30 outubro 2011

DIREITOS HUMANOS

Na margem esquerda do rio da Prata, em Montevidéu, na madrugada desta quinta-feira o Senado aprovou uma lei que determina que os crimes praticados durante o longo período da ditadura que foi de 1973 a 1985 são imprescritíveis e não podem ser anistiados. Passam a ser reconhecidos como o que efetivamente são: crimes de lesa-humanidade, que, por acordos e convenções internacionais assinadas pelo Uruguai (aliás, pelo Brasil também), jamais prescreverão. Com isso, o Estado uruguaio recupera sua capacidade punitiva, ou seja, de levar a justiça às últimas conseqüências, um dos atributos essenciais da democracia.

A anistia decretada no apagar das luzes da ditadura, e referendada pelo voto popular em duas ocasiões, 1989 e 2009, permitiu durante todo esse tempo que a Justiça não fosse aplicada contra militares e policiais que violaram de maneira desenfreada os direitos humanos. É verdade que nos últimos anos, com a Frente Ampla no poder, vários militares e políticos foram julgados e condenados. Mas tudo dependeu do governo, que podia decidir se pedia ou não à Justiça julgar determinado caso. Agora, qualquer caso pode ser e será julgado. Os crimes da ditadura iam prescrever no dia primeiro de novembro de 2011. Não prescrevem mais.

Na margem direita do rio da Prata, em Buenos Aires, um tribunal condenou à prisão perpétua um dos símbolos mais abjetos do horror vivido pelos argentinos entre 1976 e 1983: o oficial da Marinha Alfredo Astiz. Junto com ele, foram condenados outros onze verdugos que atuaram no maior centro de tormento da ditadura, a antiga ESMA (Escola Superior de Mecânica de Armada).

Astiz. Alfredo Astiz. Alguns nomes se tornam emblemas da barbárie, do que pode haver de mais desprezível sobre a face da terra. Astiz é um deles. O julgamento durou quase dois anos, e levou para o tribunal, como testemunhas de acusação, 79 sobreviventes da ESMA – passaram por lá, vale recordar, pouco mais de cinco mil pessoas, e os sobreviventes não chegam a 200.

Nos autos do processo há um rosário de crueldades que ultrapassam qualquer limite da perversão. Os condenados foram de uma crueldade sem par. Ricardo Cavallo, grande torturador, somava a essa façanha a de ser um dos responsáveis pelos ‘vôos da morte’, quando prisioneiros eram arrancados dos cárceres, levados para aviões e atirados vivos para o mar ou para as águas desse mesmo rio da Prata. Adolfo Donda participou do assassinato da cunhada. Depois, roubou a filha dela, que foi dada ilegalmente em adoção. Donda continuou visitando a mãe de sua cunhada, avó da menina que ele seqüestrou e doou, como se não soubesse de nada. A menina recuperou sua identidade em 2003. Chama-se Vitoria Donda, e é deputada pela Frente Ampla Progressista.

Vi as fotos dos acusados. Em alguns, a soberba indisfarçável. Em outros, um ar um tanto alheio, como se não entendessem o que fizeram para estar ali. Todos imperturbáveis em seus rostos de aço. Todos afinados num mesmo discurso: foram soldados que lutaram na defesa da pátria. Astiz, aliás, se esmerou: “Dei, ao combate, o melhor de mim”.

O único combate real do qual participou foi na guerra das ilhas Malvinas, em 1982. Não disparou um só tiro: assim que topou com soldados britânicos ergueu os braços e se rendeu. Tinha acabado de fazer 31 anos. Sua foto entregando-se de graça ao inimigo, o rosto de menino, o olhar quase ingênuo, compungido, foi parar nos jornais. Nessa foto as Mães da Praça de Maio reconheceram o homem com ar angelical que havia participado de várias reuniões do grupo, que havia caminhado junto de senhoras com a cabeça coberta de branco, em silêncio, e que um dia sumiu, depois de ter entregue três delas para a ESMA. O rosto do anjo louro da morte.

Examino a foto do julgamento, a hora da leitura da sentença. Vejo o Astiz de hoje – um tanto balofo, envelhecido antes do tempo. Examino essa foto uma, duas, cinco, um sem-fim de vezes. Vejo os olhos. Não aparentam medo, não aparentam nada. Parecem esculpidos em gelo.

Deram a Astiz a Justiça que ele e seus comparsas negaram a milhares de pessoas. Que ele negou à jovem sueca Dagmar Hagelin, às Mães da Praça de Maio que sacrificou, a Rodolfo Walsh, às monjas francesas Léonie Duquet e Alice Domon.

