14 outubro 2011

INTERNACIONAL

Em El Salvador, a cada duas horas alguém é assassinado. Doze assassinados por dia. Quase 4.400 por ano, a maioria com menos de 17 anos de idade. A taxa de homicídios é assustadora: 69 a cada cem mil habitantes. A média mundial é de 8,8. A da Europa, 3,3.

Na guerra civil que durou de 1980 a 1992, morreram em El Salvador 75 mil pessoas. Eu cobri os três primeiros anos daquela guerra, vi aquele horror. Muito daquilo ficou impregnado, intacto, na minha memória. Passaram-se 19 anos do fim da guerra. E, de lá para cá, 74 mil pessoas foram assassinadas em El Salvador. Ou seja: há 31 anos o país não teve um só instante sem a permanente maré de mortes violentas. O horror é parte do cotidiano, e dia a dia vai matando o amanhã.

Comparada, à vizinha Honduras, a taxa de homicídios de El Salvador perde: lá, chegou-se a 72 a cada cem mil habitantes. A espiral de violência não tem fim e nenhum hondurenho tem esperança num futuro que parece que não vai chegar.

Na Guatemala, que também viveu uma guerra civil de décadas e um verdadeiro genocídio de indígenas, são registrados, atualmente, 17 assassinatos por dia.

A média centro-americana é mais de dez vezes superior à européia: 34 a cada cem mil habitantes. Talvez por causa dessa média o governo da Nicarágua trombeteie, com duvidoso orgulho, que ali está a mais segura nação da América Central: sua taxa é de 13 assassinatos a cada cem mil habitantes. O governo mente (o da Costa Rica é menor), e esquece um índice cruel. Em 2010 o total dos delitos graves na Nicarágua (roubos com violência e intimidação, seqüestros, violações, agressões pesadas) chegou a 68.447. Dez anos antes, era de 26.645. As ações violentas aumentaram duas vezes e meia nesse período. País seguro? Até nisso não dá para acreditar em Daniel Ortega.

Há, é verdade, uma espécie de oásis: a Costa Rica, o país mais rico e tranqüilo da América Central. Ser o menos problemático da região, porém, não quer dizer que esteja imune a problemas e perigos sérios e graves. São, hoje, onze homicídios a cada cem mil habitantes. Há dez anos a taxa era comparável à da Europa: 3,6. O país que não tem exército vive uma tensão e um medo que desconhecia até pouco tempo atrás, quando violência era assunto dos vizinhos e ali vivia-se em paz ou quase.

De mãos dadas com a violência, outra praga se espalha pela Costa Rica: a dos dólares sujos, que expandem a corrupção e abrem espaço para enfrentamentos e disputas entre os empresários da droga. O grande embaraço da Costa Rica é começar a se parecer cada vez mais aos vizinhos.

Tome-se, por exemplo, o Panamá. A taxa de homicídios é de 33 a cada cem mil habitantes, três vezes a da Costa Rica. A corrupção é endêmica, lava-se dinheiro alucinadamente, e os reflexos dessa atividade crescente e febril se fazem sentir cada vez mais no vizinho outrora sossegado.

Ao norte e ao sul da América Central existe um foco gerador de violência e corrupção, a Colômbia e o México. Se a taxa mexicana de homicídios é bem menor que a de seus vizinhos centro-americanos (21 homicídios a cada cem mil habitantes, inferior à do Brasil, que é de 25), em algumas cidades, principalmente no norte, ela chega a níveis avassaladores. Em Ciudad Juárez, por exemplo, acontecem 170 homicídios a cada cem mil habitantes.

A Colômbia até que sossegou um pouco, quando se compara o cenário de hoje ao de quinze ou vinte anos. Mas continua gerando violência, exportando cargas pesadas de drogas, mobilizando centenas de milhões de dólares sujos.

Diante disso tudo, a esta altura, o que se tenta, urgentemente, é calcular até que ponto as forças de segurança dos países centro-americanos (polícia e forças armadas débeis, corruptas, violentas) agüentarão o tranco. Porque os cartéis mexicanos, especialmente o Los Zetas, dispõem de melhores armas e recursos que a polícia e o exército de vários desses países, se mobilizam com mais eficácia, são melhor organizados, treinados e disciplinados.

