da jazida de Carajás, foi privatizada por R$ 3,3 bilhões, em 1997 no governo FHC --com o empenho firme de Serra, gosta de contar o ex-presidente tucano. 

Um trimestre padrão de lucro da empresa pagaria o valor atualizado da transação. 

A Vale exporta, em média, uns US$ 25 bi ao ano em minério de ferro bruto.

Fundamentalmente para a China, no valor médio de US$ 130 a tonelada.

O Brasil importou, só em um edital de compras, em 2010, para citar um exemplo, 244,6 mil toneladas de trilhos.

Fundamentalmente da China e secundariamente do leste europeu.

Preço médio: US$ 864 a tonelada.

Quase sete vezes o valor do minério bruto embarcado. 

Durante seus dois governos, Lula insistiu inúmeras vezes, em público e em encontros privados, para que a Vale investisse em siderurgia e beneficiasse o minério brasileiro.

Transformando-o em trilhos.

Seus apelos foram recebidos com estupefação pela mídia sempre ciosa dos interesses superiores dos acionistas, em relação às necessidades secundárias do país.

E tratados com senhorial indiferença pelo presidente executivo da Vale, o tucano Roger Agnelli, que dirigiu a empresa de 2001 a 2011, por indicação dos acionistas privados, conforme reza o esperto escopo da privatização.

Uma laminadora de trilhos adquire escala econômica a partir de 500 mil toneladas ano de produção.

A demanda do país chegou a 496 mil toneladas em 2010 .

Ou seja, antes de deflagrar os planos que agora projetam o maior investimento ferroviário dos últimos 40 anos.

O Brasil nem sempre foi assim tão paradoxal.

Foi preciso empenho para chegar onde chegamos.

Em 1996, um ano antes de privatizar a Vale do Rio Doce , o governo Fernando Henrique Cardoso desativou também o laminador de produção de trilhos da Companhia Siderúrgica Nacional.

A CSN criada por Vargas.

O tucano que prometeu enterrar o ciclo Vargas fez barba e bigode.

Entregou o minério bruto.

E inviabilizou a agregação de valor local. 

Não foi um plano demoníaco.

Foi a pacífica convicção anti-desenvolvimetista na complementariedade dos livres mercados.

Movida por uma fé esférica nas vantagens comparativas 'naturais' --que a história não tem direito de contrariar, como Vargas o fez.

Ao mandar Vargas e o desenvovimentismo às favas, o ciclo tucano definiu que cabe ao Brasil fazer o que sabe melhor: raspar Carajás até o fundo do tacho. 

Abastecer o mundo.

E importar o que for preciso.

Acionistas da Vale nunca reclamaram dessa lógica.

Nem a mídia que agora fuzila a Petrobrás, pelos índices de nacionalização impostos às encomendas de equipamentos.

Nem o colunismo que ecoa a 'pátria dos acionistas', inconformado com o desvio de dividendos da estatal para a 'irrealista' meta de construir quatro refinarias --e ainda por cima, uma delas com a Venezuela-- que agreguem valor ao pré-sal.

Enquanto comandou a Vale, com a cobertura dos acionistas privados, da mídia amiga e dos tucanos, Roger Agnelli jamais permitiu tamanho disparate. 

Foi assim que seu nome foi alçado à galeria dos melhores CEOs do planeta.

O seleto grupo de ‘matadores’ de um capitalismo reflexo, rapinoso e imediatista, em que as coisas dão certo quando tudo dá certo.

Quando dá errado, como na crise de 2008, a Vale, de Agnelli, foi a primeira empresa brasileira a baixar o porrete grosso: demitiu 1.300 operários numa tacada.

A Petrobrás não demitiu ninguém. E engoliu um congelamento estratégico do preço da gasolina, martelado como escândalo pelo jornalismo especializado no direito dos acionistas graúdos.

O herói pró-cíclico consagrou-se assim.

Esburacando o país para saciar a fome das siderúrgicas internacionais. 

Graças a sua resistência, a obra tucana de privatizar o subsolo e esfarelar a superfície industrial manteve-se intacta por uma década.

Um ciclo de fastígio da república dos dividendos. 

