31 agosto 2013

CORPORATIVISMO

São brancos, que se entendam



Luciano Martins Costa, no Observatório da Imprensa



Os jornais de sexta-feira (30/8) rescendem a indignação, com a decisão da Câmara dos
Deputados de preservar o mandato do deputado federal Natan Donadon, de Rondônia, que cumpre o resto de sua carreira parlamentar no presídio da Papuda, em Brasília.
Não faltaram declarações destemperadas, interpretações apressadas e ilações de todos os tipos para explicar o resultado da votação, que em muitos sentidos soa como uma provocação às demandas manifestadas pela sociedade nos últimos meses. No entanto, trata-se de um caso de diagnóstico muito simples: a Câmara agiu movida pelo espírito de corpo.
A imprensa também induz à ideia de que prevaleceu, na verdade, o espírito de porco, ou seja, o primário desejo da maioria dos parlamentares de fazer sujeira e de se lambuzar na lama. Mas isso seria apenas licença poética, e de péssima poesia. O que os jornais retratam, na soma das declarações, opiniões e análises dos votos e abstenções, é que no Congresso Nacional o corporativismo prevalece acima de qualquer outra preocupação. No entanto, esse não é um pecado exclusivo dos parlamentares.
A predominância dos privilégios de classe sobre os interesses da população em geral é característica de todas as instituições da República. Assim como nos paços municipais de todo o país e nas sedes dos poderes estaduais, prevalece em Brasília uma aura de pertencimento que rejeita toda e qualquer interferência exógena.
Qualquer cidadão que não seja reconhecido como parte da ecologia do poder, senador, deputado, ministro ou um simples assessor com aquele crachá pendurado no pescoço por uma fita verde-amarela, é um estranho incômodo nas cercanias das instituições públicas.
O que faz de Brasília um lugar inóspito para os visitantes não é a arquitetura de Oscar Niemeyer e Lúcio Costa, ou o ar desértico que só oferece algum alívio na chegada da primavera: é o conjunto de edificações simbólicas do corporativismo. Essa configuração insular tem a capacidade de incorporar e acomodar todos seus moradores e frequentadores assíduos, inclusive e especialmente os jornalistas.
Brasília representa o ajuste perverso e equilibrado de todos os interesses corporativistas que atrasam a consolidação da democracia e preservam as desigualdades que dividem os brasileiros. Na capital do país, a própria sociedade é tratada como um corpo estranho.
A ilha da fantasia
Embora editados fora do Distrito Federal, em outros centros como São Paulo e Rio de Janeiro, os principais jornais do Brasil são contaminados por esse poder de abduzir e imantar interesses particulares em um sistema de sistemas que se isola do ecossistema social.
Ainda que, eventualmente, como no caso do deputado-presidiário, a mídia tradicional se refira ao Congresso Nacional como uma casa de alienados, e mesmo quando usa a expressão “ilha da fantasia” para definir a capital federal, ela também faz parte desse complexo de interesses.
Observe-se, por exemplo, como os textos que tratam do caso Donadon fazem o leitor imaginar que se trata de uma caprichosa picuinha. A contrapartida é a reportagem sobre o ministro do Supremo Tribunal Federal Dias Toffoli, que julga processo de banco em que obteve empréstimo com todas as características de uma ação entre amigos.
Citam-se os casos específicos, mas omite-se o fato de que o conflito de interesses é pecado comum em toda a magistratura, da menor comarca à corte suprema. Ou seja, apontam-se os pecados individuais, dissimulam-se as perversidades do sistema.
O corporativismo que preserva o mandato do deputado que tem mais de treze anos de pena a cumprir, condenado por roubo e formação de quadrilha, parece se configurar como uma provocação do Congresso ao Supremo Tribunal Federal, que mantém com o Parlamento uma desabrida disputa por atribuições.
Sob o olhar da imprensa, trata-se de uma ofensa direta à própria sociedade. E não deixa de ser, mesmo, um atentado ao senso comum. Mas o senso comum também inclui o repúdio a todo o complexo de interesses corporativos, do qual fazem parte o Judiciário e a própria mídia.
Visto de fora, o entrevero lembra a expressão do século 18, segundo a qual “eles que são brancos, que se entendam”.
 
 

XENOFOBIA

 


