23 outubro 2011

SOCIEDADE

A primavera do senso comum



Por Carlos Melo, no Observatório da Imprensa


A revista Veja dá destaque a uma frase de minha autoria na seção “Veja essa” da edição 2239 (data de capa 19/10/2011, pág. 69). Foi pinçada de matéria de O Globo e dizia respeito às manifestações contra a corrupção, ocorridas nos últimos dias. Para mim, “sem organicidade, esse movimento não vai crescer. As manifestações ganham força se tiverem algo orgânico, como partidos e sindicatos”. A revista não se conteve e fez o seguinte comentário: “(...) pode ter razão, mas se esquece de que raposas não cuidam de galinheiros”. Ora, ora, ora... Como poderia me esquecer disso? É um clichê tão presente quanto inútil, por isso dispensável.

Sem generalizar, o que se pode dizer é que essa sabedoria pedestre e essa profusão de senso comum obsediam parte da imprensa nacional. Sobre a revista, mais nada a dizer, a não ser que o interesse em contentar seu leitor médio a faz exagerar com simplificação um mundo naturalmente mais complexo do que supõem os departamentos de marketing, ansiosos por vender publicidade a uma parte da classe média normalmente desinformada e moralista. Mais produtivo será raciocinar a respeito dos fatos: as manifestações contra a corrupção no Brasil e o papel da mídia.

Indignação retórica

Inicio meu raciocínio a partir dessa classe média, leitora de Veja: trata-se de um setor que guarda, justificadamente, ressentimento e críticas aos governos, pois arca com grande parte dos custos de manutenção do Estado. Seus impostos retidos já na fonte somam ao final do ano quantias consideráveis, sobretudo diante do pequeno retorno direto que obtêm. A péssima qualidade dos serviços faz com que esse setor recorra à educação, segurança e saúde privadas, numa espécie de bitributação.

Integrantes desse grupo em geral não toleram, ao final das contas, ser o principal segmento econômico a arcar com o pacto social. Por isso, desprezam políticas públicas compensatórias, como o Bolsa Família, e são tomados por uma ira santa quando se trata de discutir a ineficiência do Estado; abominam a atividade política, corroem-se ao verificar que “políticos possam ganhar sem trabalhar” e, com arroubos retóricos, indignam-se diante da corrupção. Adoram expressões como “choque de gestão”. Esteticamente, não suportam nada que não seja pretensamente chique e refinado. Desamparados nesse reacionarismo solitário, são acolhidos por parte da mídia que lhes fornece o que mais desejam: o sensacionalismo e o gosto de sangue.

Pelo menos em certa medida é preciso admitir que parte desse sentimento é justificada. Estamos realmente muito distantes de um Estado eficiente e de uma sociedade justa, inclusive para a classe média. Todavia, é verdade também que esse segmento social insiste em negar uma questão básica: vivemos em sociedade – seu individualismo não conseguirá suprimir este fato. Margareth Thatcher, ao afirmar que “esse negócio de sociedade não existe”, estava errada. O custo dessa mentalidade se faz sentir agora, na crise econômica mundial, quando há escassez de lideranças políticas capazes de arbitrar os conflitos.

Além disso, se é verdade que a corrupção é digna de ser criticada, não menos verdadeiro é o fato de que não basta indignar-se com ela apenas quando se manifesta no quintal do vizinho. Ela não pode ser menos reprovada por se dar na sala de casa. Quando, por exemplo, os shoppings centers são obrigados a colocar vigias para resguardar vagas de estacionamento destinadas a deficientes e idosos, de modo a que classe média não as ocupe, já há aí um indício de corrupção; quando se sonega impostos, furam-se filas, se corrompe o guarda, se “acerta” com os fiscais, há também aí indícios de corrupção.

Se algo precisa ser mudado – e de fato precisa –, não o será pela lógica da racionalidade apenas administrativa e econômica, do moralismo ou do preconceito social. A mudança de mentalidade mais geral é imprescindível. A começar por compreender que a política ainda é um instrumento fundamental para transformações mais complexas, para processos de disputas e conflitos de interesses; e por admitir que a “política ruim” é resultado da política que, coletivamente, construímos ao longo dos anos.