Hoje o Brasil é um paradoxo mineral: exporta ferro e vive sob a ameaça de um colapso na oferta de trilhos. 

O governo do PT teve tempo.

Poderia ter montado uma laminadora estatal de trilhos, por exemplo. Por que não o fez?

O governo errou.

Mas a mesma mídia que agora retrucará assim – não sem razão – seria a primeira a disparar alarmes e sinalizadores contra 'o estatismo ineficiente e empreguista' do PT.

Ou não é exatamente como agem hoje em relação à Petrobrás e ao pré-sal? 

FHC reclama que Dilma cospe no prato fino que os seus oito anos de governo legaram ao país.

O colapso dos trilhos revela a ponta da gororoba, o imenso angu de caroço acumulado sob a película do caviar.




TORCIDA ORGANIZADA OU CRIME ORGANIZADO?





Loucos x Razão, o jogo do século


José Roberto Torero, na Agência Carta Maior




Kevin Espada morreu. 

Tinha 14 anos e morreu num estádio de futebol. 

Pelo seu olho direito, que via o jogo do seu time, entrou um sinalizador a mais de 300 quilômetros por hora. 

Imagino os amigos de Kevin voltando às aulas e vendo sua cadeira vazia. Imagino sua mãe preparando o café da manhã e colocando, por engano, um prato a mais na mesa. Imagino seu pai entrando no seu quarto e esvaziando gavetas, colocando sapatos em caixas, enrolando uma bandeira de futebol.

Imagino estas tristes cenas, mas sei que na verdade isso é uma perda de tempo. O importante é pensar no futuro. Nada trará Kevin de volta. Mas pode-se impedir que outros garotos morram, e matem. 

O primeiro passo é proibir a entrada de sinalizadores e afins nos estádios, e melhorar a revista na entrada, que é bem relaxada em outros países. 

Mas também é preciso punir. Não apenas para castigar o assassino, que provavelmente não quis matar ninguém (mas matou). Mas para evitar que outras mortes tolas como esta aconteçam.

É preciso punir a ideia de que um clube vale mais que uma vida, a ideia de que o futebol é algo realmente importante. Ele não é. É só um esporte, um negócio. Importante mesmo é a vida, esta coisa frágil, delicada, que um dia certamente vai se acabar, mas que queremos que dure o máximo possível, e não apenas 14 anos.

Regras para os desregrados
O artigo 11 do novo regulamento da Conmebol, aprovado para esta Libertadores, diz que as associações e clubes podem ser punidos por comportamento inadequado da torcida. Já o artigo 18 diz que as punições possíveis são “advertência, repreensão, multa, anulação de jogo, perda de pontos, atuar com portões fechados, proibição de jogar num estádio ou num país e exclusão da competição (presente ou de edições futuras)”. 

Como foi cometido o crime máximo, a pena deve ser máxima. 

E esta punição não é só um castigo para a torcida e para o clube. Mais do que isso, repito, é para prevenir futuros crimes, para evitar futuras mortes. 

A punição é moralizadora. A impunidade é um incentivo à continuidade dos erros. Está aí a política nacional que não me deixa mentir. 

Mas não se pense que a torcida corintiana é a primeira ou a única a levar este tipo de artefato para o estádio. Os inchas do Peñarol, por exemplo, adoram jogar fogos de artifício na torcida adversária. Se este clube já tivesse sido punido, talvez Kevin Espada estivesse vivo. A Conmebol, por burrice, já perdeu muitas chances de educar os torcedores e civilizar a Libertadores. Não pode perder mais esta.

Para mim não interessa se o menor H.A.M., que se apresentou como culpado é realmente o assassino. Talvez seja, talvez não (e a favor desta última hipótese há o fato da feliz coincidência de o garoto ser menor de idade, e de seu advogado insistir na culpa de seu cliente, algo raro, no mínimo). 

Torcidas distorcidas
Para mim interessa a questão esportiva, já que esta é uma coluna sobre esporte. E a morte de Kevin Espada traz as torcidas organizadas de volta ao debate. Elas devem ser proibidas ou não? 