A foto que virou radiografia

Alberto Dines, no Observatório da Imprensa


O que assemelha dois episódios aparentemente tão diferentes como a manutenção do mandato do deputado-presidiário Natan Donadon e a vaia dos médicos cearenses aos colegas cubanos recém-chegados?
O salvo-conduto oferecido pelos deputados ao legislador-malfeitor situa-se na esfera criminal: espertos, pretendem gozar da mesma impunidade quando seus eventuais ilícitos e bandalheiras forem desvendados. Já a assuada e os apupos dos esculápios no aeroporto de Fortaleza são de ordem pragmática: não querem concorrentes, o imaculado avental branco não pode ser estendido a estranhos. Privilégio exclusivo, só deles.
Deputados-cúmplices e médicos ensandecidos são filhos da mesma aberração política: o corporativismo. A República Corporativa do Brasil avança. Quanto mais se desenvolve a percepção de isonomia e as exigências de igualdade, maior a resistência dos setores agarrados às regalias particulares.
Desvios do grupo
O corporativismo é uma forma de exclusão, fragmentação da sociedade em camadas seletivas, autêntico sectarismo, tribalismo modernizado. É uma incapacidade de enxergar o todo – o bem comum, a comunidade – em benefício dos grêmios privados (as guildas medievais).
Não foi por acaso que o fascismo de Benito Mussolini, um ex-socialista paranóico, edificou sua concepção de Estado sobre a enganosa e pseudodemocrática ideologia corporativista. Também não é coincidência que esta formatação política tenha germinado entre nós com tanto viço e vigor: o tenentismo dos anos 1920, a luta contra as oligarquias da Revolução de 1930, o arcabouço da Constituição de 1934 e a ditadura do Estado Novo imposta em 1937, cada um desses movimentos, à sua maneira e em doses diferenciadas, contribuiu para consolidar uma mentalidade e um arcabouço corporativista até hoje persistentes.
Quando esquecem sua função pública e a solidariedade, inchadas pelo jogo de poder, corporações são caricaturadas como máfias, sendo que a nossa “máfia de branco” tem no currículo desempenhos ostensivamente antissociais.
No entanto, médicos são os nossos melhores amigos, em cada história pessoal há um doutor que minorou a dor, salvou nossa vida ou a de nossos queridos. Não é a pessoa física, a profissão nem o seu benemérito exercício que estão em discussão. São os desvios do grupo, das entidades, a ambição e arrogância da pessoa jurídica convertidas em atividade-fim.
Antípodas e antagônicas
A vaia de Fortaleza foi ouvida no Brasil inteiro graças a uma foto silenciosa e dolorosamente reveladora de malefícios e maldições piores do que o corporativismo [de autoria de Jarbas Oliveira, da Folhapress, publicada na primeira página da Folha de S.Paulo na terça-feira (27/8)]. Doença da alma, a xenofobia é o rancor contra o outro, o diferente, o desigual. No caso, o médico cubano em primeiro plano era negro. Assim, casualmente, a foto converteu-se em radiografia e ofereceu um arrasador diagnóstico da nossa desumanização: a xenofobia é irmã do racismo e ambas, filhas do fascismo.
Medicina e xenofobia não combinam: antípodas e antagônicas. O programa “Mais Médicos” pode resultar numa catarse e vencer a maldição original – a histeria ideológica.


 

 


2014 - I

Dilma retoma fôlego


Maurício Dias, na Revista CartaCapital

Mesmo munido de lupa o leitor terá dificuldades de encontrar nas fotos das manifestações de rua, entre junho e julho, e dos pequenos protestos de agora faixas ou cartazes diretamente dirigidos contra a presidenta Dilma Rousseff. Naquele momento ela surfava uma popularidade inédita na história do País.
As referências indiretas, no entanto, estavam lá, no mal-estar geral que a sociedade expunha: saúde, educação, violência e o surpreendente ataque às obras monumentais dos estádios de futebol, que contaram com apoio maciço dos governos estaduais onde foram e estão sendo construídos.
Não haveria palanque melhor na eleição de 2014. Ninguém duvidava disso. Prepararam uma festa, uma Copa do Mundo, para fazer orgulho ao país do futebol. Os torcedores saíram às ruas País afora. Não distribuíam os aplausos esperados, e, sim, inesperados apupos.
Dilma não era o alvo dos protestos e não houve, naquele momento, quem tenha afirmado que a violenta e rápida queda na popularidade dela e do governo era resultado das manifestações. Não se encontrava uma explicação consistente para sustentar a perda de apoio na sociedade, em torno de 35 pontos, em pouco mais de 30 dias. Uma anomalia.
Em pouco tempo, porém, Dilma virou alvo dos analistas conservadores ou “da imprensa de direita”, como pondera com razão e ousadia o ministro Joaquim Barbosa. Eles tentaram dar o empurrão para ela cair no precipício.
Mas o tombo foi coletivo. Poucos governantes escaparam do fenômeno. Há provas consistentes da queda geral na popularidade. De alto a baixo. Números da pesquisa Ibope de meados de julho, nunca publicados pela imprensa, mostram isso.
A popularidade da presidenta, no conceito “ótimo e bom” (31%), após a queda vertiginosa (caiu de 57%), manteve-se maior, embora na margem de erro, do que a média dos governadores e dos prefeitos: 28%. 

Todos eram alvo daquela surpreendente irrupção social com pouca participação popular. Dilma surpreende quando cai e quando sobe. Nas duas últimas pesquisas (Datafolha e Ibope), ela iniciou um processo de recuperação da popularidade. Voltou, segundo o Ibope, a alcançar 38% de “ótimo e bom”. Ao contrário do que se falou, a reação positiva nada tem a ver com o fim ou a diminuição das manifestações.
As melhores referências são as feiras livres e as gôndolas dos supermercados.
Na ótica do Ibope há uma correlação entre a avaliação da presidenta e a dos governadores: “De um modo geral, nos estados em que os governadores são mais bem avaliados, a presidenta também é mais bem avaliada, independentemente do partido político do governador”. Ou seja, em geral, o negativo e o positivo são creditados tanto ao governador quanto ao governo federal.
Não havia certeza sobre o que a fez perder bruscamente a popularidade que tinha, assim como agora ainda não se pode avaliar a razão pela qual está se reabilitando. E há notícias de que continua em viés de alta.

 

 

2014 - II

A candidatura do PSDB volta à estaca
zero


Antônio Lassance, na agência Carta Maior


Tarde demais para voltar atrás

O muro, que tantas vezes serviu de metáfora para os tucanos, funciona como nunca enquanto representação de um partido emparedado.

Seu candidato preferencial, Aécio Neves, não deslancha nas pesquisas. Ao contrário, recuou. Sua primeira estratégia naufragou e ele corre contra o tempo para aprumar-se. Com a mística mineira de que come quieto, pelas beiradas, e de que devagar se vai mais longe, Aécio tratou de sua candidatura como se tivesse todo o tempo do mundo. Foi engolido pelos acontecimentos.