A América Central vive uma situação limite. A economia, que nunca foi lá essas coisas, míngua rapidamente. O Estado, que sempre foi frágil, está sendo corroído. O item segurança consome, em média, 2,66% do PIB da região. Em alguns países, como El Salvador, muito mais: 11%. Só no ano passado a América Central investiu pelo menos quatro bilhões de dólares na luta contra o crime. Em vão, como se pode ver.

Além disso, outros 8% do PIB regional se esvaem nas conseqüências da situação. Só em saúde gasta-se, em média, metade dessa sangria.

Há pouco tempo houve uma reunião na Guatemala, solenemente batizada de Conferência Internacional de Apoio à Estratégia de Segurança da América Central. Maior no nome que nos resultados, no encontro foi desenhada uma estratégia conjunta de segurança para a região. Sessenta países do mundo vão colaborar, e assumiram compromissos no valor de dois bilhões de dólares. É um pouco menos do que El Salvador gastou, sozinho, no ano passado.

Enquanto isso, a morte corre solta. Dois por cento dos homens centro-americanos maiores de 20 anos não chegarão aos 31. A morte mata a juventude, mata a vida, mata o futuro.

Quem vai matar a morte? Como ceifar sua foice macabra?





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Eleições na Espanha: um voto entre protestos,
cortes e falta de propostas




Oscar Guisoni



No próximo dia 20 de novembro, a Espanha elegerá seu novo governo em meio à pior crise econômica desde o retorno da democracia em 1977. A campanha está ocorrendo sob um clima pesado, com massivos protestos de sindicatos, com os “indignados” nas ruas, sem alternativas políticas viáveis além dos dois grandes partidos – os socialdemocratas no poder representados pelo PSOE e a oposição conservadora do Partido Popular – e com uma cidadania desorientada em relação ao caminho que é necessário seguir para sair do atoleiro. A aparição da plataforma ecologista Equo, um ligeiro renascimento da Esquerda Unida, o seguro retorno ao Parlamento nacional dos nacionalistas de esquerda bascos e o crescimento de União, Progresso e Democracia, o partido liderado pela ex-socialista Rosa Diez são as principais novidades.

No baile das pesquisas exibidas pelos meios de comunicação espanhóis durante os últimos dias, porém, o único dado que fornece uma clara amostra de qual é o clima político reinante no país é o que anuncia a maior abstenção de eleitores da história recente. A serem confirmadas essas previsões, a participação nas próximas eleições superará a duras penas a casa de 50%, um número que dá ideia da magnitude do desencanto dos espanhóis com a classe política e a forte crítica que existe na sociedade em relação a uma legislação eleitoral restritiva que premia as maiorias em detrimento das expressões políticas minoritárias.

O desencanto com os grandes partidos também é visível. Enquanto o PSOE é criticado por sua adesão sem mediações ao ideário neoliberal para sair da atual crise, o Partido Popular provoca temor por suas previsíveis medidas de ajuste, que podem se traduzir em maior desemprego e aprofundamento da crise econômica.

Enquanto a direita se encaminha para um triunfo histórico – segundo as pesquisas, o PP que tem como candidato Mariano Rajoy, está à beira da maioria absoluta – o Partido Socialista desce ladeira abaixo. Alfredo Pérez Rubalcada, o ex-ministro do Interior escolhido a dedo por Rodríguez Zapatero como candidato, não conseguiu até agora convencer os eleitores de seu suposto giro à esquerda, uma posição que tentou reforçar pedindo ao governo que leve adiante algumas medidas como a restauração do imposto sobre as grandes fortunas ou prometendo que não aplicará ajustes selvagens no orçamento. Segundo as pesquisas, o PSOE tem hoje entre 30 e 33% dos votos, o que significaria o pior resultado de sua história recente.

