30 outubro 2011

INTERNACIONAL

 

Europa: de remendo em remendo, o brejo se aproxima

O novo nó da questão discutida na zona do euro está em determinar o quanto da dívida grega será cortada, ou seja, não paga. Em julho houvera um acordo prévio, de bastidor, em torno de 20%. Agora, Merkel fala em 50%, mas acredita-se que possa chegar até 60%. Os bancos, na maioria, teimam em dizer que não aceitariam mais do que 40%. O artigo é de Flávio Aguiar, direito de Berlim

Berlim - Quarta-feira (26) foi um dia de tensão Europa afora. Mais um, para ser preciso. As glândulas supra-renais, que secretam adrenalina, devem estar esgotadas de tanto trabalho.

O primeiro foco do dia estava em Berlim. Por determinação da Suprema-Corte alemã, o Bundestag (Parlamento Nacional) deve obrigatoriamente ser ouvido no caso de crises internacionais. Antes, ele apenas referendava ou não as propostas aprovadas na sede da União Européia, em Bruxelas. Agora ele deve ser ouvido antes do Executivo alemão levar alguma proposta para os fóruns internacionais.

A discussão, iniciada na terça-feira, focava o Fundo Europeu de Estabilidade Fincanceira, a possibilidade da recapitalização dos bancos, o que fazer com a dívida grega. Basicamente, a proposta alemã era levar a Bruxelas a idéia de que o Fundo deveria ser ampliado, passando de 1 trilhão de euros pelo menos, e que pudesse ser usado como uma espécie de “fundo de seguro” para investidores que desejassem comprar letras do tesouro de países em dificuldades, como a Grécia, Portugal, Irlanda e talvez no futuro, Itália e Espanha. A França de Sarkozy queria ir mais fundo: queria que o fundo pudesse agir como um banco, emprestando dinheiro diretamente a países e bancos em dificuldade, e também tomando empréstimos, por exemplo, do Banco Central Europeu. Ângela Merkel, sempre na retranca, não aceita a idéia: defende que o fundo, por exemplo, garanta um percentual – fala-se em 20 % ou mais – dos investimentos em questão, e que ele possa ser usado, de modo limitado, para fazer empréstimos a juros menores do que os de mercado a países em dificuldade tão somente.

No domingo, durante uma primeira rodada em Bruxelas, Merkel, aparentemente, levara a melhor sobre Sarkozy. Com apoio (conservador) da Holanda e da Finlândia (que querem poupar seus contribuintes de terem de “pagar” pelos “indisciplinados” países do sul, ela conseguira descartar, pelo menos de momento, o plano de Sarkozy. Infeliz, apesar de ter ganho um ursinho de Merkel como presente para sua filha recém nascida, Sarkozy descarregou sua frustração em cima do primeiro ministro britânico David Cameron, dizendo, diante das cobranças deste, que ele perdera uma oportunidade de ficar calado, e que deveria silenciar sobre o euro, já que não gostava dele. Isso num tom exaltado, como é o seu estilo.

Na segunda-feira, Cameron continuou com parte do mico da vez, ao enfrentar uma rebelião de seus pares conservadores no Parlamento britânico, que votaram (embora em minoria) a favor de uma proposta de realizar novo plebiscito sobre a permanência do país na União Européia. Dividindo o mico, Berlusconi, que ouvira muitas e boas de Sarkozy e Merkel em Bruxelas, inclusive risinhos de mofa enquanto falava, se enrolava em conversações com o presidente italiano Giorgio Napolitano e com o líder da aliada e reacionaríssima Liga Norte, Umberto Bossi, sobre a continuidade de seu desmoralizado governo. Bossi resistia em aceitar, como queriam Merkel e Sarkozy, o aumento da aposentadoria italiana para 67 anos, como é na Alemanha. Parece que ambos acabaram acertando um acordo: Bossi aceitou os 67 anos, mas somente a partir de 2026, e Berlusconi teria se comprometido a não disputar mais a reeleição em março de 2012. A ver.

O risco para Merkel era enfrentar rebeliões semelhantes em seu terreno, o que enfraqueceria seu papel na reunião de cúpula da Zona do Euro e da UE, que começou em Bruxelas na noite mesma de quarta.

O novo nó da questão está em determinar o quanto da dívida grega será cortada, ou seja, não paga. Em julho houvera um acordo prévio, de bastidor, em torno de 20%. Depois, com a divulgação de que nos bastidores todos – do FMI aos governos envolvidos – acreditavam que a Grécia não poderia mesmo pagar os 357 bi de euros que deve (160% do seu PIB anual), aquele número cresceu para pelo menos 40%. Agora, Merkel falou em 50%, mas acredita-se que possa chegar até 60%. Os bancos, na maioria, no entanto, teimam em dizer que não aceitariam mais do que 40%. Também a ver.