Em 2012, articulou dentro do PSDB para que recebesse apoios firmes e tivesse seu nome aventado como a bola da vez. Em seguida, em fevereiro de 2013, fez um discurso de candidato ao qual a velha mídia só não deu mais destaque porque o conteúdo era fraco, e sua oratória, sofrível. Em maio, foi eleito presidente do Partido, forma de insuflar sua evidência nacional e estreitar os laços com os diretórios regionais. Finalmente, em agosto, recebeu o apoio dos presidentes dos 27 diretórios estaduais. Cada evento dessa natureza foi organizado para consolidar Aécio como a opção incontestável do PSDB para 2014. No entanto, quanto mais reafirmam o senador como "o" candidato, menos seguros os tucanos estão de que fizeram a escolha acertada. A única certeza é a de que é tarde para voltar atrás.

Quando parecia que tinha tudo para se aproximar dos 20% de preferência dos eleitores, vieram as manifestações de junho. Entre julho e agosto, suas intenções de voto caíram perigosamente para próximo da linha dos 10%.

O partido que tanto esperou por outras candidaturas para favorecer as chances de um segundo turno corre o risco de, se houver, não ser convidado para a festa. A torcida para que Marina e Eduardo Campos entrassem no páreo agora vem misturada com o frio na barriga de que a Rede e o PSB lhe roubem a maior parte dos votos que não irão para o PT.

Para piorar, José Serra, seu arquirrival, apareceu melhor pontuado nas últimas pesquisas. Eterno candidato, Serra mostrou que tem bom "recall" (é bem lembrado), embora também seja dono da maior de todas as rejeições (é extremamente mal lembrado).

Serra apresenta suas armas
Misto de zumbi e kamikaze, a candidatura Serra é um espectro que ronda o PSDB a cada quatro anos e permanece como um de seus grandes problemas.

A guerra travada nos bastidores contra Aécio Neves é bem maior que a troca de farpas que circula pela imprensa. Enquanto muitos dos analistas se debruçam mais sobre os golpes abaixo da linha de cintura, as verdadeiras batalhas tiveram como cenário não só as hostes tucanas. As disputas mais encarniçadas e ferozes se deram pelo apoio de outros partidos, como o PSD, o PPS, o PMN e o DEM.

Serra estava recolhido, desde o início do ano, diante não apenas da costura partidária pavimentada por Aécio. Havia uma restrição importante à sua candidatura por parte dos grandes financiadores de campanha, mais exatamente, dos bancos. Sondados desde o final de 2012, eles responderam que o mais importante critério para o apoio concentrado de oposição a Dilma era o de arranjar um nome realmente competitivo. A rejeição no eleitorado e o histórico de derrotas pesaram contra o velho postulante de sempre. Hoje, a ascensão de Marina e o fato de ela ter se cercado de interlocutores da cozinha do sistema financeiro privado criaram um compasso de espera entre os grandes financiadores. Enquanto Serra foi imediatamente preterido, o ímpeto pela campanha de Aécio também sofreu um refluxo.

A prioridade de Aécio vinha sendo a de desbastar arestas internas e dar coesão ao PSDB nos estados. Serra, por sua vez, saiu a campo com a estratégia de mostrar-se mais competitivo por sua capacidade de atrair apoio de outros partidos. Aécio partia apenas da fidelidade canina do DEM em quase todas as campanhas presidenciais do PSDB (à exceção da de 2002) e da sinalização de apoio de Paulinho da Força, com seu partido em gestação, o Solidariedade, que, pelo andar da carruagem, deve nascer nanico, bem abaixo do peso declarado por seu progenitor.

Serra foi para cima do PSD, do PPS e do PMN. Rapidamente conseguiu uma simulação de neutralidade do PSD em relação ao governo Dilma. Depois, ganhou de presente de Gilberto Kassab uma declaração de compromisso, segundo a qual, fosse Serra candidato, Kassab se sentiria na obrigação de apoiá-lo. O presidente do PSD pôde retribuir e agradar aquele que foi responsável por tê-lo guindado à prefeitura sem ter que apoiá-lo ao final. Julgava remota, como de fato é, a chance de ver Serra candidato.

Em seguida, Serra acionou Roberto Freire (PPS-SP) para dar andamento à ideia de fusão do PPS com o PMN, que levaria à criação do MD (Mobilização Democrática). Freire em momento algum escondeu que o movimento estava sendo feito patrocinado por Serra.

FHC assume o comando
A certa altura, Serra não apenas rivalizava com as intenções espontâneas de Aécio como se mostrava mais apto a conquistar, com outros partidos, mais tempo de TV e rádio para os tucanos. Teria assim uma candidatura mais robusta que a de Aécio. O laço final do embrulho foi a ameaça de abandonar o partido e fazer carreira solo, o que o trouxe definitivamente de volta ao jogo. A ofensiva assustou Aécio e forçou sua reação. Conseguiu, do DEM e do PPS, a garantia de que, se conseguisse unir o PSDB e demover Serra da tentativa de ser candidato, contaria com o apoio desses dois partidos.

Mais importante, convenceu FHC a agir de modo mais ostensivo a seu favor. Usou, para isso, dois argumentos que soavam como música aos ouvidos do ex-presidente. Primeiro, o de que FHC era a única pessoa capaz de unir o PSDB em torno de um só candidato. Aécio se apresentava com a proposta de ser, antes de uma candidatura do PSDB, uma candidatura de FHC. Estava ali o ex-presidente diante de alguém que lhe rogava ser transformado em sua criatura. Em troca, Aécio se comprometia a resgatar a imagem desgastada da presidência FHC, defendendo-a sem constrangimentos. Era tudo o que FHC gostaria de ouvir e de ver acontecer em uma nova campanha do PSDB, sepultando de vez as experiências de 2002, 2006 e 2010, quando seus 8 anos de governo foram renegados por Serra e Alckmin.