Os outros protagonistas da campanha serão sem dúvida os movimentos sociais. O 15-M não deixou de se manifestar nos últimos meses e é de se presumir que os protestos se intensificarão a medida que se aproxime a data da eleição. Ainda que os indignados tenham evitado dar indicações de voto, a maioria dos integrantes do movimento pensa que o melhor é se abster ou votar em partidos pequenos para demonstrar a injustiça da atual lei eleitoral. Enquanto os socialistas são os principais prejudicados por esse movimento, a Esquerda Unida aparece como o principal beneficiado, chegando a somar entre 7 e 9% das intenções de voto, algo que pode se traduzir em um crescimento notável de seu bloco parlamentar. A coalizão liderada por Cayo lara tem hoje apenas duas cadeiras no Congresso e, em novembro, pode obter de 6 a 12, segundo as diferentes pesquisas. Outra formação que está colhendo votos no celeiro da indignação é UPyD, a coalizão progressista liderada pela ex-socialista Rosa Diez, que poderia obter até quatro parlamentares.

Os nacionalistas de esquerda bascos merecem um capítulo a parte. Eles querem regressar ao congresso nacional pela coalizão Bildu, que obteve sua legalização após condenar a luta armada empreendida durante meio século pelo ETA. Após excelentes resultados nas últimas eleições municipais, Bildu estaria a ponto de obter entre 5 e 6 cadeiras no novo congresso, enquanto que o conservador Partido Nacionalista Basco perderia uma das suas. Historicamente vinculados ao ETA, os membros de Bildu trabalharam nos últimos meses para colocar fim ao conflito armado no País Basco e resolver a questão da independência de maneira pacífica. Segundo diversos analistas, o ETA estaria a ponto de declarar sua auto-dissolução, uma medida que gera fortes expectativas na região.

A outra novidade parlamentar será o ingresso, a se confirmarem as pesquisas, da coalizão eco-pacifista EQUO, liderda pelo ex-presidente do Greenpeace, Juan López de Uralde, que poderia obter dois deputados. EQUO ser apresentou à sociedade realizando eleições internas abertas, uma medida insólita no habitualmente fechado sistema eleitoral espanhol. Os nacionalistas conservadores de Convergência i União, na Catalunha, também se dispõem a fazer uma grande eleição, passando dos atuais 10 deputados para algo entre 14 e 15.

Como as pesquisas são extremamente confiáveis na Espanha, tudo indica que o próximo congresso será dominado por uma maioria absoluta conservadora e uma oposição fragmentada, com um dado adicional explosivo: a baixa legitimidade que teria um governo eleito com um alto nível de abstenção.

Tradução: Katarina Peixoto





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Chile: mais de 87% votam por educação gratuita e de qualidade

Cerca de 87% dos votantes no referendo educacional votaram pelo “sim” nas quatro perguntas formuladas no sufrágio, que consultaram a população sobre se ela estava de acordo com um ensino público gratuito e de qualidade, sobre o fim do lucro na educação, o retorno da educação para as mãos do Estado e a incorporação do plebiscito vinculante como mecanismo para resolver problemas de caráter nacional. A reportagem é de Christian Palma.

Mesmo com o governo afirmando que o plebiscito cidadão pela educação não tinha validade, os chilenos participaram em massa da consulta. Na noite de quarta-feira, foi anunciado o resultado: 87% dos votantes no referendo educacional votaram pelo “sim” nas quatro perguntas formuladas no sufrágio, que consultavam a população sobre ela estava de acordo com um ensino público gratuito e de qualidade e se estavam a favor da desmunicipalização da educação secundária pública, ou seja, de seu retorno às mãos do governo federal. As outras perguntas eram sobre a eliminação do lucro na educação e sobre a necessidade de incorporar o plebiscito vinculante como mecanismo para resolver problemas de caráter nacional.

Após anunciar o resultado do plebiscito, o presidente do Colégio dos Professores, Jaime Gajardo, detalhou que 1.027.569,00 pessoas votaram nas mesas e outros 394.873 o fizeram pela internet, enquanto que 30 mil foram desconsiderados por serem votos repetidos. “Quanto às porcentagens, 87,15% votaram pelo Sim e 11,2% pelo Não”, precisou Gajardo, que destacou a participação na Região Metropolitana, onde votaram 530.811 pessoas; Puerto Montt, com 60.165 votantes; Valparaíso, 101.138; Concepción, 115.080 votos; Iquique, 15.384 e Magallanes, 6.298 pessoas.