Por uma questão de princípio, sou contra impedir qualquer movimento organizado. Daí acho que elas não devem ser proibidas. Mas elas têm que ter menos importância. As organizadas se mostraram pouco úteis. Eu tinha fé que elas poderiam ser o começo de uma mudança profunda no futebol, mas não foi o que se viu. Elas não pediram transparência de gestão, quase nunca as vi se mobilizando contra a corrupção de seus dirigentes. Parecem ser mais uma massa de manobra, apoiando aqueles que lhes dão ingressos, passagens e carne para churrasco.

Outro fator é que elas afastam o torcedor comum. No final das contas, em vez de contribuírem para o aumento da renda nos estádios por ser um público fiel, as organizadas acabam espantando os desorganizados. A queda do número de torcedores nos estádios não é fruto apenas da diminuição dos lugares. 

Apesar dos problemas gerados pelos torcedores fanáticos, eles vêm sendo glamurizados. Seus sacrifícios insanos são transformados em pauta, seja montar um museu do clube em sua casa, seja gastar o dinheiro que não tem para ver seu time jogar num país distante. Até certa parte da imprensa diz que é poético fazer parte de um bando de loucos. E isso não se aplica só aos corintianos, porque loucos há em qualquer torcida. 

Na verdade, acredito que esta glamurização é muito lucrativa para muita gente. Para os patrocinadores, que veem seus produtos cada vez mais expostos, e para as tevês, que têm cada vez mais espectadores para o futebol (e o aumento das cotas pagas pelas redes é prova disso). 

Aliás, a busca de lucro é que deve ter impedido o Corinthians de desistir da Libertadores em sinal de luto. Há tantos interessados (tevês, patrocinadores e empresários de jogadores) que seria arriscado, financeiramente, tomar uma atitude nobre como esta. Mas será que para o patrocinador é bom ter sua marca associada à morte de um jovem de 14 anos? 

Um estádio de futebol pode ser o lugar mais feliz do mundo. Mas os loucos e os burros podem transformá-lo num cemitério.








A CRISE CONTINUA



A Itália à beira da ingovernabilidade


Eduardo Febbro, na Agência Carta Maior






Roma - A Itália colocou um pé na fronteira da ingovernabilidade. Ao final das eleições legislativas realizadas domingo e segunda-feira, o Partido Democrático, movimento de centro-esquerda liderado por Luigi Bersani, ganhou as eleições, mas não o poder. A direita ressuscitada de Silvio Berlusconi e a poderosa emergência de uma força política contestadora que cresceu fora dos esquemas tradicionais da prática política deixaram a tímida esquerda italiana com uma escassa maioria para governar. Ninguém sabe hoje quem estará no poder amanhã. A centro-esquerda de Pier Luigi Bersani obteve 29,75% dos votos na Câmara de Deputados. Com isso, consegue o abono de 55% das cadeiras em jogo que o sistema outorga ao ganhador. No entanto, o caminho para o governo tropeça no Senado, onde o Povo da Liberdade, do patético Silvio Berlusconi, em coalizão com a racista Liga do Norte, faz sombra ao PD com 28,96% dos votos. Logo em seguida vem o Movimento Cinco Estrelas, do comediante genovês Beppe Grillo, que obteve 25,5% na Câmara de Deputados e 23,7% no Senado. O atual presidente do Conselho italiano, Mario Monti, ficou distante com cerca de 11% dos votos e perde assim muitas possibilidades de respaldar a centroesquerda em um futuro governo de coalizão.

As eleições não resolveram o dilema italiano e muitos prognosticaram segunda-feira à noite um retorno às urnas para dirimir a incerteza. As duas maiores surpresas desse pleito foram protagonizadas pelo movimento Cinco Estrelas e por Silvio Berlusconi. O primeiro porque conseguiu atrair centenas de milhares de eleitores enojados com o sistema político. O segundo é, indiscutivelmente, a potência eleitoral que Berlusconi ainda detém. Após vinte anos de escândalos de toda índole e há apenas alguns meses de ter deixado o país à beira do abismo moral e financeiro, Berlusconi, segue sendo o árbitro da política nacional. Pior ainda, não é improvável que seja ele quem consiga governar. Acossado pela justiça, com denúncias de conteúdo sexual e acusações de corrupção, Berlusconi sai das urnas com um êxito angustiante. As pessoas seguem acreditando em que as enganou e as manipulou como ninguém. Entre a oferta da centro-direta apresentada por Mario Monti e a direita escandalosa do “Cavaleiro”, a Itália preferiu o último.

