18 outubro 2011

MEMÓRIA

Soledad, a mulher do cabo Anselmo



Urariano Mota(*)





Em 1970, de volta ao Brasil, Anselmo foi preso pela ditadura militar. Em troca da liberdade, delatou perseguidos políticos ao delegado Sérgio Paranhos Fleury, do Dops. A lista de denuciados incluía sua namorada, Soledad Viedma, que acabou morta devido à tortura.

Quem lê “Soledad no Recife” pergunta sempre qual a natureza da minha relação com Soledad Barrett Viedma, a bela guerreira que foi mulher do Cabo Anselmo. Eu sempre respondo que não fomos amantes, que não fomos namorados. Mas que a amo, de um modo apaixonado e definitivo, enquanto vida eu tiver. Então os leitores voltam, até mesmo a editora do livro, da Boitempo: “mas você não a conheceu?”. E lhes digo, sim, eu a conheci, depois da sua morte. E explico, ou tento explicar.

Quem foi, quem é Soledad Barrett Viedma? Qual a sua força e drama, que a maioria dos brasileiros desconhece? De modo claro e curto, ela foi a mulher do Cabo Anselmo, que ele entregou a Fleury em 1973. Sem remorso e sem dor, o Cabo Anselmo a entregou grávida para a execução. Com mais cinco militantes contra a ditadura, no que se convencionou chamar “O massacre da granja São Bento”. Essa execução coletiva é o ponto. No entanto, por mais eloquente, essa coisa vil não diz tudo. E tudo é, ou quase tudo.

Entre os assassinados existem pessoas inimagináveis a qualquer escritor de ficção. Pauline Philipe Reichstul, presa aos chutes como um cão danado, a ponto de se urinar e sangrar em público, teve anos depois o irmão, Henri Philipe, como presidente da Petrobras. Jarbas Pereira Marques, vendedor em uma livraria do Recife, arriscou e entregou a própria vida para não sacrificar a da sua mulher, grávida, com o “bucho pela boca”. Apesar de apavorado, por saber que Fleury e Anselmo estavam à sua procura, ele se negou a fugir, para que não fossem em cima da companheira, muito frágil, conforme ele dizia. Que escritor épico seria capaz de espelhar tal grandeza?

E Soledad Barrett Viedma não cabe em um parêntese. Ela é o centro, a pessoa que grita, o ponto de apoio de Arquimedes para esses crimes. Ainda que não fosse bela, de uma beleza de causar espanto vestida até em roupas rústicas no treinamento da guerrilha em Cuba; ainda que não houvesse transtornado o poeta Mario Benedetti; ainda que não fosse a socialista marcada a navalha aos 17 anos em Montevidéu, por se negar a gritar Viva Hitler; ainda que não fosse neta do escritor Rafael Barrett, um clássico, fundador da literatura paraguaia; ainda assim... ainda assim o quê?

Soledad é a pessoa que aponta para o espião José Anselmo dos Santos e lhe dá a sentença: “Até o fim dos teus dias estás condenado, canalha. Aqui e além deste século”. Porque olhem só como sofre um coração. Para recuperar a vida de Soledad, para cantar o amor a esta combatente de quatro povos, tive que mergulhar e procurar entender a face do homem, quero dizer, a face do indivíduo que lhe desferiu o golpe da infâmia. Tive que procurar dele a maior proximidade possível, estudá-lo, procurar entendê-lo, e dele posso dizer enfim: o Cabo Anselmo é um personagem que não existe igual, na altura de covardia e frieza, em toda a literatura de espionagem. Isso quer dizer: ele superou os agentes duplos, capazes sempre de crimes realizados com perícia e serenidade. Mas para todos eles há um limite: os espiões não chegam à traição da própria carne, da mulher com quem se envolvem e do futuro filho. Se duvidam da perversão, acompanhem o depoimento de Alípio Freire, escritor e jornalista, ex-preso político:

“É impressionante o informe do senhor Anselmo sobre aquele grupo de militantes - é um documento que foi encontrado no Dops do Paraná. É algo absolutamente inimaginável e que, de tão diferente de todas as ignomínias que conhecemos, nos faltam palavras exatas para nos referirmos ao assunto.