Ao invés de uma candidatura com vergonha de defendê-lo, finalmente aparecia um candidato sem vergonha de ser privatista, contracionista, pró-globalização, desregulamentador, gerencialista, enfim, alguém para fazer uma campanha com a cara e o legado de FHC. O discurso ainda viria a calhar na estratégia de recuperar o entusiasmo dos bancos no patrocínio à candidatura.

A operação desmonte da candidatura Serra
Sobre Alckmin, a pressão veio no sentido de disseminar incertezas sobre sua reeleição em 2014. Afinal, o que garantiria que as articulações de Serra, embora a princípio mirassem a campanha presidencial, não fossem ao fim direcionadas para uma candidatura a governador contra o próprio Alckmin? A cizânia surtiu efeito rapidamente. Em março, Alckmin sacramentou seu apoio à eleição de Aécio como presidente do Partido. A única condição imposta foi: una o partido - ou seja, resolva o problema chamado José Serra.

A jogada seguinte de Aécio foi desmontar a operação de fusão do PPS com o PMN. O alvo central foi o PMN. Contra a negociação nacional para a fusão que criaria o Mobilização Democrática (MD), capitaneada por Freire, agiram dois pesos pesados. O próprio Aécio entrou em cena diretamente sobre o PMN mineiro, enquanto Alckmin atuou sobre o PMN paulista. Em ambos os casos, o PMN é inquilino do condomínio peessedebista dos governos de cada um desses estados. Entre trocar o certo pelo duvidoso, o PMN preferiu agir pragmaticamente. Calculou que valia mais a pena ser leal aos governos do que a uma pré-candidatura instável (Serra). Desfez seus acertos com o PPS alegando questões programáticas sobre reforma política e prioridade às bases municipais. Traduzindo: os governos aliados a Aécio cobriram a oferta de Serra e Freire e a ideia da MD se dissipou feito fumaça.

A sucessão de estocadas irritou Serra, mas também o enfraqueceu. A ameaça de sair do partido acabou posta sobre a prateleira, trocada pela insistência em realizar prévias. Alckmin foi o primeiro a manifestar-se favoravelmente à ideia. Não apenas para contemporizar com Serra, cuja presença no PSDB paulista é considerada intimidatória sobre o grupo alckmista. Depois que Serra dissera que certamente seria candidato “a alguma coisa” em 2014, Alckmin passou a ver as prévias como uma maneira de amarrá-lo ao PSDB, enterrando por completo qualquer ameaça à sua candidatura à reeleição do Governo do Estado. Aécio chegou a cogitar que as prévias ocorressem depois de 5 de outubro, tirando a chance de Serra, se derrotado, mudar de partido. A proposta carimbaria a desconfiança contra Serra dentro do próprio PSDB.

No capítulo mais recente da novela, FHC deixou de fazer o papel de bombeiro e preferiu incinerar de vez as pretensões serristas. Em entrevista ao jornal Valor Econômico (26/8/2013), foi duro com Serra e fez uma defesa enfática da candidatura de Aécio. Disse que era muito difícil que ocorressem prévias e afirmou que "a imensa maioria do PSDB quer Aécio". Foi além ao dizer que Serra era um "ser racional", que deveria ser realista e que seu palpite era de que ele fica no PSDB. Para bom entendedor, FHC acusou Serra de estar blefando.

O recado, dado em alto e bom som, era o de que aquela pré-candidatura estava isolada e esvaziada dentro e fora do PSDB. Se saísse do partido, sairia sozinho, abandonado inclusive por seus aliados mais próximos, como o senador Aloysio Nunes Ferreira.

Em torno da construção da candidatura de Aécio, FHC reassumiu o comando estratégico do PSDB, inclusive sobre o programa para 2014. Foi ele um dos primeiros a arquitetar a candidatura de Aécio e, agora, era o responsável por jogar a pá de cal sobre Serra.

Xeque! Cabe a Serra a próxima jogada.
Enquanto isso, a pouco mais de um ano das eleições, Dilma tem uma dianteira de quase o triplo das intenções de voto em relação aos tucanos, que patinam na tentativa de sair da estaca zero.


Antonio Lassance é cientista político e pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). As opiniões expressas neste artigo não refletem necessariamente opiniões do Instituto.

VOTO DEMOCRÁTICO

Fim do voto secreto, mistificação e
retrocesso democrático


Diogo Costa, no Jornal GGN


Sincera e honestamente, tenho todas as dúvidas do mundo sobre o fim do voto secreto no parlamento.

A historiografia brasileira registra inúmeros exemplos da perversidade do voto de cabresto, existente no Brasil até a reforma eleitoral de 1932. O voto de cabresto nada mais era do que o voto distrital vigente na época (curral eleitoral), temperado com o indigesto voto aberto nas eleições.

Esta era a receita da manutenção do poder do coronelismo na república velha, tudo devidamente 'fiscalizado' por capangas que acompanhavam e anotavam, com incrível rigor, qual era a vontade dos eleitores (para premiá-los ou puni-los logo em seguida).

O voto secreto instituído por Getúlio Vargas foi um dos fatores de aperfeiçoamento da democracia brasileira, livrou os eleitores do jugo dos capangas e lhes deu liberdade para votar em quem quisessem, sem sofrer pressões por isso.

O voto secreto e o fim do voto distrital (vigente desde o tempo do Império) foram avanços indesmentíveis, e libertaram as forças democráticas no Brasil.

Pois bem, sabemos todos que o poder econômico captura e torna a democracia brasileira refém do dinheiro. Uma das poucas garantias que os parlamentares tem para agir com alguma independência é o voto secreto.

Com o voto aberto, as pressões do poder econômico e midiático serão elevadas à enésima potência!

Portanto, não concordo com o fim do voto secreto no parlamento. Os parlamentares erram e acertam, como cada um de nós faz a vida inteira. Mas colocar a faca no pescoço dos mesmos, por intermédio dos financiadores de campanha e da mídia oligopólica, não me parece ser o caminho adequado para aperfeiçoar o sistema político brasileiro.