Ao saber da condenação de Astiz, o governo francês disse que essa decisão honra a Argentina. Disse também que o país assumiu, com coragem, seu dever de memória. Que honrou os que lutam contra a impunidade e em defesa dos direitos humanos.

Na margem esquerda do rio da Prata, acaba a prescrição para crimes de lesa-humanidade. Na margem direita, agora são 262 condenados, entre eles dois generais-presidentes.

Aqui, o Senado aprovou a Comissão da Verdade. Se a verdade algum dia for o primeiro passo para a Justiça, para o fim da impunidade, o Brasil estará honrando sua memória. Honrando si próprio. A todos nós.





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“É preciso que as pessoas queiram exercer o direito à memória e à verdade”

Em entrevista à Carta Maior, Maria do Amparo Almeida Araújo, que combateu a ditadura pela Ação Libertadora Nacional (ALN), fundou o Coletivo Tortura Nunca Mais de Pernambuco e hoje é secretária de Direitos Humanos e Segurança Cidadã na Prefeitura do Recife, fala sobre a Comissão da Verdade e os obstáculos para que a memória e a verdade sobre o período da ditadura venham à tona. "É preciso que as pessoas queiram exercer esse direito. Infelizmente, talvez pela distância, pelo tempo, as pessoas não estão muito sensibilizadas com isso", afirma.

Não há qualquer exagero em afirmar que a alagoana de Palmeira dos Índios, Maria do Amparo Almeida Araújo, 61 anos, tem uma vida dedicada à luta pela liberdade e a defesa dos Direitos Humanos. Após três anos morando em São Paulo, ela ingressou ativamente no combate à ditadura militar, através da Ação Libertadora Nacional (ALN), organização da qual se tornou militante junto com o irmão mais velho, Luiz. Tinha apenas 17 anos.

Amparo é um exemplo de uma cidadã brasileira que teve a vida marcada pela face mais desumana da ditadura. O irmão Luís está na lista dos militantes desaparecidos. Durante os anos de chumbo, teve ainda três companheiros desaparecidos. Iúri Xavier Pereira, Luiz José da Cunha e Thomaz Antonio da Silva Meireles Neto. Iúri e Luiz José foram mortos por policiais do Doi-Codi, o braço forte da repressão. Thomaz foi preso em 1974, no Rio de Janeiro, e engrossou a lista de desaparecidos políticos.

Entre 1972 e 1977, a família pensou que Amparo também havia sido executada pelas forças reacionárias. Só ficaram sabendo que estava viva quando retornou a Alagoas, no final de 1977, após a dissolução da ALN.

No ano seguinte, ela ruma para o Recife, onde se forma em Serviço Social e permanece de forma ativa na defesa dos ideais libertários e, após a queda do regime militar, na busca pela verdade do que realmente ocorreu com os brasileiros que tiveram seus direitos humanos violados no período da ditadura. Milhares de torturados, centenas assassinados e de desaparecidos.

Juntamente com quatro ex-militantes, o jornalista e poeta Marcelo Mário Melo, o vereador de Olinda, Marcelo Santa Cruz, e os sociólogos Francisco de Assis e Alberto Vinícius, fundou o coletivo Tortura Nunca Mais, de Pernambuco. O movimento tem como pilares divulgar e esclarecer a prática da tortura durante a ditadura militar e auxiliar os presos políticos na busca pela anistia plena.

Atualmente, a ONG Movimento Tortura Nunca Mais, que já teve Amparo como presidente, toca uma série de projetos sociais na busca pelo resgate da cidadania e da paz em Pernambuco. São ações das mais variadas formas e alcances, como o combate à violência doméstica, a prevenção à violência nas escolas, a profissionalização de jovens e a capacitação de policiais na defesa dos Direitos Humanos.

A trajetória de Amparo Araújo ganhou mais um capítulo em 2003, quando ela se tornou ouvidora da Secretaria de Defesa Social de Pernambuco, função exercida até dezembro de 2008. Foi quando ela deixou o Governo de Pernambuco para assumir a função que exerce no momento, a de secretária de Direitos Humanos e Segurança Cidadã da Prefeitura do Recife.