A indignação apenas – sobretudo retórica – não basta. Ir às ruas de modo atabalhoado, sem foco nem estratégia, sem objetivos nem projetos, sem a perspectiva do dia seguinte, em nada ajuda. Soma zero. Resume-se ao ator shakespeariano “que faz o seu papel em cena para depois ser esquecido. É uma história contada por um idiota cheia de som e fúria, significando nada” – o breve apagar de uma chama.

Cinismo editorial

Nos últimos anos, essa classe média nada mais fez do que “contar essa história”, do que negar a política, maldizê-la e afastar-se do resto da sociedade como se nada tivesse a ver com o contexto social que a cerca. Seus filhos retiraram-se dos debates, desocuparam as ruas, buscaram os altos cargos nos bancos, nas indústrias, nas universidades – o que é legítimo –, mas relegaram a atividade política a algo menor. Os partidos esvaziados, é claro, foram aparelhados; os sindicatos igualmente subsumiram à burocratização e à cooptação dos governos.

Se os partidos atuais não servem, que mudem os partidos, que se lhes negue os votos; se os políticos não prestam, idem. Mas, quem ocupará a cena no longo prazo? Não há vácuo, a política sempre existirá. Quem dirigirá o processo? Qual será o novo instrumento? O iPhone, o Blackberry? Sejamos responsáveis.
Ir às ruas motivados pelos ventos das primaveras árabes, dos outonos europeus ou da agitação novaiorquina pode até soar sofisticado. Mas parece típico daquilo que Sérgio Buarque abominava como “citações em língua estranha que se destinam a deslumbrar o leitor como se fossem uma coleção de pedras brilhantes e preciosas”. É “a difícil arte de pensar o pensado”, de que falou Machado de Assis, na sua “Teoria do Medalhão”.

O país precisa de transformações, ainda que muito tenha se transformado nas últimas duas décadas. Mas não será sem reflexão, não será pelo efeito de enzimas que agem no cérebro mas que são, antes, processadas pelo fígado e estimuladas pelo cinismo editorial. Nossos partidos envelheceram e se acomodaram, nosso sistema político é disfuncional. Mas isso não significa que apenas som e fúria bastem para substituí-los e resolver a situação.

Lê, pensa, questiona

Recebi um desses e-mails anônimos, convidando à mobilização da próxima manifestação: eram 31 pontos de pauta, longos e os mal alinhavados. Começavam basicamente por verbos como “acabar”, “proibir”, “criminalizar”. Verbos no infinitivo inconcreto. Muito som e fúria, mas, e daí? Quem vai “acabar”, “proibir”, “criminalizar”? Quem guardará o guarda?

Quem vai refletir e discutir seriamente o que se passa? Estamos numa encruzilhada entre o desenvolvimento e o eterno retorno ao gigante adormecido. Precisamos de instrumentos novos ou pelo menos renovados, precisamos de gente nova e disposta. Mas há uma crise econômica e um esvaziamento estrutural da política. E, antes de tudo, é necessário admitir que também a mídia vive sua crise e seus vazios. Que fazer?
Partidos políticos e sindicatos – se quisermos dar este nome – ou entidades daquilo a que um dia chamamos “sociedade civil organizada” precisam de novo vigor: carecem de envolvimento, lideranças e espaços para debates, Para tudo isso se requer compreender a natureza da crise, suas causas e consequências; reconhecer o vazio de nomes e instrumentos para superá-lo.

Como é óbvio, não tenho respostas e menos ainda soluções. Contribuo acreditando que não há solução simples. Sei, no entanto, que não serão apenas os 140 caracteres do Twitter que trarão luz à escuridão. Há outros instrumentos: a imprensa tem, é claro, papel fundamental – se se dispuser a ser algo mais do que porta-voz da primavera do senso comum de um segmento de mercado, revoltado e sedento por vingança.

Como já fez no passado, pode contribuir para despertar o debate sobre o diagnóstico, estimular a reflexão a respeito de alternativas.

Se já teve papel de vanguarda, à frente de seu tempo, a imprensa não pode agora ficar a reboque dos fatos. O cinismo comodista é nefasto e o farisaísmo é torpe. Ao invés do óbvio e do senso comum, será preciso calma e honestidade para dizer: “Cansou? Senta, respira, descansa. Lê, pensa, reflete, questiona. Nada pode significar nada. Isso! Agora, responda: qual é o seu ponto?”

A classe média, as manifestações e Veja precisam dizer qual é o seu ponto.

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[Carlos Melo é cientista político]

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