Ao contrário, parece-me que tal medida apenas tornaria os políticos, os partidos políticos e a própria política ainda mais reféns de forças escusas que capturam a vontade e a soberania do voto popular.

Além de tudo isso, esse projeto de fim do voto secreto é na verdade apenas uma medida cosmética, não toca nem de longe no ponto essencial que é a reforma política. Esta sim seria um vetor de avanço democrático, instituindo o financiamento público exclusivo, o voto em lista e o fim das coligações proporcionais.


CATASTRÓFISMO ECONÔMICO

O PIB e a mudança no noticiário econômico


Luís Nassif,  Jornal GGN



Desde junho um pessimismo agudo dominou o noticiário econômico. Em parte, pelo desencanto com o governo Dilma Rousseff. Somado a isso, pelo jogo político que há anos comanda todas as ações da velha mídia, uma aposta temerária de que, com a economia afundando, Dilma pudesse ser derrotada nas próximas eleições.
Nos últimos dias, as pesquisas de opinião indicaram recuperação de parte da popularidade perdida. E na sexta, o IBGE divulgou um PIB surpreendente - de crescimento de 1,5% no segundo trimestre em relação ao primeiro.

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Foi um tiro no pé. O pessimismo exacerbado afetou o mercado publicitário, induzindo os anunciantes a pisar no freio. E Dilma recuperou o favoritismo para 2014.

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Agentes involuntários desse jogo, os economistas que apostavam no caos foram apanhados de calças curtas.
A economia não está o mar de rosas como pretende o Ministro da Fazenda Guido Mantega; mas não está a caminho do caos, como sugeria o noticiário geral da mídia Rio-São Paulo.

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A primeira reação dos economistas foi considerar que em junho houve uma ruptura geral na economia. Portanto os índices divulgados representariam apenas o passado, não permitindo ser otimista em relação ao futuro.
Foi a explicação da economista Monica de Bolle, da consultoria Galanto, em evento do mercado de capitais em Campos do Jordão: "Em alguns casos, o passado traz informações importantes sobre o que vem pela frente. Esse não é o caso do Brasil. A gente teve no início do segundo semestre foi uma descontinuidade não só na economia brasileira como no quadro político e social do país", disse.

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Ora, há uma confusão monumental com o conceito de "ruptura".
Mas as rupturas ocorrem de tempos em tempos e são generalizadas, alterando os fundamentos da economia. Foi assim na crise de 2008; e mesmo na economia brasileira, com as políticas sociais mudando a escala do mercado interno.
Os movimentos de junho passado, apesar de relevantes, influíram especificamente nas expectativas internas.

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Em um primeiro momento, as expectativas despencaram, mas o pessimismo não está se sustentando. No campo específico das expectativas,  em agosto houve alta no Índice de Confiança do Comércio e também do Consumidor, principalmente devido à melhoria de percepção sobre o momento atual. Adicione-se a recuperação parcial da aprovação do governo Dilma Rousseff.

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E aí se entra na questão complexa da politização desenfreada do noticiário.
Frustrada a tentativa de utilizar a crise para as eleições de 2014, com as verbas publicitárias minguando e sendo abocanhadas, cada vez mais, pelos grandes grupos de Internet (Google e Facebook), a velha mídia deu o toque de debandar.
Na sexta, todos os noticiosos do Sistema Globo - do noticiário da CBN ao Jornal Nacional - pareciam tomados de uma euforia infinita em relação ao PIB, anunciando o fim da crise e o início do espetáculo do crescimento.
A partir de agora, todos os analistas do sistema seguirão o script otimista. E haverá a mesma manipulação em sentido oposto: nem se estava em um caos antes; nem se está em um céu de brigadeiro agora.
Mas, a exemplo do samba antigo, o tal do mundo não se acabou.

30 agosto 2013

A VERDADEIRA MEDICINA

O suicídio de imagem da medicina
brasileira


Luís Nassif, na Revista CartaCapital




Prefeito de Vargem Grande do Sul, tio de minha mãe, o médico Bié Mesquita tinha um consultório com duas salas. Numa, os clientes que podiam pagar pela consulta; na outra, os que não podiam. Revezava o dia inteiro atendendo a ambos. Em frente o consultório, montou uma farmácia, mas ninguém sabia que era dele. Os pacientes necessitados saíam do consultório com a receita e a recomendação para aviar na farmácia em frente. Lá, eram informados de que não precisariam pagar nada.
Em Poços de Caldas, o pediatra Martinho de Freitas Mourão atendia de manhã os necessitados, de tarde os que podiam pagar.
Não havia equipamentos sofisticados. Eram tempos longínquos, no interior, com acesso a no máximo uma máquina de raio X. Tinham o estetoscópio, a paleta para colocar sob a língua do paciente e o conhecimento acumulado pelo curso e pela prática. Salvavam vidas.
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Não são exemplos isolados. Na medicina nacional, grandes nomes, médicos bem sucedidos, cirurgiões consagrados passaram a dedicar parte de sua atividade à saúde pública ou atendimento em hospitais públicos. É assim com Adib Jatene, Miguel Srougi e tantos outros. A medicina brasileira forneceu alguns dos maiores homens púbicos do país, sanitaristas como José Gomes Temporão, David Capistrano, José Veccina Neto. Ajudou na criação de um modelo federativo através da obra monumental do SUS (Sistema Único de Saúde).
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Mesmo os Conselhos de Medicina têm um histórico digno. Não fossem os médicos voluntários do Conselho Regional de Medicina atenderem a um pedido e se deslocarem para o Instituto Médico Legal (IML), em maio de 2006, o número de assassinatos da Polícia Militar teria dobrado.
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Por todo esse histórico, é chocante a maneira como Conselhos de Medicina e médicos em geral reagiram à vinda dos médicos cubanos e, antes disso, nas manifestações de rua, portando cartazes agressivos contra políticos, como se fossem os mais vulgares dos trolls de Internet.
Conseguiram jogar a imagem da profissão na lata de lixo, apresentando-se para a esquerda como elitistas insensíveis e para a direita como corporativistas rançosos.
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A própria velha mídia, que estimulou inicialmente os ataques aos cubanos, levantando os argumentos mais inverossímeis para o que era uma medida de saúde pública, recuou, deixando os movimentos médicos com a broxa na mão, expondo a imagem do médico brasileiro a críticas de todos os quadrantes.
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Raras vezes assisti a um suicídio de imagem tão amplo e irrestrito.
Agora, é hora de defender a categoria dessa malta que a representou nas manifestações. A medicina brasileira não são aqueles manifestantes, não são os CRMs que estimularam as agressões vergonhosas contra cubanos.
A medicina brasileira é Bié e é Martinho, é Jatene e é Zerbini, são os sanitaristas que desenharam um novo sistema de saúde, é a estrutura das santas casas de misericórdia, que seguraram a peteca em séculos de descaso público com a saúde, são os médicos do serviço público que cumprem com garra sua missão.
Espera-se que os verdadeiros médicos tenham a coragem de vir a público para consertar o estrago que esses vândalos cometeram contra a imagem da categoria.