Em porcentagens absolutas, o vencedor é a centro-esquerda do Partido Democrático, mas os números desenham um futuro nebuloso. A Itália é, no momento, um país ingovernável. A Câmara de Deputados é da coalizão de centro-esquerda, mas o Senado pertence a Berlusconi. Isso trava praticamente todas as decisões que um futuro governo possa tomar. Todos os caminhos que restam são instáveis: formar um governo estável parece um milagre. Pode-se também pensar em um acordo entre Bersani e o movimento Cinco Estrelas, mas não para governar e sim para mudar a lei dos partidos e, com uma legislação menos diabólica como método, voltar a votar.

O grande herói da noite eleitoral é indiscutivelmente Beppe Grillo. Nela recai um poder que abre um rombo na sólida frente dos partidos de governo italianos. O comediante zombou daqueles que governam e desprezam a sociedade. A Itália ingressou na noite de segunda-feira no seleto grupo de países europeus que, ao cabo de processos eleitorais celebrados em plena crise, terminam com partidos anti-sistema que obtém resultados parlamentares consequentes. O caminho foi aberto pela Grécia no ano passado, quando o movimento da esquerda radical Syriza, dirigido por Alexis Tsipras, esteve a ponto de formar o governo e depois, nas novas eleições realizadas em maio, obteve cerca de 20% dos votos. Syriza ficou como a segunda força política da Grécia, na frente do histórico e corrompido partido socialista grego, Pasok.

Quase simultaneamente, na França, a Frente de Esquerda, de Jean-Luc Mélenchon protagonizou uma penetração eleitoral espetacular par uma formação praticamente nova e em cujo interior há desde socialistas dissidentes, anarquistas libertários, ecologistas e comunistas. De uma maneira distinta, mas com um resultado mais espetacular, a Itália entrou na dissidência política. O movimento Cinco Estrelas, liderado pelo humorista Beppe Grillo, se içou a níveis desafiadores frente a uma casta política que funciona como esses sistemas de irrigação automática: só vive para si mesma, para preservar suas prerrogativas e benefícios. Cinco Estrelas rompeu o esquema. Beppe Grillo estragou a festa dos partidos de governo: o Partido Democrático, de Luigi Bersani, e o Povo da Liberdade, do sobrevivente de todas as batalhas e golpes baixos nos últimos 20 anos, o ex-presidente do Conselho Silvio Berlusconi. Esse movimento é uma mistura ousada, uma espécie de “bíblia junto al calefón”, como diz a letra do célebre tango. Se perguntarem a qualquer italiano que decidiu votar neste partido que se define como uma “comunidade”, sua resposta é inequívoca: porque quero que as coisas mudem.

A mudança é, nas sociedades ocidentais, como a irrenunciável aspiração human ao amor. Algo desejado com uma permanência física e metafísica e sempre postergado por essa tendência à incrustação e ao imobilismo que caracteriza os partidos uma vez que se instalam no poder. Contestadora, aberta e declaradamente anti-sistema, Cinco Estrelas é exatamente igual ao slogan com o qual lançou sua campanha: “o Tsunami tour”. Um tsunami cuja verdadeira capacidade de ação e de construção ainda está por se ver. Disparatado para alguns, populista para outros, Cinco Estrelas, seja como for, é a demonstração de um cansaço infinito que se volta contra a política neste século XXI, uma empresa insaciável de mentiras, manipulações, enganos, uma indústria ao serviço de uma corporação de engravatados e não ao povo que foi tentado com propostas que jamais se cumpriram. A socialdemocracia moderada do presidente francês François Hollande é uma prova amável disso: palavras, palavras, palavras.