Depois de descrever e informar sobre cada um dos cinco outros camaradas que seriam assassinados, referindo-se a Soledad (sobre a qual dá o histórico de família, etc.), o que ele diz é mais ou menos o seguinte:

‘É verdade que estou REALMENTE ENVOLVIDO pessoalmente com ela e, nesse caso, SE FOR POSSÍVEL, gostaria que não fosse aplicada a solução final’.

Ao longo da minha vida e desde muito cedo aprendi a metabolizar (sem perder a ternura, jamais) as tragédias. Mas fiquei durante umas três semanas acordando à noite, pensando e tentando entender esse abismo, essa voragem”.

Esse crime contra Soledad Barrett Viedma é o caso mais eloquente da guerra suja da ditadura no Brasil. Vocês entendem agora por que o livro é uma ficção que todo o mundo lê como uma relato apaixonado. Não seria possível recriar Soledad de outra maneira. No título, lá em cima, escrevi Soledad, a mulher do Cabo Anselmo. Melhor seria ter escrito, Soledad, a mulher de todos os jovens brasileiros. Ou Soledad, a mulher que apredemos a amar.

(*) Urariano Mota, 59 anos, é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. Atualmente, é colunista do Direto da Redação e colaborador do Observatório da Imprensa. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Os corações futuristas (Recife, Bagaço, 1997), um romance de formação, que se passa sob a ditadura de Emílio Garrastazu Médici (1969–1974), e de Soledad no Recife (São Paulo, Boitempo, 2009).

Fonte: http://www.cartamaior.com.br/


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A verdade: por uma comissão
                          verdadeira



Paulo César Carbonari(*)



Está em debate no Congresso Nacional a criação da Comissão Nacional da Verdade. O Projeto de Lei nº 7.376/2010 foi recentemente aprovado pela Câmara dos Deputados e agora aguarda votação pelo Senado Federal. Prevista no terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), sua aprovação, por um lado, deve ser saudada como avanço; por outro, mostra a tendência de conciliação “por cima”, comum na história brasileira.

O texto do Projeto de Lei aprovado pela Câmara estabelece no artigo 1º que a Comissão Nacional da Verdade tem por finalidade “examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas no período fixado no art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias [leia-se de 1946 a 1985] a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional”.

Há aqui pelo menos dois problemas fundamentais: primeiro o período de apuração, que se dilui em mais de quatro décadas da história brasileira, podendo vir a desfocar o objetivo principal de sua proposição que é a apuração das violações do recente período ditatorial (de 1964 a 1985); segundo, ao estabelecer como expectativa final da Comissão a efetivação do direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional, substitui claramente a expectativa de que esta última passe pela necessária realização da justiça às vítimas como requisito e, ademais, mais do que reconciliação, está em questão o fortalecimento da democracia com direitos humanos, como finalidade última.

Ao ajustar a finalidade da Comissão à reconciliação, a proposta fica a meio caminho do que eticamente se poderia dela esperar, mostrando nitidamente seu viés conciliatório e desconhecedor de que qualquer pactuação democrática só será possível com a necessária explicitação do conflito que a requer.

A proposta aprovada reitera a perspectiva ensejada pela posição do Supremo Tribunal Federal quando julgou a Lei da Anistia, o que fica patente pelo previsto no inciso V do artigo 3º: “colaborar com todas as instâncias do poder público para apuração de violação de direitos humanos, observadas as disposições das Leis nº 6.683, de 28 de agosto de 1979 [...]”. Com este texto, não caberia exatamente à Comissão a “apuração” das violações e sim colaborar para que “instâncias do poder público” a façam, podendo entrar em flagrante contradição com o previsto nos incisos I, II e III do mesmo artigo do Projeto de Lei.