O dirigente acrescentou que, agora, todas as atas serão reunidas, região por região, e serão organizadas no Colégio de Professores para quem quiser ver e consultar os resultados. “Foi feito um trabalho profissional de primeiro nível. Segundo os especialistas, se há algum erro ele é marginal, não mais do que 2%. O importante foi a quantidade de pessoas que participou e a tendência majoritária, contundente, inclinada e muito precisa, dizendo Sim a que haja no país uma educação gratuita; queremos que a educação não sirva para gerar lucros; queremos que haja um plebiscito vinculante para resolver esses grandes temas”, defendeu Gajardo.

Neste cenário, o Colégio de Professores e os estudantes confirmaram uma nova mobilização nacional para os próximos dias 18 e 19 de outubro, na qual se pretende marchar desde quatro pontos distintos de Santiago até a Praça Itália, lugar tradicional de manifestações na capital chilena. O governo chileno afirmou que não autorizará novas marchas, em uma clara tentativa de relacionar as manifestações com os fatos de violência protagonizados por jovens encapuzados que não estão relacionados diretamente com o movimento estudantil. Seja como for, os estudantes chilenos já disseram que não ficarão de braços cruzados.

Neste cenário, a porta-voz da Confederação de Estudantes do Chile (Confech), Camila Vallejo, assinalou que a jornada de 18 de outubro será preparatória para a grande marcha do dia 19. Começará às 11 horas da manhã quando uma delegação irá ao Palácio La Moneda para entregar os resultados oficiais do plebiscito. Neste mesmo dia, às 21 horas, haverá um novo panelaço e ocorrerão assembleias locais em todo o país para seguir lutando por uma melhor educação.

No dia 19, a marcha deve iniciar às 10 horas da manhã, a partir de quatro pontos distintos da Região Metropolitana. “Conversaremos outra vez com a Prefeitura e pediremos que não tentem esconder o movimento”, disse Camila Vallejo. A dirigente estudantil, avaliada como uma das três figuras políticas com mais futuro no país, respondeu ao ministro do Interior, Rodrigo Hinzpeter, que chamou os parlamentares para aprovar o projeto de lei denominado “anti-ocupações” – que pretende penalizar as ocupações de colégios e universidades – dizendo que “não aceitaremos que nosso país seja governado por saqueadores, nem que as ruas sejam tomadas por eles”. A resposta de Camila foi curta e grossa: “os saqueadores já estão governando o país”.

“O ministro (Hinzpeter) está equivocado porque os grandes saqueadores estão governando o país, são os mais ricos. Precisamos que os verdadeiros saqueadores paguem a educação para os mais pobres”. Ela acrescentou que “o movimento estudantil está em sua plena primavera”, reafirmando o chamado à manutenção da mobilização.

“Este movimento segue vivo e com força, segue sendo capaz de mobilizar-se e manter-se firme neste processo, porque nada foi solucionado. O governo não colocou nenhuma solução sobre a mesa, mas somente mais do mesmo, mais modelo mercantil na educação, com mais recursos, mas aprofundando o modelo que segmenta e segrega”, acrescentou Camila Vallejo.

Tradução: Katarina Peixoto





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Wall Street: a ocupação necessária



Saul Leblon


Reduzir o tamanho do sistema financeiro tem sido uma prescrição freqüente na boca de economistas não ortodoxos, quando o assunto é reverter a crise mundial e retomar o controle da economia nas mãos sociedade. Ou , como resumem os indignados norte-americanos indo diretamente ao ponto simbólico da questão: 'Ocupar Wall Street'.

Por sua pertinência e poder de síntese a bandeira que nasceu com um acampamento singelo em Nova Ioque há menos de um mês ganhou rapidamente o foco mundial . Pode se tornar uma espécie de resposta-síntese da sociedade aos dogmas, mantras e salmos dos mercados que jogaram o mundo na maior crise do capitalismo desde 29 e insistem em aprisionar a humanidade dentro dela. 'Ocupar Wall Street' tem fôlego histórico para ser uma espécie de 'pão, paz e trabalho' do século XXI.