Foi no escritório apertado e cheio de pilhas de papéis, na Secretaria de Direitos Humanos, que Amparo conversou com Carta Maior. Ela vinha de uma semana puxada, com reuniões de trabalho da Secretaria, uma viagem a Brasília e compromissos em eventos institucionais da Prefeitura do Recife. A eterna militante começou a entrevista pedindo desculpas pela fala pausada e o tom de voz cansado, por conta do corre-corre dos dias anteriores. Ao final do encontro, parecia uma outra pessoa. Falava com energia ao relembrar as tristes histórias do passado e ainda com mais altivez sobre os temas futuros, como a batalha que se inicia com a Comissão da Verdade.

Carta MaiorQual a sua expectativa sobre a criação da Comissão da Verdade e o que ela pode representar de real nessa luta que a senhora desenvolve há tantos anos para buscar o paradeiro dos milhares de desaparecidos políticos da época da ditadura militar brasileira?

Amparo Araújo – Há 30 anos a gente luta por essa comissão, pela abertura dos arquivos, pelo reestabelecimento da verdade. E a gente tem alguns acervos. O acervo da Comissão da Anistia, que tem um pouco dessa história. Tem o acervo da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos. Mas nenhum desses acervos indica como as pessoas foram mortas. Quem matou, onde, quando, onde estão os restos mortais. Agora surge a nova possibilidade dessa comissão, que é uma revindicação antiga. Podemos dizer que é uma terceira tentativa. Nenhuma delas se propõe a fazer Justiça.

De qualquer jeito, é um passo – um terceiro passo – o que já mostra que nós não paramos, que os familiares e a Sociedade continuam pressionando o Estado brasileiro para que ele deixe de ser um estado terrorista. Tiveram os oito anos do Governo Lula, onde a gente tinha grandes expectativas que não foram cumpridas. Se avançou um bocado na estruturação da Secretaria de Direitos Humanos, com todas as publicações que, por um esforço sobrehumano do ex-ministro Paulo Vannuchi foram feitas, mas isso ainda é muito pouco. Eu tenho receio que essa comissão, do jeito que está aí, também seja muito pouco. E a gente vai ter que continuar lutando. A gente não pode pensar que um dia essa história vai ter fim, porque é muito difícil o fim dessa história.

Carta MaiorA criação da Comissão tem gerado sentimentos distintos. Enquanto alguns comemoram a iniciativa, outros preferem enxergar os pontos negativos para justificar uma insatisfação. Em que campo a senhora está?

Amparo Araújo – Não posso dizer que esteja totalmente insatisfeita, mas não estou satisfeita. Não era isso que a gente queria. A comissão, do jeito que está colocada, tem vários pontos polêmicos. Mas o importante é que o tema voltou a ser pautado, tanto na mídia quanto na Política. E se nós, a Sociedade civil, os familiares e os sobreviventes, conseguirmos nos organizar... A gente não vai poder parar, entendeu? Não sei até que ponto a gente sonhou com uma coisa pronta e acabada. Ela não veio pronta e acabada e isso gerou uma certa frustração. Eu tenho visitado outros países do Mercosul, todos eles por onde tiveram ditaduras, e nesses outros países já tiveram várias comissões. Na Argentina, a Lei do Ponto Final foi derrubada, porque houve uma pressão da Sociedade civil. Forçou o governo a tomar essa decisão política.

Carta MaiorQuais os pontos que a desagradam na Lei, como está posta?

Amparo Araújo – Essa questão do tempo, por um lado eu acho um tempo muito longo. Que pega desde a ditadura de Vargas. Mas tem muita coisa desse período que não foi esclarecida. Quando a gente abriu os arquivos do Dops, em 1989, que foi o primeiro arquivo a ser aberto, a quantidade de dossiês da época da ditadura de Vargas é muito grande. O que aconteceu com essas pessoas? A gente não sabe. A quantidade de pessoas que farão parte da comissão é muito pequena, o período também é muito pequeno. Acho que vai ser uma medição de forças o tempo todo.

Dois anos é impossível investigar todo esse período. Dois anos é um tempo curto até para o período da última ditadura, que dirá o da ditadura anterior. A gente vai ter que fazer um esforço sobrehumano. Nós, os sobreviventes, os familiares, a gente tentar envolver as universidades, os sindicatos, o movimento que trabalha a questão da terra, ir atrás dessa memória. Não é um trabalho fácil. Mas nada nunca foi fácil nesse nosso país, para ninguém.

Carta MaiorPara muitos, havia a expectativa de que a Comissão da Verdade pudesse ter poderes de punir possíveis torturadores, algo que só diz respeito ao Judiciário. A senhora acredita que, de certa forma, o trabalho da comissão pode ao menos gerar uma nova leva de processos contra os que praticaram crimes na época da ditadura?