Advogar que a Comissão tenha poderes de apuração das violações não é sinônimo de querer que a Comissão seja tida e constituída em substituição aos tribunais convencionais. Ela teria que, ao menos, ter entre suas prerrogativas, mais do que “esclarecer (inciso I),“esclarecimento circunstanciado” (inciso II) e “identificar e tornar público” (inciso III), a obrigação de encaminhar suas conclusões que revelarem necessidade de responsabilização por violação de direitos humanos aos órgãos encarregados de persecuções criminais.

O previsto no parágrafo 2°, do artigo 4º, que dispõe que “os dados, documentos e informações sigilosos fornecidos à Comissão Nacional da Verdade não poderão ser divulgados ou disponibilizados a terceiros, cabendo a seus membros resguardar seu sigilo”, somado ao que determina o artigo 5º: “as atividades desenvolvidas pela Comissão Nacional da Verdade serão públicas, exceto nos casos em que, a seu critério, a manutenção do sigilo seja relevante para o alcance de seus objetivo sou para resguardar a intimidade, vida privada, honra ou imagem de pessoas”, aparecem como limitadores fundamentais da necessária transparência da atuação e dos resultados da Comissão.

A primeira previsão não tem qualquer sustentação, dado que, sem que seja possível à Comissão divulgar ou disponibilizar o que ela receber como insumo para a sustentar suas conclusões fica inviabilizado o contraditório, requisito absolutamente necessário ao estabelecimento da verdade e, de certa forma, vindo a impedir que os próprios “arquivos” da Comissão sejam abertos.

No caso da segunda previsão, a publicidade da atuação da Comissão fica limitada a resguardar a intimidade, a vida privada, a honra ou imagem de pessoas, nos termos previstos no inciso X do artigo 5º da Constituição Federal, o que é necessário, porém, esta previsão parece estar em local inadequado da proposta de lei, visto que as conclusões a que vier é que estariam limitadas por este preceito constitucional, não são só suas atividades. Ou seja, as atividades, aquilo que a Comissão vier a fazer para cumprir suas prerrogativas, deveria ter ampla e irrestrita publicidade, até para que não seja manchada sua legitimidade. A publicidade, aliás é princípio constitucional para toda a atividade a ser feita por órgão público.

Mais uma vez, a Comissão poderia ser transformada, não somente no que diz respeito aos documentos que acumular, mas no seu próprio agir, num “arquivo fechado”. O que a proposta deveria prever, mas não prevê, é que os membros designados para compor a Comissão e aqueles que a ela comparecerem para prestar depoimentos ou informações, tenham garantia de imunidade civil e penal e a necessária proteção do Estado, caso venha a ser necessária, de sorte a, por um lado, animar a colaboração com os trabalhos da Comissão e, por outro, a não ensejar que vítimas e testemunhas venham a ser atacadas, mais uma vez, por seus algozes, abrindo espaço para que a desejada “reconciliação” seja posta abaixo pelos que não a querem pelo simples fato de serem contra qualquer tipo de apuração das violações aos direitos humanos.

O previsto no inciso VI do mesmo artigo 4º: “requisitar proteção aos órgãos públicos para qualquer pessoa que se encontre em situação de ameaça, em razão de sua colaboração com a Comissão Nacional da Verdade” é insuficiente ante o que se espera da Comissão, por estar suscetível à resposta dos órgãos públicos, sem que lhe seja prevista qualquer punição caso não venham a atender ao que a Comissão solicitar.

Por mais que o previsto no § 1º diga que esta requisição deva ser feita diretamente a órgão público, o fato de haver prerrogativa de requisição e de que esta seja feita a órgão público, afasta que seja feita a órgão privado [o que pode ser limitativo, pois há muitas informações que estão em posse de indivíduos ou até organizações privadas], mas não a torna uma medida a ser necessariamente atendida pelo órgão público. Assim disposto, dá-se por automático que o atendimento da requisição seja feito pelo órgão público, até porque o Projeto de Lei não prevê qualquer tipo de punição ao órgão público que vier a se negar a garantir o atendimento a tal requisição.