28 agosto 2013

LER JORNAIS

Não há inocentes na imprensa


Luciano Martins Costa, no Observatório da Imprensa


A leitura de jornais já foi no Brasil, em tempos não muito distantes, uma das mais gratificantes atividades para os espíritos curiosos. Abrir um diário era como escancarar uma janela para o mundo. Apesar de encontrar interpretações da realidade com as quais eventualmente não concordasse, o leitor ou leitora tinha a convicção de que, mesmo as parcialidades que lhe impunha a imprensa, buscavam sua legitimação num esforço de objetividade. Assim, o conservadorismo do Estado de S. Paulo e a ligeireza do Globo podiam ser comparados à afoiteza impertinente da Folha de S. Paulo e à austera obsessão do Jornal do Brasil pela acuidade, e podia-se perceber o valor simbólico de seus conteúdos.
Uma das razões para essa percepção era a presença, nas redações, de profissionais qualificados com o que existe de essencial no jornalismo: a humilde curiosidade pelo que há de vir.
Os profissionais não eram avaliados por seu perfil ideológico, mas pela capacidade de se surpreender e surpreender o leitor. Por isso, as redações eram verdadeiros laboratórios de receitas políticas, sociais e econômicas, onde um editor filiado ao Partido Comunista dava instruções a um repórter alinhado a uma irmandade católica. Ou vice-versa.
O que fazia, por exemplo, o Grupo Folhas, os Diários Associados ou o Shopping News, semanário de consumo dirigido à classe média alta de São Paulo, aceitarem como editor o militante trotskista Hermínio Sacchetta, fundador do Partido Socialista Revolucionário?
Qual era a vantagem de Victor Civita, o criador da Editora Abril, em manter em seus quadros intelectuais de esquerda visados pela ditadura militar, ou o que movia Júlio de Mesquita Neto a preservar os comunistas que atuavam no Estado de S. Paulo e no Jornal da Tarde, muitos dos quais em cargos de confiança?
A resposta é simples: esses dirigentes de empresas de comunicação sabiam que o jornalismo só se justifica se a busca da objetividade for um propósito, não apenas um mote para dissimular a manipulação da notícia. O subcampo intelectual ocupado pelos jornalistas tinha seus paradigmas, que deviam ser respeitados pelo patrão. Nesse acordo, a mais-valia dos jornalistas era compensada pela liberdade de opinião dentro das redações. Em contrapartida, os jornais ganhavam em diversidade e profundidade, elementos básicos para uma interpretação multifacetada dos acontecimentos.
Tudo pelos holofotes
Abra agora um jornal, qualquer jornal brasileiro, da quarta-feira, 28 de agosto de 2013. O leitor vai encontrar, da primeira à última página, uma só opinião sobre as questões nacionais, seja sobre a crise diplomática criada pela fuga de um senador boliviano que se abriga no Brasil, seja em torno do programa Mais Médicos, seja sobre as perspectivas da economia ou nas especulações em torno das possíveis candidaturas às eleições de 2014.
Todas as pautas conduzem, de alguma forma, a uma matriz de pensamento cuja principal característica é a substituição da “humilde curiosidade” pelo dogma que não admite contraste.
A imprensa brasileira faz tão pouco caso do julgamento que lhe trará o futuro, que parece mesmo movida pela crença na hipótese do “fim da História”. Não se trata, apenas, do alinhamento automático com este ou aquele partido ou agrupamento político: a imprensa só é fiel a si mesma, a seus valores e sua ideologia.
Mesmo os políticos, economistas, empresários, magistrados e outros protagonistas que contam com o apoio explícito das redações, aqueles que têm suas opiniões exibidas a qualquer pretexto, não passam de massa de manobra. Se, no decorrer de determinada campanha eleitoral, este ou aquele aliado for considerado um obstáculo ao propósito da mídia tradicional, será descartado liminarmente.
A imprensa é um campo de batalha dentro do processo civilizatório, e seus soldados são intelectuais cooptados para uma visão de mundo cada vez mais restritiva. Restam poucas cabeças independentes, e sua função não é a de assegurar diversidade ao conteúdo jornalístico, mas preservar a justificativa moral do jornalismo.
Por esse motivo, ao analisar certos textos de articulistas que se esforçam para manter seu espaço nas colunas de opinião dos jornais ou em programas de televisão outrora respeitados, eventualmente o observador se vê tomado por um sentimento de piedade, ao constatar como a obsessão pelos holofotes pode apagar os últimos resquícios de dignidade profissional.
Mas a piedade é um sentimento perverso. Não há inocentes na imprensa.
 
