Israel: o tsunami que está chegando
Immanuel Wallerstein - Esquerda.net
Os palestinos estão trabalhando para obter o reconhecimento formal da sua soberania na reunião de outono da Assembleia Geral das Nações Unidas. A sua intenção é solicitar uma declaração de que o Estado existe dentro das fronteiras de 1967. É quase certo que a votação será favorável. A única questão, no momento, é quão favorável.
A liderança política israelense está bem ciente disso. Está discutindo três diferentes respostas. A posição dominante parece ser a do primeiro-ministro Netanyahu, que propõe ignorar totalmente a resolução e simplesmente manter as políticas atuais do governo israelense. Netanyahu sabe que a Assembleia Geral das Nações Unidas há muito tempo que adota resoluções desfavoráveis a Israel, que este país tem ignorado com sucesso. Por que seria esta diferente?
Há alguns políticos da extrema-direita (sim, há uma posição ainda mais à direita que a de Netanyahu) que dizem que, em represália, Israel devia anexar formalmente todos os territórios palestinos ocupados atualmente e acabar com toda a conversa sobre negociações. Alguns também querem forçar a um êxodo das populações não-judaicas deste estado de Israel expandido.
O ex-primeiro-ministro (e atual ministro da Defesa) Ehud Barak, cuja base política é hoje quase inexistente, adverte que Netanyahu está sendo irrealista. Barak diz que a resolução vai ser um tsunami em Israel, e que, portanto, seria mais sábio que Netanyahu fizesse alguma tipo de acordo com os palestinos agora, antes que a resolução seja aprovada.
Será que Barak tem razão? A resolução vai ser um tsunami para Israel? Há uma grande possibilidade de que assim seja. Mas não existe praticamente qualquer hipótese de que Netanyahu siga os conselhos de Barak e tente seriamente fazer antes um acordo com os palestinos.
Pensem no que provavelmente vai acontecer na própria Assembleia Geral. Sabemos que a maioria dos países da América Latina (talvez todos) e uma percentagem muito grande de países da África e da Ásia vão votar a favor da resolução. Sabemos que os Estados Unidos vão votar contra e tentar persuadir outros a acompanhar essa posição. Os votos incertos são os da Europa. Se os palestinos conseguirem obter um número significativo de votos europeus, a sua posição política ficará muito reforçada.
Vão os europeus votar nesta resolução? Depende, em parte, do que aconteça em todo o mundo árabe nos próximos dois meses. Os franceses já sugeriram abertamente que vão apoiá-la, a menos que ocorram progressos significativos nas negociações de Israel com os palestinos (que no momento sequer estão ocorrendo). Se o fizerem, é quase certo que os governos do Sul da Europa se juntem a eles. O mesmo podem fazer os países nórdicos. É uma questão mais em aberto se a Grã-Bretanha, Alemanha e Holanda estão prontas a juntar-se a eles. Se estes países decidirem apoiar a resolução, poderão resolver as hesitações de vários países do leste europeu. Neste caso, a resolução obteria a grande maioria dos votos da Europa.
É preciso olhar, portanto, para o que está acontecendo no mundo árabe. A segunda revolta árabe ainda está em pleno andamento. Seria temerário prever exatamente quais regimes vão cair e quais vão aguentar firmemente nos próximos dois meses. O que parece claro é que os palestinos estão à beira de desencadear uma terceira intifada. Mesmo os mais conservadores entre os palestinos parecem ter perdido a esperança de que possa haver um acordo negociado com Israel. Esta é a mensagem clara do acordo entre a Fatah e o Hamas. E dado que as populações de praticamente todos os estados árabes estão em revolta política direta contra os seus regimes, como poderiam os palestinos permanecer relativamente tranquilos? Não vão ficar quietos.