Afinal, Merkel conseguiu uma ampla vitória na votação desta quarta. Apenas 89 deputados dos mais de 600 do Parlamento votaram contra, com algumas poucas abstenções e ausências. Assinale-se que, como já anunciara, a Linke votou contra, argumentando que o novo plano não muda os pressupostos dos anteriores, com que não concorda.

E agora à noite (aqui em Berlim), enquanto redijo estas notas, se avolumam as chegadas a Bruxelas, para o grande match em torno do euro.

Fica a impressão, no entanto, de estarmos diante de remendos e mais remendos, porque os fundamentos da questão não só não são atacados, como sequer, em geral, são visualizados pela maioria dos envolvidos. O “Consenso de Bruxelas” reeditou o moribundo “Consenso de Washington”, nada mais. Fez dos “planos de austeridade” e da redução de direitos e investimentos sociais a panacéia universal. Não faltam comentaristas de todos os matizes (não estou falando de esquerdistas, mas de gente como Krugman e Steglitz) que dizem que a União Européia está fazendo exatamente o contrário do que deveria fazer, que seria aumentar os investimentos sociais, garantir a elevação do poder aquisitivo, animar ao invés de sufocar a economia dos países em crise mais aguda.

A prova disso é o que aconteceu com a Grécia: um ano e meio depois dela ter declarado estado falimentar, os “planos de austeridade” só fizeram piorar a sua situação, quebrando o país completamente, segundo reconhecem FMI, U. E. e Banco Central Europeu, mas que vão continuar a insistir nos mesmos fundamentos, ou, melhor dizendo, “afundamento”. Diga-se de passagem, nessas questões, hoje o FMI está “à esquerda”, se é possível dizer isso, de Bruxelas, Frankfurt, Berlim, etc., porque alerta continuamente para a necessidade de reverter o processo recessivo em que a Europa está entrando.

Enquanto isso, o brejo se aproxima rapidamente: já dá para sentir o cheiro do pântano. Haja adrenalina!




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A depravação da América


Foi-se o tempo em que a ética protestante definia o caráter dos Estados Unidos. Ela foi usada como fator responsável pelo sucesso do capitalismo na Europa do Norte e na América, pelos sociólogos, mas a ética protestante e o capitalismo são incompatíveis, e o capitalismo, em última análise, faz com que a ética protestante seja abandonada.

Há um novo ethos que emergiu, e as elites governamentais não o entendem. Trata-se do etos da “grande oportunidade”, do “prêmio”, da “próxima grande ideia”. A marcha lenta e deliberada em direção ao sucesso é hoje uma condenação do destino. Junto à próxima grande ideia comercial está o novo modelo do "sonho americano". Tudo o que importa é o dinheiro. Dada essa atitude, poucos na América expressam preocupações morais. A riqueza é só o que se tem em vista; vale inclusive nos destruir para alcançá-la. E se não chegamos lá ainda, certamente em breve chegaremos.

Eu suspeito que a maior parte das pessoas gostaria de acreditar que sociedades, não importa as bases de suas origens, tornam-se melhores com o tempo. Infelizmente a história desmente essa noção; frequentemente as sociedades se tornam piores com o tempo. Os Estados Unidos da América não é exceção. O país não foi benigno em sua origem e agora declina, tornando-se uma região de depravação raramente superada pelas piores nações da história.

Embora seja impossível encontrar números que provem que a moralidade na América declinou, evidências cotidianas estão onde quer que se veja. Quase todo mundo pode citar situações nas quais o bem estar das pessoas foi sacrificado pelo bem das instituições públicas ou privadas, mas parece impossível citar um só exemplo de instituição pública ou privada que tenha sido sacrificada em nome do povo.

Se a moralidade tem a ver com o modo como as pessoas são tratadas, pode-se perguntar legitimamente onde a moralidade desempenha um papel no que está se passando nos EUA? A resposta parece ser: “Em lugar nenhum!” Então, o que tem aconteceu nos EUA para se ter a atual epidemia de afirmações de que a moralidade na América colapsou?

Bem, a cultura mudou drasticamente nos últimos cinquenta anos. Foi isso o que aconteceu. Houve um tempo em que a "América", o "caráter americano", era definido em termos do que se chamava de Ética Protestante. O sociólogo Max Weber atribuiu o sucesso do capitalismo a isso. Infelizmente, Max foi negligente; ele estava errado, completamente errado. O capitalismo e a ética protestante são inconsistentes entre si. Nenhum dos dois pode ser responsável pelo outro.