É preciso ter em conta, porém, o tamanho da 'ocupação necessária'. A crueza no discernimento do jogo é crucial para um movimento cujo principal legado será arguir, afrontar e transformar plataformas e programas que se propõem a superar a crise atual. Para que a mobilização persiga de fato os fundamentos de sua bandeira, será necessário em algum momento decodificá-la do simbolismo contundente em objetivos concretos. Não necessariamente isso ocorrerá nas assembléias da praça da Liberdade. Mas Atenas, Madrid, Lisboa, Londres, Tel Aviv, Santiago e agora Wall Street já demonstraram que só as ruas tem o calibre e a densidade necessária para derrubar ou pautar governos, refundar ou enterrar partidos, fortalecer ou descartar lideranças. A esperança do mundo é de que seja assim também nas eleições presidenciais de 2012 nos EUA , com as ruas opondo contrapesos claros ao extremismo conservador e à hesitação democrata.

Se assim o fizer, 'Ocupe Wall Street' terá cumprido a missão de transformar a disputa sucessória de Obama no palco mundial de um embate pedagógico - que a mídia ofusca - entre os interesses devastadores dos chamados 'livres mercados' e as forças que buscam uma alternativa solidária, democrática, ambientalmente viável ao longo crepúsculo neoliberal.

A resistência a isso, como tem experimentado na carne os indignados de Atenas, não pode ser subestimada.

Hoje, 20 maiores bancos do mundo entrelaçam o mercado global
formando um poder financeiro superior ao de dezenas de países e governos juntos.

Dez maiores empresas gestoras de fundos de investimentos controlam US$ 17,4 trilhões – uma riqueza financeira 20% superior ao PIB dos EUA. Oito vezes o tamanho do Brasil.

A desproporção pode ser resumida num dado: o orçamento da FAO, o principal organismo da ONU para cuidar da segurança alimentar e da agricultura é de US$ 1 bi. Parece muito, mas equivale a destinar um dólar per capita/ano aos quase 1 bilhão de famintos existentes no mundo. É nada. Alguns países ameaçam reduzir ainda mais esse orçamento composto de contribuições internacionais. Na zona do euro a prioridade de muitos governantes, inclusive os social-democratas, tem sido cortar despesas fiscais para remunerar com juros mais altos os compradores de sua dívida. Uma tentativa pírrica de evitar que os fundos especulativos batam em retirada do mercado mas que apenas lubrifica a beira do abismo: arrocho fiscal ,como lembrou a Presidenta Dilma, gera mais recessão ,com quedas proporcionais de receitas públicas que impõem novos degraus de endividamento.

Sem reduzir o tamanho do setor financeiro na economia - e, portanto, seu poder discricionário sobre a política fiscal, o Estados e os partidos - fica muito difícil romper essa lógica autopropelida de submissão e sangramento. Um exemplo resume todos os demais. O fundo Pimco comanda sozinho um volume de recursos próximo ao do PIB brasileiro (US$ 1,3 tri). A diferença é que estamos falando de um canhão de liquidez giratório, desvinculado de qualquer outro compromisso exceto a rentabilidade máxima. Com a mira nesse alvo móvel, o Pimco deixou de financiar a Espanha em 2010.
Abruptamente.

Ao fazê-lo ergueu a bandeira da suspeição sobre a solvência do país anabolizando a fuga da manada que costuma se pautar pelo trote dos grades mamíferos do mercado. Este ano, o Pimco, que tem como 'CEO' (chief executive officer) um desses heróis do capitalismo, Mohamed A. El-Erian, uma espécie de Steve Jobs da especulação com irrepreensível folha corrida de metas de rentabilidade alcançadas, deixou de financiar bancos do euro no mercado de curto prazo. A decisão unilateral e novamente abrupta, como manda a estratégia do 'esfole a presa e fuja primeiro', agravou a instabilidade do combalido sistema bancário do euro.