Beppe Grillo ingresso por essa brecha de desencanto, de orfandade representativa de uma sociedade onde 8 milhões de pessoas vivem com menos de mil euros por mês – é um índice baixo na Europa – e onde um em cada três jovens não tem trabalho. Força destruidora do sistema que se propõe reparar os esquecimentos interessados da governabilidade acomodada e corrigir o sacrifício a que o neoliberalismo europeu submete a milhões e milhões de indivíduos para não perder as suas já grandiosas margens de lucro. Melhor um milhão de desempregados a mais do que 3% de lucros a menos. Com um blog, uma conta no twitter e sem jamais ter pisado num canal de televisão em um país onde os políticos dão a vida para aparecer na frente das câmeras, Beppe Grillo conquistou as massas. Há alguns anos, este humorista genovês organizou o “Vaffanculo Day”, um dia de protesto global contra os políticos. Agora o Vaffanculo passou dos protestos ás urnas e a Itália entrou em uma incerta dissidência contra o sistema.

Tradução: Katarina Peixoto





A HERANÇA DO PRÓXIMO PAPA

As finanças secretas e caóticas da
igreja católica


Marcelo Justo, na Agência Carta Maior




Londres - O Papa Bento XVI abandona o barco em meio a sérios problemas financeiros. A investigação por lavagem de dinheiro do Banco do Vaticano, as indenizações pelos escândalos sexuais e o número decrescente de fieis e doações são alguns dos problemas que o próximo pontífice herdará. Ninguém sabe exatamente quanto gasta a Igreja Católica em nível mundial, mas segundo uma investigação da revista inglesa The Economist, publicada no ano passado com base em dados de 2010, a cifra rondaria os 170 bilhões de dólares. Em um livro sobre as finanças secretas da Igreja Católica, o jornalista Jason Berry, que investigou o tema nos últimos 25 anos, afirma que a estrutura financeira da igreja é “caótica” e “opaca”.

Em entrevista à Carta Maior, Berry falou das dificuldades econômicas do Vaticano que, para ele, remetem à guerra fria e à massiva injeção de dinheiro da CIA no Vaticano para neutralizar a ameaça do Partido Comunista Italiano, então o mais poderoso da Europa ocidental.

Carta Maior: Como é a estrutura financeira da Igreja Católica em nível mundial?

Jason Berry: A Igreja Católica é muito hierárquica, monárquica eu diria, com o Papa como líder e dioceses dirigidas por arcebispos e bispos em todo o globo. Mas, em virtude de seu próprio tamanho, é internamente caótica e ingovernável. Cada bispo trabalha em sua diocese como se estivesse comandando um principado.

CM: O que sabemos de concreto sobre a riqueza do Vaticano?

JB: Há uma absoluta opacidade nas contas. Quando o vaticano declara suas rendas e gastos anuais não inclui o Instituto para as Obras de Religião, o IOR, mais popularmente conhecido como o Banco do Vaticano, cujos fundos são estimados em cerca de 2 bilhões de dólares. O IOR tem sido administrado em um clima de absoluta falta de transparência, o que o converteu em um veículo perfeito para o trânsito de todo tipo de fundos. Mas agora, com a investigação do Banco Central da Itália sobre lavagem de dinheiro, isso está mudando.

CM: Segundo algumas informações, o Vaticano tem interesses em uma empresa de espaguete, no setor financeiro, aviação, propriedades e uma companhia cinematográfica. Diz-se, inclusive, que controla entre 7 e 10% da economia italiana. Mas, dada a opacidade de suas contas, até onde é possível confirmar essas informações?

JB: Há informação disponível a instituições que nos permite saber onde está o dinheiro do Vaticano. Na Itália, o Vaticano investiu muito no Banco de Roma, que foi fundamental na reconstrução da Itália depois do “Risorgimento” no século XIX. Também tem negócios na área dos transportes públicos. A isso deve-se somar propriedades na própria Itália, na Europa e nos Estados Unidos. O Vaticano chegou a ser um dos proprietários do edifício Watergate, do famoso escândalo que provocou a renúncia de Richard Nixon. O grande tema hoje em dia é averiguar até onde prestou serviços a clientes que o utilizam como um banco “off shore”.