E se não ficarem quietos, o que vão fazer os outros regimes árabes? Todos eles estão passando por grandes dificuldades, para dizer o mínimo, para controlar as revoltas nos seus próprios países. Apoiar ativamente uma terceira intifada seria a posição mais fácil de tomar, como parte do esforço de recuperar o controle do seu próprio país. Que regime se atreveria a não apoiar a terceira intifada? O Egito já mudou claramente nesta direção. E o rei Abdullah da Jordânia deu a entender que também ele o pode fazer.
Imaginem então a sequência: uma terceira intifada, seguida pelo apoio árabe ativo, seguida pela intransigência do governo israelense. Que farão então os europeus? É difícil vê-los a recusar-se a votar a favor da resolução. Poderíamos facilmente chegar a uma votação com apenas os votos contra de Israel, dos Estados Unidos, e de uns poucos pequenos países, e talvez umas poucas abstenções.
A mim, isto soa como um possível tsunami. O maior medo de Israel nos últimos anos tem sido a “deslegitimação”. Não seria uma votação como essa precisamente um processo de deslegitimação? E não irá o isolamento dos Estados Unidos nesta votação enfraquecer ainda mais a sua posição no mundo árabe como um todo? O que farão então os Estados Unidos?
(*) Tradução, revista pelo autor, de Luis Leiria para o Esquerda.net
A liderança política israelense está bem ciente disso. Está discutindo três diferentes respostas. A posição dominante parece ser a do primeiro-ministro Netanyahu, que propõe ignorar totalmente a resolução e simplesmente manter as políticas atuais do governo israelense. Netanyahu sabe que a Assembleia Geral das Nações Unidas há muito tempo que adota resoluções desfavoráveis a Israel, que este país tem ignorado com sucesso. Por que seria esta diferente?
Há alguns políticos da extrema-direita (sim, há uma posição ainda mais à direita que a de Netanyahu) que dizem que, em represália, Israel devia anexar formalmente todos os territórios palestinos ocupados atualmente e acabar com toda a conversa sobre negociações. Alguns também querem forçar a um êxodo das populações não-judaicas deste estado de Israel expandido.
O ex-primeiro-ministro (e atual ministro da Defesa) Ehud Barak, cuja base política é hoje quase inexistente, adverte que Netanyahu está sendo irrealista. Barak diz que a resolução vai ser um tsunami em Israel, e que, portanto, seria mais sábio que Netanyahu fizesse alguma tipo de acordo com os palestinos agora, antes que a resolução seja aprovada.
Será que Barak tem razão? A resolução vai ser um tsunami para Israel? Há uma grande possibilidade de que assim seja. Mas não existe praticamente qualquer hipótese de que Netanyahu siga os conselhos de Barak e tente seriamente fazer antes um acordo com os palestinos.
Pensem no que provavelmente vai acontecer na própria Assembleia Geral. Sabemos que a maioria dos países da América Latina (talvez todos) e uma percentagem muito grande de países da África e da Ásia vão votar a favor da resolução. Sabemos que os Estados Unidos vão votar contra e tentar persuadir outros a acompanhar essa posição. Os votos incertos são os da Europa. Se os palestinos conseguirem obter um número significativo de votos europeus, a sua posição política ficará muito reforçada.
Vão os europeus votar nesta resolução? Depende, em parte, do que aconteça em todo o mundo árabe nos próximos dois meses. Os franceses já sugeriram abertamente que vão apoiá-la, a menos que ocorram progressos significativos nas negociações de Israel com os palestinos (que no momento sequer estão ocorrendo). Se o fizerem, é quase certo que os governos do Sul da Europa se juntem a eles. O mesmo podem fazer os países nórdicos. É uma questão mais em aberto se a Grã-Bretanha, Alemanha e Holanda estão prontas a juntar-se a eles. Se estes países decidirem apoiar a resolução, poderão resolver as hesitações de vários países do leste europeu. Neste caso, a resolução obteria a grande maioria dos votos da Europa.