 

MAIS MÉDICOS, MENOS IDEOLOGIAS

Mídia não explica, demoniza


Alberto Dines, no Observatório da Imprensa

Há quase dois meses discute-se a implementação do programa “Mais Médicos” para atender as exigências dos manifestantes de junho. Vacilante, o governo foi apresentando uma sucessão de idéias incompletas que as corporações médica e acadêmica foram torpedeando implacavelmente. Com o decidido apoio da corporação jornalística.
O projeto sobrevivente e o mais consistente, apresentado pela própria presidente Dilma Rousseff em seguida às manifestações, previa a importação de médicos do exterior. Inclusive cubanos. Não era novidade: médicos desse país já prestaram serviço em diversos pontos do Brasil, com excelentes resultados.
À medida que a ideia se cristalizava, aumentava a histeria anticubana que se estendia a candidatos de outros países, especialmente Portugal e Espanha.
Acusações primárias se alternavam: ora dizia-se que os cubanos viriam como espiões ou agentes provocadores, ora que chegariam aqui na condição de escravos (ganhando salários irrisórios enquanto o governo de Havana ficaria com a parte do leão dos 10 mil reais mensais pagos pelo governo brasileiro). Alegou-se que cláusulas especiais foram impostas para evitar que os cubanos pedissem asilo político (por isso vinham sozinhos, sem a família). Nenhum editor deu-se ao trabalho de esclarecer, explicar vantagens e desvantagens.
Gestos e opções
Nos últimos dias, em desespero de causa, celebrados opinionistas acusaram os irmãos Castro de converter seus médicos em simples commodities, fonte de divisas para financiar um país falido. Argumento pueril, enganoso: commodities são bens em estado bruto, médicos são bens com alto valor agregado. A Índia estimula a saída dos seus cientistas e especialistas em informática de olho no retorno que trarão ao país; o mesmo acontece com Israel, que há décadas exporta agrônomos para os quatro cantos do mundo.
O exercício da medicina não pode ser examinado sem levar em conta o seu caráter humanitário. Levar médicos aos grotões do país – além de salvar vidas preciosas, contribuirá decisivamente para desmonetizar uma profissão que vem perdendo velozmente o seu caráter original, solidário e altruísta.
Nossa mídia embarcou de corpo e alma nessa cruzada egoísta, antissocial, fomentada primordialmente pela poderosa corporação médica, pelas empresas de ensino superior & adjacências. E isso no pós-junho, quando nas passeatas ainda reverberam referências pouco airosas à insensibilidade de jornais e jornalistas.
Acusa-se o PT de aparelhar o governo, porém a mesma obsessão ideológica domina os mais instintivos gestos e opções da grande e média imprensa brasileira.
Um jornalista que ouve o coração
Neste ambiente ríspido, desprovido de solidariedade, a coluna de Ricardo Noblat (segunda-feira, 26/8, O Globo, pág. 2) funciona como um alento e, talvez, como um divisor de águas.
O experiente repórter, editor e agora bem-sucedido blogueiro não se deixou enredar pelas armadilhas ideológicas, preferiu entregar-se aos valores morais, como se fazia antigamente quando os jornalistas naquelas redações barulhentas ouviam as batidas do coração e a pressão da consciência.
Só vejo vantagens” – apesar do pragmatismo e objetividade do título, trata-se de uma calorosa convocação para que os jornalistas deixem as trincheiras partidárias que tanto prejudicam os seus dotes narrativos e se entreguem a devoções mais profundas, essenciais.
“Mais Médicos” é um programa da saúde pública. “Mais humanidade” pode ser um projeto de renovação jornalística.
 
 

SENDO ASSIM...

Depois de Molina, Julian Assange

Numa prova de espírito democrático e grandeza política, seria bem oportuno sugerir às mesmas forças que aplaudem a fuga do senador boliviano que reforcem a pressão para que o fundador do Wikileaks possa deixar a Inglaterra

 
Paulo Moreira Leite, em seu blogue
 

Imagine se um funcionário do governo do Equador organizasse a fuga de Julian Assange da embaixada de Londres para Quito. O governo de David Cameron já teria organizado uma frota para ameaçar o pequeno país sul-americano. O gesto seria considerado uma afronta e um insulto de caráter internacional. Já posso ver autoridades falando em boicote aos produtos do Equador.
Sempre em busca de argumentos para atacar Correa e todos os governantes que podem ser considerados herdeiros de Hugo Chávez, não faltariam colunistas conservadores, no Brasil, para exigir nossa ruptura com aquele país. Ou pelo menos um gesto de agressividade sobre um país de PIB menor do que o nosso -- como chamar o embaixador para explicações. 
 
Passando da imaginação para a realidade, foi mais ou menos isso que aconteceu na Bolívia, quando o diplomata Eduardo Sabóia decidiu fugir, clandestinamente, com um senador que se encontrava refugiado na embaixada em La Paz há um ano e meio. 
 
O governo brasileiro tem uma tradição de asilar perseguidos políticos e, apesar de possuir mais de vinte condenações no currículo, existem motivos razoáveis para incluir Roger Molina nessa categoria. 
 
Na última negociação realizada, o governo de Evo Morales concordou em liberar a saída do senador, sem lhe dar o salvo conduto, o que tornaria a saída uma operação arriscada. 
 
Olhando para o caso de uma certa distância, é possível admitir que há prós e contras, em especial quando se encara o problema pelo ângulo humanitário. Vivemos num país que já exilou ditadores de alta periculosidade, como o paraguaio Stroessner. 
 