CM: Que impacto econômico os escândalos sexuais tiveram nas finanças da igreja?

JB: Nos Estados Unidos esse impacto foi muito forte. As dioceses e ordens religiosas pagaram mais de dois bilhões de dólares. Em muitas cidades tiveram que fechar igrejas. Los Angeles, Chicago e Boston, três das mais importantes arquidioceses, tiveram um rombo médio de 90 milhões de dólares em seus fundos de pensão.

CM: Em seu livro “Vows of Silence” você fala do fundador dos Legionários de Cristo, o mexicano Marcial Maciel que chegou a controlar um império de 650 milhões de dólares e contou com a proteção do Papa João Paulo II, apesar das denúncias de abusos sexuais. Maciel teve fortes vínculos com o governo de Pinochet no Chile e com os governos da América Central. Há alguma figura equivalente na igreja de hoje?

JB: Maciel foi o mais bem sucedido coletor que a igreja teve. Começou no final dos anos 40 buscando apoio de milionários católicos no México, Venezuela e Espanha durante a perseguição dos padres no México e pouco depois da guerra civil espanhola. Com este dinheiro, Maciel formou sua própria base de poder em Roma e se converteu no porta-voz do setor mais conservador e militante da igreja. Assim como fez com Franco, se vinculou muito com Pinochet no Chile. Nos Estados Unidos o próprio diretor da CIA durante os anos Reagan, William Casey, fez uma doação de centenas de milhares de dólares aos legionários. Maciel comportava-se como um político que viajava pelo mundo arrecadando fundos para fazer avançar a causa do catolicismo conservador e a agenda política conservadora. Mas a verdade era que toda sua ideologia encobria um delinquente sexual com poderosos contatos.

Apesar de ter sido acusado de abusar de seminaristas, o Vaticano não o investigou até 2004, a pedido do cardeal Ratzinger, quando João Paulo II estava morrendo. Graças a isso sabemos que teve filhos com duas mulheres no México e que manteve ambos os lares com dinheiro da Legião de Cristo. O escândalo é que o Vaticano demorou tanto para investigá-lo e deixou que ele se transformasse em um Frankenstein. Não há hoje uma figura equivalente no que diz respeito à arrecadação de fundos.

CM: Há uma longa história de escândalos nas finanças do Vaticano. Nos anos 80 houve o escândalo do Banco Ambrosiano e seu presidente, Roberto Calvi, que apareceu enforcado debaixo da ponte de Blackfriars em Londres. Calvi tinha fortes vínculos com o então presidente do Banco do Vaticano, o arcebispo estadunidense Paul Marcinkus. Há uma continuidade entre esses escândalos e os atuais problemas do banco?

JB: Creio que na realidade é preciso retroagir à Segunda Guerra Mundial quando a CIA começou a transferir grandes somas para o Banco do Vaticano. Em 1948, foi a primeira eleição na qual o Partido Comunista italiano, convertido no mais importante da Europa, buscava o poder. Neste momento houve uma grande campanha nos Estados Unidos, patrocinada pelo governo, da qual participou Frank Sinatra, para financiar a democracia cristã. Este foi o começo da história do dinheiro que círculos dos serviços de inteligência estadunidenses para o Vaticano. Uma geração depois, com Roberto Calvi e Marcinkus, o banco havia se convertido em uma via muito lucrativa para a passagem de dinheiro. No final dos anos 80, o banco teve que pagar uma multa de 250 milhões de dólares. Já ali o banco funcionava como uma “off shore” para seus clientes privilegiados. Mas ainda falta muito por documentar sobre essa história.