A ética protestante (ou puritana) está baseada na noção de que o trabalho duro e a ascese são duas consequências importantes para ser eleito pela graça da cristandade. Se uma pessoa trabalha duro e é frugal, ele ou ela é considerado como digno de ser salvo. Esses atributos benéficos, acreditava-se, fizeram dos estadunidenses o povo mais trabalhador do que os de quaisquer outras sociedades (mesmo que as sociedades protestantes europeias fossem consideradas parecidas e as católicas do sul da Europa fossem consideradas preguiçosas).

Alguns de nós afirmam agora que estamos testemunhando o declínio e a queda da ética protestante nas sociedades ocidentais. Como a ética protestante tem uma raiz religiosa, o declínio é frequentemente atribuído a um crescimento do secularismo. Mas isto seria mais facilmente verificável na Europa do que na América, onde o fundamentalismo protestante ainda tem muitos seguidores. Então deve haver alguma outra explicação para o declínio. Mesmo que o crescimento do secularismo tenha levado muita gente a dizer que ele destruiu os valores religiosos juntamente aos valores morais que a religião ensina, há uma outra explicação.

No século XVII, a economia colonial da América era agrária. Trabalho duro e ascese combinam perfeitamente com essa economia. Mas a América não é mais agrária. A economia dos EUA hoje é definida como capitalismo industrial. Economias agrárias raramente produzem mais do que é consumido, mas economias industriais o fazem diariamente. Assim, para se manter a economia industrial funcionando, o consumo deve não apenas ser contínuo, como continuamente crescente.

Eu duvido que haja um leitor que não tenha escutado que 70% da economia dos EUA resulta do consumo. Mas 70% de um é 0,7, ou de dois é 1,4, de três, 2,1, etc. À medida que economia cresce de um a dois pontos do PIB, o consumo deve crescer de 0,7 para 1,4 pontos. Mas o aumento crescente do consumo não é compatível com a ascese. Uma economia industrial requer gente para gastar e gastar, enquanto a ascese requer gente para economizar e economizar. A economia americana destruiu a ética protestante e as perspectivas religiosas nas quais foi fundada. O consumo conspícuo substituiu o trabalho duro e a poupança.

No seu A Riqueza das Nações, Adam Smith afirma que o capitalismo beneficia a todos, desde que cada um aja em benefício dos outros. Agora estão nos dizendo que “economizar mais e cortar gastos pode ser um bom plano para lidar com a recessão. Mas se todo mundo proceder assim isso só vai tornar as coisas piores....aquilo de que a economia mais precisa é de consumidores gastando livremente”. A grande recessão atingiu Adam Smith na sua cabeça, mas o economista admitiria isso. “Um ambiente em que todos e cada um quer economizar não pode levar ao crescimento. A produção necessita ser vendida e para isso você precisa de consumidores”.

Poupar é (presumivelmente) bom para indivíduos, mas ruim para a economia, a qual requer gasto contínuo crescente. Se um economista tivesse dito isso na minha frente, eu teria lhe dito que isso significa claramente que há algo fundamentalmente errado com a natureza da economia, que isso significa que a economia não existe para prover as necessidades das pessoas, mas que as pessoas existem apenas para satisfazer as necessidades da economia. Embora não pareça isso, uma economia assim escraviza o povo a quem diz servir. Então, de fato, o capitalismo industrial perpetrou a escravidão; ele tem reescravizado aqueles que um dia emancipou.

Quando o consumo substituiu a poupança na psique americana, o resto de moralidade afundou junto na depravação. A necessidade de vender requer marketing, o que nada mais é que a mentira das mentiras. Afinal de contas, toda empresa é fundada no que disse o livro de Edward L. Bernays, de 1928: Propaganda. A cultura americana tem sido inundada por um tsunami de mentiras. O marketing se tornou a atividade predominante da cultura. Ninguém pode se isolar disso. É uma coisa seguida por pessoas de negócios, políticos e pela mídia. Ninguém pode ter certeza de estarem lhe contando a verdade a respeito de alguém. Nenhum código moral pode sobreviver numa cultura de desonestidade, e de resto, ninguém pode!

Tendo subvertido a ética protestante, a economia destruiu toda ética que a América um dia promoveu. O país tornou-se uma sociedade sem um etos, uma sociedade sem propósito humano. Os americanos se tornaram cordeiros sacrificáveis para o bem das máquinas. Então, um novo etos emergiu do caos, um etos que a elite governamental desconhece completamente.