Movimentos desses gigantescos répteis especulativos funcionam como um grito de 'fogo' aos aplicadores, gerando quedas drástica do valor dos bancos em bolsa e o pagamento de juros crescentes pelos governos.
O epicentro da crise mundial transita assim para a explosiva fronteira bancária, onde abutres do tipo Pimco raspam os ossos antes do vôo mortal de despedida. Ensaios registrados nas últimas semanas - a quebra do banco franco-belga Dexia, por exemplo - sugerem que as exéquias de um explosivo 'Lehman Brothers do euro' podem estar próximas.

A lenta capacidade de iniciativa das lideranças políticas do euro -colonizadas pelo poder financeiro que deveriam disciplinar - e a resistência a resgates em massa sinalizam dias piores para a banca européia. Acenos do tipo 'agora vai' esboçados por Sarkozy e Merkel ao final de suas incontáveis cúpulas 'decisivas' tem cada vez menor efeito anestésico nos mercados.

É contra esse poder desproporcional e desordenado, em retirada destrutiva para lugar nenhum, que o 'Ocupe Wall Street' se insurge e pode cumprir um papel esclarecedor na mobilização e forças e projetos em sentido contrário.

Um desafio crucial será escapar do ardil moralista que condena protagonistas mas absolve o enredo.

Bancos e juros não são uma invenção do diabo, mas a essência do capitalismo. Seu papel no sistema é estratégico na mobilização e gestão dos capitais dispersos que, na forma de capital a juro, propiciam um salto de escala e qualidade ao gerar crédito e recursos para a demanda e o investimento ampliado em meios de produção. O crédito nesse processo funciona como uma antecipação do futuro para a demanda, contornando a crise de superprodução de mercadorias - mas não a de capitais, como se vê - implícita num sistema baseado na mais-valia.

Portanto, estamos diante de um poder estruturado, enraizado e obstinado em sua lógica de extrema funcionalidade e contundência, unicamente controlável através da estatização pura e simples ou da submissão impositiva a regras de repressão estatal de extremo rigor e abrangência. Em resumo, o oposto da desregulação disseminada no ciclo neoliberal que degenerou as atribuições operacionais das finanças, calcificando a supremacia de um poder paralelo e supranacional.

A autonomia conquistada pelo capital a juros, com o desmonte regulatório do sistema de coerção das finanças nascido na equação da crise de 29, consolidou a expansão ilimitada da liquidez, a metástase dos fundos especulativos, a hipertrofia do crédito e do endividamento (de consumidores também, mas sobretudo de Estados que renunciaram à taxação da riqueza para torná-la acionista da dívida pública a juros), os derivativos, os hedges , o carry trade, as bolsas e uma miríade de operações e circuitos do dinheiro arisco.

A entropia dessa lógica vem destruindo volumes descomunais de capitais fictícios desde 2007 e mobilizando sacrifícios sociais gigantescos para salvá-los com injeções de recursos subtraído das urgências da sociedade. As bolsas mundiais perderam a bagatela de US$ 22 trilhões em 2008. Os maiores bancos franceses já perderam este ano cerca de 45% de seu valor de mercado de suas ações. Ainda assim é insuficiente para reverter um poder que não deriva apenas de sua ubiquidade econômica, mas também do enraizamento ideológico no aparelho de Estado, na mídia --vide o jogral contra a redução dos juros no Brasil; no mundo acadêmico e no ambiente dos negócios em geral. A obsessão mórbida pela liquidez (a juros) --para emprestar a frase de Keynes-- tornou-se o valor máximo a perseguir, a contrapelo dos valores da democracia e das prioridades do desenvolvimemto.

'Ocupar Wall Street' tem esse sentido de uma rebelião reordenadora contra a lógica que subtrai recursos à saúde e à educação pública no Brasil; frauda o escrutínio das urnas na Espanha e corrói o emprego nos EUA e em dezenas de outras nações, regurgitando juros sobre juros numa autofagia inútil e sem controle. Mesmo em inglês, o grito que partiu da Praça da Liberdade, em Nova Iorque, encontrou empatia imediata em todos os idiomas e agruras do mundo porque fala ao sentimento intuitivo de todos os povos: é preciso enfrentar o cerne do capitalismo em nosso tempo.

 














 





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