É preciso olhar, portanto, para o que está acontecendo no mundo árabe. A segunda revolta árabe ainda está em pleno andamento. Seria temerário prever exatamente quais regimes vão cair e quais vão aguentar firmemente nos próximos dois meses. O que parece claro é que os palestinos estão à beira de desencadear uma terceira intifada. Mesmo os mais conservadores entre os palestinos parecem ter perdido a esperança de que possa haver um acordo negociado com Israel. Esta é a mensagem clara do acordo entre a Fatah e o Hamas. E dado que as populações de praticamente todos os estados árabes estão em revolta política direta contra os seus regimes, como poderiam os palestinos permanecer relativamente tranquilos? Não vão ficar quietos.
E se não ficarem quietos, o que vão fazer os outros regimes árabes? Todos eles estão passando por grandes dificuldades, para dizer o mínimo, para controlar as revoltas nos seus próprios países. Apoiar ativamente uma terceira intifada seria a posição mais fácil de tomar, como parte do esforço de recuperar o controle do seu próprio país. Que regime se atreveria a não apoiar a terceira intifada? O Egito já mudou claramente nesta direção. E o rei Abdullah da Jordânia deu a entender que também ele o pode fazer.
Imaginem então a sequência: uma terceira intifada, seguida pelo apoio árabe ativo, seguida pela intransigência do governo israelense. Que farão então os europeus? É difícil vê-los a recusar-se a votar a favor da resolução. Poderíamos facilmente chegar a uma votação com apenas os votos contra de Israel, dos Estados Unidos, e de uns poucos pequenos países, e talvez umas poucas abstenções.
A mim, isto soa como um possível tsunami. O maior medo de Israel nos últimos anos tem sido a “deslegitimação”. Não seria uma votação como essa precisamente um processo de deslegitimação? E não irá o isolamento dos Estados Unidos nesta votação enfraquecer ainda mais a sua posição no mundo árabe como um todo? O que farão então os Estados Unidos?
(*) Tradução, revista pelo autor, de Luis Leiria para o Esquerda.net
Fonte: http://www.cartamaior.com/
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Não é só o euro, mas a democracia que está
em jogo
Amartya Sen
A Europa liderou o mundo no que diz respeito à prática da democracia. É, portanto, preocupante que os perigos para a governabilidade democrática de hoje, que entram pela porta traseira das prioridades financeiras, não recebam a atenção que merecem. Há questões de fundo que devem ser enfrentadas a respeito de como o governo democrático da Europa pode ser minado pelo papel enormemente aumentado das instituições financeiras e das agências de classificação de riscos, que hoje se apropriaram de certas partes do terreno político da Europa.
É preciso separar duas questões diferenciadas. A primeira se refere ao lugar das prioridades democráticas, incluindo o que Walter Bagehot e John Stuart Mill consideravam a necessidade do “governo por meio da discussão”. Suponhamos que aceitemos que os poderosos chefes das finanças possuem uma compreensão realista do que é preciso fazer. Com isso se fortaleceria o argumento favorável a prestar atenção em suas vozes em um diálogo democrático. Mas isso não é o mesmo que deixar às instituições financeiras internacionais e às agências de classificação de risco o poder universal de mandar sobre governos eleitos democraticamente. Em segundo lugar, é difícil ver que os sacrifícios que os comandantes financeiros vêm exigindo dos países em situação precária vão garantir a viabilidade destes países e a continuidade do euro dentro de um modelo sem reformar o setor financeiro e um conjunto de membros sem mudanças dentro do clube do euro.
O diagnóstico dos problemas econômicos por parte das agências de qualificação não é a voz da verdade como pretendem. Vale a pena lembrar que o histórico dessas agências nas instituições de certificação financeira e de negócios antes da crise econômica de 2008 era tal que o Congresso dos EUA debateu seriamente se deviam ser processadas. Dado que grande parte da Europa encontra-se agora empenhada em conseguir uma rápida redução do déficit público mediante a redução drástica do gasto público, é fundamental examinar com realismo que possíveis repercussões poderiam ter essas medidas políticas, tanto no caso da população quanto no da geração de receitas públicas por meio do crescimento econômico.