E é justamente desse ângulo que volto à questão de Julian Assange. 
 
Numa prova de espírito democrático e grandeza política, seria bem oportuno sugerir às mesmas forças que aplaudem a fuga do senador boliviano que reforcem a pressão para que o fundador do Wikileaks possa deixar a Inglaterra para residir em liberdade no país que concordou em lhe dar asilo.
 
Claro que a oposição faz isso num esforço óbvio para desgastar o governo. É do jogo.  
 
Mas vamos combinar que há nobreza em Assange, uma causa que tem ligação direta com a liberdade de expressão e o direito a informação, tão preciosos em tempos de autoritarismo velado e espionagem.
 
Comparando um caso com o outro, cabe reparar que os direitos de Assange têm inteiro respaldo pelas tradições internacionais. Sua chegada ao Equador está autorizada pelo governo daquele país, ao contrário do que aconteceu com Roger Molina, que entrou clandestinamente pela fronteira.


 


VERGONHA, VERGONHA

A  constrangedora vergonha alheia


Luciano Martins Costa, no Observatório da Imprensa



Uma fotografia na primeira página da Folha de S.Paulo, na edição de terça-feira (27/8), resume em boa medida o mal-estar em que as entidades médicas enfiaram os profissionais de saúde do Brasil.
A imagem mostra um médico cubano, negro, sendo ameaçado e vaiado por colegas brasileiros quando saía da primeira aula do programa de treinamento para sua missão em território nacional. Os manifestantes xingavam os médicos estrangeiros de “escravos”, e chegaram a agredir representantes do Ministério da Saúde, o que descreve de maneira bastante clara o nível de irracionalidade provocada pelas declarações de dirigentes dos conselhos de medicina e outras associações de classe contra o programa Mais Médicos.
O incidente aconteceu em Fortaleza, uma das cidades escolhidas para abrigar os cursos de preparação dos profissionais contratados para suprir a carência de médicos brasileiros no interior e na periferia das grandes cidades. Segundo os jornais, os manifestantes, organizados pelo Sindicato dos Médicos do Ceará, fecharam todas as saídas do edifício da Escola de Saúde Pública e tentaram invadir o local. Depois, formaram um corredor e passaram a hostilizar os estrangeiros que deixavam o prédio.
Os relatos são curtos, mas a imagem na primeira página da Folha demonstra que, nestes dias, quem representa os médicos brasileiros são esses grupos de xenófobos organizados pelas entidades oficiais da profissão, uma vez que os demais, se têm opinião diversa, estão se omitindo.
Os jornais também trazem entrevistas com médicos cubanos e de outras nacionalidades que aderiram ao programa. A comparação entre os dois comportamentos é quase ofensiva para a classe médica brasileira: enquanto os nacionais se esmeram em atitudes agressivas e declarações preconceituosas, os estrangeiros demonstram o espírito cívico e de solidariedade que se espera daqueles que escolheram como profissão aliviar o sofrimento humano.
A leitura cuidadosa dos textos que a imprensa vem publicando a respeito do assunto indica que a vergonha que os médicos brasileiros impõem a si próprios, por ativismo ou por omissão, constrange até mesmo os jornalistas. Por mais que se esforcem para dar alguma racionalidade à posição do Conselho Federal de Medicina, da Associação Médica Brasileira e dos sindicatos da categoria, os jornais não conseguem esconder esse embaraço.
A “baixaria” de jaleco
Pode-se ler no Estado de S.Paulo, por exemplo, que o presidente do Sindicato Médico do Rio Grande do Sul, um dos mais ativos contestadores do programa do governo, tem dois filhos formados na faculdade de Medicina de Camaguey, em Cuba. Na volta, os moços frequentaram disciplinas complementares na Universidade do Sul de Santa Catarina e revalidaram seus diplomas na Universidade Federal do Ceará.
O dirigente sindical entende que não há incongruência em criticar o programa de importação de médicos formados no exterior, uma vez que seus filhos revalidaram seus diplomas cubanos. Mas até Eremildo, o Idiota, personagem criado pelo jornalista Elio Gaspari, estranharia a curiosa ginástica que os moços fizeram para conseguir a revalidação, transitando de sul a norte do Brasil para obter um documento que podia ser conquistado em seu próprio estado.
Os argumentos brandidos pelas entidades médicas contra o programa do governo têm esse mesmo tipo de percurso, mas terminam mesmo é em atitudes grosseiras como a da manifestação em Fortaleza, uma verdadeira “baixaria” de jaleco.
Com todos os riscos das generalizações, pode-se afirmar que o noticiário leva o cidadão comum a entender que os médicos brasileiros têm outras prioridades que passam longe da saúde pública. Para reverter essa interpretação, seria necessário que a imprensa procurasse equilibrar os exemplos e declarações, entrevistando profissionais de saúde que apoiam o programa Mais Médicos, ou que, pelo menos, não concordem com a atitude hostil insuflada pelas entidades representativas da categoria.
Mas o que se vê até aqui é apenas o confronto que tem como síntese a fotografia publicada na primeira página da Folha. No entanto, essa fotografia, ao congelar a realidade em apenas um quadro, mostra só um dos lados do que aconteceu no Ceará.
O jornal O Povo, de Fortaleza, postou em seu blog um vídeo no qual se pode observar que o protesto dos médicos brasileiros não foi a única manifestação: também havia ativistas que foram ao local para apoiar os cubanos (ver aqui).
Acontece que a imprensa, de modo geral, não está dando espaço para os cidadãos que apoiam o programa, e o noticiário apenas mostra as entidades médicas criticando e representantes do governo se defendendo.
Os médicos envergonhados também deveriam ser ouvidos.