Tradução: Marco Aurélio Weissheimer




25 fevereiro 2013

COMO FUNCIONA A JUSTIÇA

A imprensa e o caso das crianças
torturadas


Luciano Martins Costa, no Observatório da Imprensa





Demorou uma semana, e apenas um dos principais diários de circulação nacional decidiu levar adiante o tema suscitado pela morte do técnico em computadores Carlos Alexandre Azevedo, ocorrido no dia 16/2. Como foi informado por este Observatório em 18/2 (ver “Morrer aos poucos”), ele se suicidou aos 39 anos, por não conseguir superar o trauma das torturas a que foi submetido enquanto esteve preso com seus pais, no Dops paulista, quando tinha apenas um ano e oito meses de vida.
Folha de S. Paulo havia feito, conforme sugestão deste observador, um necrológio no dia 21/02, mas nada além disso. Seus editores certamente ainda acreditam que o que houve no Brasil foi uma “ditabranda” – nesse caso, a destruição da vida de Carlos Alexandre a partir da primeira infância teria sido apenas um dano colateral.
Mas pelo menos um jornal – o Globo – deu sequência à pauta. No domingo (24/2), o jornal carioca publicou reportagem de página inteira com outras histórias de crianças que foram presas e torturadas durante a repressão a ativistas que se opunham à ditadura, nos anos 1970.
Na edição de segunda-feira (25/2), o Globo noticia que a Ordem dos Advogados do Brasil está exigindo que os atos de tortura que vitimaram crianças sejam investigados. Sabe-se que a iniciativa tem poucas possibilidades de seguir adiante, porque o Supremo Tribunal Federal tomou posição contra a reabertura de processos contra agentes da ditadura, sob o silêncio complacente e – por que não afirmar? – aliviado da maior parte da imprensa.
A reportagem de domingo (ver “Tortura na infância gera traumas e documentário” e “Filhos de presos torturados carregam a dor do passado”) no Globo ouviu algumas dessas vítimas, hoje adultos e todos carregando traumas insuperáveis como o que levou Carlos Alexandre Azevedo ao suicídio.
Pelo menos um dos responsáveis por esses crimes é identificado por algumas dessas testemunhas – o coronel Carlos Brilhante Ustra, personagem de outras tantas histórias de torturas e assassinatos, que segue protegido nas sombras da impunidade.
Impunidade é a regra
Se não for suficiente para romper esse círculo vicioso de omissões e cumplicidade que envolve quase toda a imprensa e o órgão máximo da Justiça, a morte de Carlos Alexandre Azevedo tem pelo menos o poder de tirar da letargia a OAB.
A declaração do presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos da Ordem, publicada pelo Globo na segunda-feira (25), revela o espanto de quem desconhecia a degradação que tomou conta dos órgãos da repressão na década que antecedeu a abertura democrática. “Estamos descobrindo que nem as crianças escaparam da sanha assassina dos torturadores”, diz o representante dos advogados brasileiros.
O que é que falta para evitar que essa história se esvazie no nebuloso sistema de decisão editorial dos jornais? Por que a imprensa é capaz de seguir os passos de personagens obscuros da politicagem, registrar manifestações de meia dúzia de ativistas contra políticos acusados de corrupção, e não tem interesse em apurar um crime dessa envergadura?
Se o julgamento da Ação Penal 470, que resultou na condenação de alguns dos mais poderosos operadores da política, foi capaz de dominar o noticiário por pelo menos cinco anos, seria de se esperar que a tortura de crianças ocupasse pelo menos uma fração desse interesse, ou estamos todos mergulhados em plena alienação?
A impunidade, cujo fim foi celebrado no caso dos envolvidos no escândalo chamado de “mensalão”, segue sendo o padrão proporcionado pela legislação que reconstruiu a democracia no Brasil.
O que se vê na rotina é a mensagem de que o crime compensa: o jovem Gil Rugai, condenado por haver assassinado o pai e a madrasta, recorre em liberdade e, mesmo que tenha confirmada a sentença, terá de cumprir apenas 3 anos e 1 mês de prisão. Depois disso, poderá se habilitar à partilha de uma herança calculada em R$ 22 milhões.
Dezenas de policiais militares acusados de chacinas em São Paulo foram reintegrados ao trabalho nos últimos meses, sem sinal de que venham a ser levados à Justiça.
O médico Roger Abdelmassih, condenado a 278 anos por crimes sexuais, foi liberado pela Justiça e desapareceu.
Torturadores de crianças gozam a liberdade e a aposentadoria paga pelo Estado.
Só o Globo parece ter entendido que esse é um tema importante.