A alta moral de “sacrifício” tem um efeito embriagante. Esta é a filosofia do corpete “correto”. “Se a senhora se sente muito cômoda com ele, então certamente precisa de um tamanho menor”. No entanto, se as exigências de adequação financeira se vinculam de maneira demasiadamente mecânica aos cortes imediatos, o resultado pode ser o de matar a galinha dos ovos de ouro do crescimento econômico. Essa preocupação se aplica a uma série de países, desde a Inglaterra até a Grécia. A comunidade da estratégia do “sangue, suor e lágrimas” de redução do déficit outorga uma aparente plausibilidade ao que está sendo imposto aos países mais precários como Grécia ou Portugal. Também faz com que seja mais difícil ter uma voz política unida na Europa que possa fazer frente ao pânico gerado nos mercados financeiros.
Além de uma visão mais política, há necessidade de um pensamento econômico mais claro. A tendência a ignorar a importância do crescimento econômico na geração de receitas públicas deveria ser um assunto importante de análise. A sólida conexão entre crescimento econômico e receitas públicas é uma coisa observada em muitos países, como Índia, China, Estados Unidos e Brasil. Também aqui se tiram lições da história. A grande dívida pública de muitos países ao término da Segunda Guerra Mundial provocou uma enorme ansiedade, mas o gravame diminuiu rapidamente graças a um rápido crescimento econômico. Do mesmo modo, o enorme déficit que o presidente Clinton enfrentou quando assumiu seu cargo em 1992 se dissipou durante sua presidência, em grande medida graças à ajuda de um rápido crescimento econômico.
O temor de uma ameaça à democracia não se aplica, com certeza, a Inglaterra, já que estas medidas políticas foram escolhidas por um governo investido pelo poder das eleições democráticas. Apesar de que o desenvolvimento de uma estratégia não revelada no momento das eleições possa ser razão para uma reflexão, este é o tipo de liberdade que um sistema democrático permite aos que saem vencedores nas eleições. Mas com isso não se elimina a necessidade de uma maior discussão pública, mesmo na Inglaterra. Também existe a necessidade de reconhecer de que modo as políticas restritivas resultantes da eleição na Inglaterra parecem dar verossimilhança às medidas ainda mais drásticas impostas a Grécia.
Como os países do euro se meteram nesta enrascada? A rara singularidade de ir na direção de uma moeda única sem uma maior integração política e econômica sem dúvida contribuiu para isso, ainda mais considerando as transgressões financeiras que sem dúvida cometeram no passado países como Grécia ou Portugal (inclusive depois da importante advertência de Mario Monti de que uma cultura de “excessiva deferência” na União Europeia permitiu que essas transgressões ocorressem sem controle). É preciso reconhecer imensamente o governo grego – e Yorgos Papandreu, o primeiro ministro, em particular -0 que está fazendo o que pode apesar da resistência política, mas a vontade aflita de Atenas de cumprir certos termos não elimina a necessidade de os europeus estudarem a razoabilidade desses termos – e os tempos – que estão sendo impostos a Grécia.
Não é nenhum consolo para mim lembrar que me opus firmemente ao euro, apesar de estar fortemente a favor da unidade europeia. Minha preocupação com o euro guardava em parte relação com o fato de que cada país renunciara à liberdade de sua política monetária e dos ajustes na taxa de câmbio, que ajudaram enormemente a países em dificuldade no passado e evitou a necessidade de uma desestabilização massiva de vidas humanas nos frenéticos esforços por estabilizar os mercados financeiros.