As breves observações que apresentamos têm seu núcleo central na compreensão de que a verdade exige que se faça profundo reconhecimento das vítimas e de seus algozes como requisito para que seja orientada pela justiça ética e não pela preservação da ordem que, de regra, é conveniente aos opressores mais que aos oprimidos. Verdade e memória são gritos de justiça clamado pelas e para as vítimas. Elas têm o direito de dizer sua palavra e de exigir que a justiça não lhes seja negada. Negar-lhes a justiça equivaleria a uma sobre-vitimá-las, a não somente deixar de reconhecê-las, como também reforçar sua condição de vitimização.

Querer este direito das vítimas não é querer um direito corporativo, pelo contrário, é querer um direito universal, nem que seja para que não sejam produzidas novas vítimas. Por isso é que exigir o direito à memória, à verdade e à justiça como um direito humano é, acima de tudo, um grito pelo “nunca mais” e a afirmação de que queremos um mundo no qual a justiça não seja promessa e que os direitos humanos não sejam quimera. Ainda há tempo para que necessárias revisões ao texto do Projeto de Lei sejam feitas. Mas, elas somente serão feitas se a sociedade reagir a todo tipo de acordo que não seja para viabilizar a justiça às vítimas e para que a Comissão da Verdade venha a ser um profícuo instrumento para tal.

É o que nos resta como cidadãos que, em nome dos direitos humanos, não se conformam em tergiversar ou em pactuar com qualquer tipo de violação e mesmo com qualquer medida que não seja para que todos os direitos humanos sejam, além de garantidos, realizados na vida concreta de todos/as e de cada uma das pessoas.

(*) Doutorando em filosofia (Unisinos), professor de filosofia no Instituto Berthier (IFIBE, Passo Fundo) e conselheiro nacional do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH)


Fonte: www.cartamaior.com.br


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Cabo Anselmo: vulgarização da
                              barbárie



Do sítio Carta Maior:
A entrevista feita com o informante da ditadura militar, cabo Anselmo, no programa Roda Vida, da TV Cultura, levado ao ar nesta 2ª feira, foi boa para o entrevistado. Descontraído, o personagem, um dos mais sombrios da vida política brasileira, buscou 'humanizar-se', repartindo sua folha corrida com a esquerda, cuja resistência legítima ao regime ameaçaria, no seu entender nebuloso, levar o país à guerra civil.

Teria sido para evitá-la que ele traiu e entregou ao moedor de carne da ditadura - literalmente - tudo e todos que dele se aproximaram. Inclusive a própria companheira. Esse, o personagem. O enredo não encontrou na forma e no conteúdo do programa um contrapeso suficiente à releitura psicopata da história. A forma trivial com que alguns o arguiram sobre a desumanidade de uma trajetória devastadora, a abordagem algo tosca de outros revelando despreparo latejante para o tema, sacramentou o tom de curiosidade do conjunto, a maioria jogando íscas, como turistas diante de um espécime raro, num zoológico da história.

Quem sabe ele retribui com uma cambalhota inédita? Possivelmente, aos olhos de muitos, em especial os mais jovens que não vivenciaram aquele período, o saldo tenha sido a relativização das razões em confronto. O episódio serve de alerta aos trabalhos da Comissão da Verdade em vias de instalação. É preciso definir com precisão uma abordagem dos trabalhos que possibilite, de fato, trazer para o conhecimento e a reflexão do país, principalmente para as novas gerações, o que foi e o que subsiste do aparato repressivo da ditadura militar brasileira.

A experiência do Roda Viva demonstra que é indispensável o amparo de vozes qualificadas da sociedade para expressar seus valores mais caros, aqueles que sustentam os laços da convivência compartilhada, laços humanistas, solidários e libertários, rompidos pelo horror de ontem, mas de hoje também. É no confronto com esses valores, e com a atualidade que os ameaça, que a exposição da barbárie ganha sua dimensão pedagógica afrontada pela dialética do esclarecimento.

Caso contrário, corre-se o risco de vulgarizar a sua prática como mais um produto - ou celebridade - a ser consumido na engrenagem insaciável de uma espetacularização que empresta normalidade a qualquer coisa. Mesmo às mais abjetas.



Fonte: http://www.altamiroborges.blogspot.com/

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