Amparo Araújo - É muito duro, porque nossas mães já morreram. Nós estamos envelhecendo. A gente tem que encerrar essa história. Clarear essa história. A punição das pessoas é importante para resolver uma questão de Justiça. A impunidade de que essas pessoas tiveram a benesse, depois de terem cometidos crimes contra a humanidade, faz com que esses crimes se perpetuem. Os profissionais de Polícia se consideram impunes. Essa nossa ação, nossa luta, nossa busca, o maior objetivo dela, além da punição das pessoas que violaram os diretos humanos dos nossos familiares e os nossos, é a ação pedagógica. Para que o Estado nunca mais volte a permitir que crimes dessa natureza aconteçam.

Carta MaiorComo a senhora avalia a proposta de alguns parlamentares da Oposição e de lideranças das Forças Armadas que defendem que os militantes dos grupos armados de Esquerda que atuaram no período da repressão também sejam analisados pela Comissão da Verdade?

Amparo Araújo – Eles pensam que as pessoas têm deficiência cognitiva. Há uma diferença muito grande. Porque nós todos fomos presos e cumprimos penas. Inclusive a presidenta Dilma. Quem nunca cumpriu pena, quem nunca foi preso, foram justamente eles, que foram os perpetradores das violações contra os direitos humanos de toda uma sociedade. Porque todo mundo sofreu na época da ditadura. É difícil você encontrar uma família que não teve um membro, ou um amigo, um conhecido ou um parente que foi preso, torturado e perseguido. Eles estão equivocados. Nós fomos perseguidos, presos, torturados, muitos foram mortos e ainda tiveram seus cadáveres ocultados. Nunca houve uma punição para esses crimes.

Carta MaiorEles se apegam à Lei da Anistia para argumentar que o Brasil já zerou essas questões...

Amparo Araújo – Eles dizem que foi um acordo, mas acordo com quem? As pessoas estavam presas, exiladas. Isso não é verdade. Os setores conservadores da Sociedade brasileira que estão representados no Congresso dão a interpretação que eles querem dar. O Governo não tem uma hegemonia. A presidenta Dilma se submete ao que o Congresso decide. Não é isso que o estado democrático de direito dentro do regime presidencialista que a gente vive? Se a gente permitir que esses crimes continuem impunes, a gente está permitindo que se perpetue a violação dos Direitos Humanos por parte dos agentes do Estado. Não foram só os militares que cometeram crimes contra a humanidade durante o período da ditadura. Muitos civis foram coniventes. Dirigentes de órgãos públicos que emprestavam sua estrutura para ser utilizadas para fazer atentados.

Aqui, em Pernambuco, temos vários casos, como o da Rural Willys branca e verde que aparece no atentado a Sandro Tito, na morte de Padre Henrique, na ocultação do cadáver de Ezequias. Ele era do Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária]. E os dirigentes desses órgãos não eram militares, eram civis. O pessoal costuma chamar de ditadura militar, mas foi uma ditadura civil e militar. O Brasil está se recusando a cumprir a sentença da corte. Nosso país assinou os tratados, está submetido à Corte da ONU em sua plenitude. O descaso com que eles trataram a família dos desaparecidos do Araguaia... Isso é um crime continuado, está valendo até hoje.

Carta MaiorMas, recentemente, o Supremo Tribunal Federal referendou o que havia sido decidido na Lei da Anistia, ao se colocar contra um processo de revisão.

Amparo Araújo – Essa posição do STF é retrato do que é o Poder Judiciário em nosso País. Não sou da área de Direito. Nós temos três poderes. Nada impede, nem mesmo hoje, que nós entremos na Justiça contra qualquer torturador. Tanto é que tem duas famílias que movem processos contra Carlos Alberto Brilhante Lustra, a família Teles e a família Medeiros. Independentemente de comissão. É uma luta muito difícil dessas famílias, pois eles estão praticamente sozinhos. Mas eles tiveram a coragem de entrar na Justiça contra essa criatura aí. Há provas concretas contra ele, com testemunhas e tudo. Se a comissão trabalhar bem a coleta de documentação, a oitiva de testemunhas – a comissão vai ter poder de convocar os perpetradores que ainda estão vivos a depor, para serem interrogados – essa peça que vai ser construída vai ser um instrumento paras que as famílias entrem na Justica, que é um outro poder. Correndo o risco do processo ser arquivado. Só vai para a corte depois que todas as instâncias no Brasil forem esgotadas.