Essa liberdade monetária poderia ser permitida mesmo com uma integração política e fiscal (como tem os estados nos EUA), mas a pressa em inaugurar uma casa que estava em construção acabou resultando numa receita desastrosa. Obrigou-se a incorporar à maravilhosa ideia de uma Europa democrática unida um precário programa de incoerente fusão financeira. Reordenar a zona euro suporia muitos problemas, mas as questões difíceis devem ser discutidas de maneira inteligente, ao invés de permitir uma Europa à deriva em meios aos ventos financeiros, alimentada por um pensamento de mentalidade estreita com um terrível histórico.
O processo tem que começar com certa restrição imediata do poder sem oposição das agências classificadoras de emitir mandatos unilaterais. Estas agências são difíceis de disciplinar mesmo com seu péssimo histórico, mas a voz bem refletida dos governos legítimos pode supor uma grande diferença para a confiança financeira enquanto se elaboram soluções, sobretudo se as instituições financeiras internacionais prestarem seu apoio. Deter a marginalização da tradição democrática na Europa envolve uma urgência que é difícil de exagerar. A democracia europeia é importante para a Europa...e para o mundo.
(*) Professor na Universidade de Harvard, prêmio Nobel de Economia em 1998.
Tradução: Katarina Peixoto
É preciso separar duas questões diferenciadas. A primeira se refere ao lugar das prioridades democráticas, incluindo o que Walter Bagehot e John Stuart Mill consideravam a necessidade do “governo por meio da discussão”. Suponhamos que aceitemos que os poderosos chefes das finanças possuem uma compreensão realista do que é preciso fazer. Com isso se fortaleceria o argumento favorável a prestar atenção em suas vozes em um diálogo democrático. Mas isso não é o mesmo que deixar às instituições financeiras internacionais e às agências de classificação de risco o poder universal de mandar sobre governos eleitos democraticamente. Em segundo lugar, é difícil ver que os sacrifícios que os comandantes financeiros vêm exigindo dos países em situação precária vão garantir a viabilidade destes países e a continuidade do euro dentro de um modelo sem reformar o setor financeiro e um conjunto de membros sem mudanças dentro do clube do euro.
O diagnóstico dos problemas econômicos por parte das agências de qualificação não é a voz da verdade como pretendem. Vale a pena lembrar que o histórico dessas agências nas instituições de certificação financeira e de negócios antes da crise econômica de 2008 era tal que o Congresso dos EUA debateu seriamente se deviam ser processadas. Dado que grande parte da Europa encontra-se agora empenhada em conseguir uma rápida redução do déficit público mediante a redução drástica do gasto público, é fundamental examinar com realismo que possíveis repercussões poderiam ter essas medidas políticas, tanto no caso da população quanto no da geração de receitas públicas por meio do crescimento econômico.
A alta moral de “sacrifício” tem um efeito embriagante. Esta é a filosofia do corpete “correto”. “Se a senhora se sente muito cômoda com ele, então certamente precisa de um tamanho menor”. No entanto, se as exigências de adequação financeira se vinculam de maneira demasiadamente mecânica aos cortes imediatos, o resultado pode ser o de matar a galinha dos ovos de ouro do crescimento econômico. Essa preocupação se aplica a uma série de países, desde a Inglaterra até a Grécia. A comunidade da estratégia do “sangue, suor e lágrimas” de redução do déficit outorga uma aparente plausibilidade ao que está sendo imposto aos países mais precários como Grécia ou Portugal. Também faz com que seja mais difícil ter uma voz política unida na Europa que possa fazer frente ao pânico gerado nos mercados financeiros.
Além de uma visão mais política, há necessidade de um pensamento econômico mais claro. A tendência a ignorar a importância do crescimento econômico na geração de receitas públicas deveria ser um assunto importante de análise. A sólida conexão entre crescimento econômico e receitas públicas é uma coisa observada em muitos países, como Índia, China, Estados Unidos e Brasil. Também aqui se tiram lições da história. A grande dívida pública de muitos países ao término da Segunda Guerra Mundial provocou uma enorme ansiedade, mas o gravame diminuiu rapidamente graças a um rápido crescimento econômico. Do mesmo modo, o enorme déficit que o presidente Clinton enfrentou quando assumiu seu cargo em 1992 se dissipou durante sua presidência, em grande medida graças à ajuda de um rápido crescimento econômico.