Diz-se frequentemente que Washington perdeu o contato com as pessoas que governa, que não entende mais seu próprio povo ou como sua cultura comum funciona. Washington e a elite do país não entendem isso, mas a cultura não valoriza mais o certo sobre o errado ou o trabalho duro e a ascese sobre a preguiça e a extravagância. Hoje os americanos estão buscando a “grande oportunidade”, o “prêmio”, a “próxima grande ideia”. O Sonho Americano foi hoje reduzido ao “acertar em cheio!”. A longa e deliberada estrada para o sucesso é uma condenação. Vejam American Idol, The X-Factor e America’s Got Talent e testemunhe a horda que se apresenta para os auditórios. Essas pessoas, em sua maior parte, não trabalharam duro em nada na vida. Contem o número de pessoas que regularmente apostam na loteria. Esse tipo de aposta não requer trabalho algum. Tudo o que essas pessoas querem é acertar em cheio. E quem é nosso homem de negócios mais exaltado? O empreendedor!

Empreendedores são, na sua maior parte, fogo de palha, mesmo que haja exceções notáveis. O problema com o empreendedorismo, no entanto, é a alta conta em que passou a ser tomado. Mas o único valor ligado a ele é a quantidade de dinheiro que os empreendedores têm feito. Raramente ouvimos alguma coisa a respeito do modo nefasto como esse dinheiro foi feito. Bill Gates e Mark Zuckerberg, por exemplo, dificilmente representam imagens de pessoas com moralidade exemplar, mas na economia sem escrúpulos morais, ninguém se importa; tudo o que importa é o dinheiro.

Dada essa atitude, por que alguém, nessa sociedade, expressaria preocupações morais? Poucos na América o fazem. Assim, enquanto a elite americana fala na necessidade de produzir força de trabalho sustentável para as necessidades de sua indústria, as pessoas não querem nada disso.

A elite frequentemente lastima a falência do sistema educacional americano e tem tentado melhorá-lo sem sucesso, por várias décadas. Mas se alguém presta atenção no atual estado de coisas na América, vê que a maior parte dos empreendedores de sucesso são pessoas que abandonaram faculdades. Como se pode convencer a juventude de que a educação universitária é um empreendimento que vale a pena? Assim como Bill Gates, Steve Jobs e Mark Zuckerberg mostraram, aprender a desenhar um software não requer graduação universitária. Nem ganhar na loteria ou vencer o American Idol. Fazer parte da Liga Nacional de Futebol pode requerer algum tempo na universidade, mas não a graduação. Todo o empreendedorismo requer uma nova ideia mercantil.

Entretenimento e esportes, loterias e programas de jogos e disputas, produtos de consumo de que as pessoas não tiveram necessidade por milhões de anos são agora as coisas que formam a cultura americana. Mas não são coisas, são lixo; não podem formar a base de uma sociedade humana estável e próspera. Esta é uma cultura governada meramente por um atributo: a riqueza, bem ou mal havida!

A capacidade humana de autoengano é sem limites. Os estadunidenses vêm se enganando com a crença de que a riqueza agregada, a soma total de riquezas, em vez de como ela é distribuída, dá certo. Não importa como foi obtida ou o que foi feito para se obter tal riqueza. A riqueza agregada é a única coisa que se tem em vista; é algo pelo que vale à pena destruir a nós mesmos. E mesmo que não o tenhamos alcançado ainda, em breve certamente o conseguiremos.

A história descreve muitas nações que se tornaram depravadas. Nenhuma delas jamais se reformou. Nenhum garoto bonito pode ser convocado para desfazer a catástrofe do Toque de Midas. O dinheiro, afinal de contas, não é uma coisa de que os humanos precisem para sobreviver, e se o dinheiro não é usado para produzir e distribuir as coisas necessárias, a sobrevivência humana é impossível, não importa o quanto de riqueza seja agregada ou acumulada.

(*) John Kozy é professor aposentado de filosofia e lógica que escreve sobre assuntos econômicos, sociais e políticos. Depois de ter servido na Guerra da Coréia, passou 20 anos como professor universitário e outros 20 trabalhando como escritor. Publicou um livro de lógica formal, artigo acadêmicos. Sua página pessoal é http://www.jkozy.com/ onde pode ser contatado.

Tradução: Katarina Peixoto
 
 

Um comentário:

  1. Excelente análise da situação americana atual,
    aliás, extensiva aos países capitalistas de modo
    geral. Convém acrescentar, sob ponto de vista
    brasileiro, uma causa, ao meu ver, importante
    no aumento da criminalidade: o consumismo exar-
    cerbado influencia os jovens a praticar crimes,
    até de morte, para obter "coisas" da moda.

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