Além do processo do Araguaia, tem um processo que eu abri na corte interamericana dos diretos Humanos, pela morte de Luís José da Cunha, meu ex-marido, que foi morto em 1973. Ele foi preso vivo e é morto na Operação Bandeirantes. Pude entrar na corte interamericana porque todos os processos que movi em nível de Brasil foram arquivados. Entrei através do Ministério Públuco Federal, em São Paulo. Entrei com o meu processo e Clarissa Herzog entrou com o processo de Wladimir Herzog, jornalista que foi morto sob tortura. No caso dela, também se esgotaram todas as possibilidades na nossa corte. Outras famílias também podem fazer a mesma coisa.

Carta MaiorA senhora nunca deixou de ser uma ativa militante pelo respeito aos Diretos Humanos. Inclusive com uma atuação bem próxima das forças policiais. É possível afirmar categoricamente que a tortura é algo que perdura no País?

Amparo Araújo – Durante o período da ditadura militar, ela foi uma política de Estado. Nós tínhamos um estado terrorista. E a tortura ainda continua. Tenho certeza que, neste momento, em praticamente todas as delegacias, tem alguém sendo torturado. É uma herança, por conta da impunidade. E a forma como a nossa Polícia atua ainda está muito carregada dessa certeza da impunidade. Se você olhar, tem o caso do menino Jean, no Rio de Janeiro. Eles agiram igual. Eles atiraram no garoto, sequestraram o garoto, talvez ainda com vida, mataram o garoto e ocultaram o cadáver dele.

No Recife houve outro caso assim há poucos dias. Acho que eles só não fizeram a mesma coisa porque tinha gente vendo. Mas eles largaram o menino, nem sequer socorreram. Eu fui ouvidora da Polícia. Fiquei arrasada com aquilo, porque aqui, desde 1993, existe a cadeira de Direitos Humanos na grade curricular da formação dos policiais. A instrução que eles recebem era para que não houvesse mais esse tipo de atitude. É inadmissível que isso ainda aconteça. Acho que ainda tem na cabeça deles a certeza da impunidade. A Polícia continua extremamente violenta. O que eles chamam de auto de resistência são execuções sumárias. A maioria dos autos de resistência é tiro na cabeça. Isso é execução. Mas não sei se a sociedade está preocupada com isso. Quem morre mais é pobre.

Em 2006, em São Paulo, naquela ação em alguns policiais foram mortos pelo crime organizado, a recíproca foi muito mais forte. Não me iludo em relação a isso. A questão do respeito aos Direitos Humanos, ela tem que ser uma luta com o Estado. Nós tínhamos uma coordenadoria na época do doutor [Miguel] Arraes [ex-governador de Pernambuco]. Depois passou a ter uma Secretaria Especial de Justiça e Direitos Humanos, agora ela também tem a questão da Ressocialização. Mas quantos municípios têm secretaria de Direitos Humanos? Só Recife e Jaboatão dos Guararapes. E são 186 cidades em Pernambuco. O simples fato de existir já significa uma sensibilidade política.

Carta MaiorCom todos esses questionamentos sobre a eficiência ou a ineficiência do que da Comissão da Verdade, o que a senhora espera da Sociedade. Não falo dos movimentos organizados, mas do cidadão comum. Que tipo de postura a senhora imagina que o brasileiro vai ter no momento em que forem à tona as histórias dos anos de chumbo?

Amparo Araújo – É preciso que as pessoas queiram exercer esse direito. Infelizmente, talvez pela distância, pelo tempo, as pessoas não estão muito sensibilizadas com isso. Eu vou em outros estados e vejo como reverenciam Frei Caneca, por exemplo. Aqui, em Pernambuco, as pessoas não sabem qual o papel de Frei Caneca na revolução [de 1817]. É muito maior que o de Tiradentes. Qual o valor que Pernambuco dá a ele? Veja Zumbi. Nós temos um memorial, as pessoas que trabalham com a questão da igualdade racial sempre lembram disso, mas é só. Zumbi é considerado um herói das Américas! O centenário de Paulo Freire é muito pouco falado. Apolônio de Carvalho, um brasileiro, militante internacionalista, participou da Guerra Civil Espanhola, da Resistência Francesa, estamos no centenário de Apolônio de Carvalho e ninguém o conhece. E sabe de quem é a ficha número 1 do Partido dos Trabalhadores? É de Apolônio de Carvalho. Mas ninguém fala nisso. Eu gostaria muito que a Sociedade, como um todo, entendesse que o direito à memória e à verdade é de todos. É algo de que a gente não pode abrir mão.


Fotos: Eduardo Seidl



Fonte: http://www.cartamaior.com.br/








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