O temor de uma ameaça à democracia não se aplica, com certeza, a Inglaterra, já que estas medidas políticas foram escolhidas por um governo investido pelo poder das eleições democráticas. Apesar de que o desenvolvimento de uma estratégia não revelada no momento das eleições possa ser razão para uma reflexão, este é o tipo de liberdade que um sistema democrático permite aos que saem vencedores nas eleições. Mas com isso não se elimina a necessidade de uma maior discussão pública, mesmo na Inglaterra. Também existe a necessidade de reconhecer de que modo as políticas restritivas resultantes da eleição na Inglaterra parecem dar verossimilhança às medidas ainda mais drásticas impostas a Grécia.
Como os países do euro se meteram nesta enrascada? A rara singularidade de ir na direção de uma moeda única sem uma maior integração política e econômica sem dúvida contribuiu para isso, ainda mais considerando as transgressões financeiras que sem dúvida cometeram no passado países como Grécia ou Portugal (inclusive depois da importante advertência de Mario Monti de que uma cultura de “excessiva deferência” na União Europeia permitiu que essas transgressões ocorressem sem controle). É preciso reconhecer imensamente o governo grego – e Yorgos Papandreu, o primeiro ministro, em particular -0 que está fazendo o que pode apesar da resistência política, mas a vontade aflita de Atenas de cumprir certos termos não elimina a necessidade de os europeus estudarem a razoabilidade desses termos – e os tempos – que estão sendo impostos a Grécia.
Não é nenhum consolo para mim lembrar que me opus firmemente ao euro, apesar de estar fortemente a favor da unidade europeia. Minha preocupação com o euro guardava em parte relação com o fato de que cada país renunciara à liberdade de sua política monetária e dos ajustes na taxa de câmbio, que ajudaram enormemente a países em dificuldade no passado e evitou a necessidade de uma desestabilização massiva de vidas humanas nos frenéticos esforços por estabilizar os mercados financeiros.
Essa liberdade monetária poderia ser permitida mesmo com uma integração política e fiscal (como tem os estados nos EUA), mas a pressa em inaugurar uma casa que estava em construção acabou resultando numa receita desastrosa. Obrigou-se a incorporar à maravilhosa ideia de uma Europa democrática unida um precário programa de incoerente fusão financeira. Reordenar a zona euro suporia muitos problemas, mas as questões difíceis devem ser discutidas de maneira inteligente, ao invés de permitir uma Europa à deriva em meios aos ventos financeiros, alimentada por um pensamento de mentalidade estreita com um terrível histórico.
O processo tem que começar com certa restrição imediata do poder sem oposição das agências classificadoras de emitir mandatos unilaterais. Estas agências são difíceis de disciplinar mesmo com seu péssimo histórico, mas a voz bem refletida dos governos legítimos pode supor uma grande diferença para a confiança financeira enquanto se elaboram soluções, sobretudo se as instituições financeiras internacionais prestarem seu apoio. Deter a marginalização da tradição democrática na Europa envolve uma urgência que é difícil de exagerar. A democracia europeia é importante para a Europa...e para o mundo.
(*) Professor na Universidade de Harvard, prêmio Nobel de Economia em 1998.
Tradução: Katarina Peixoto
Fonte: http://www.cartamaior.com/
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Nem a ortodoxia confia mais nas suas
criaturas
Saul Leblon
A longa agonia do arcabouço ideológico neoliberal registrou mais um espasmo pedagógico.
Na terça-feira (5) governantes e autoridades financeiras da União Européia rangeram e rugiram diante da decisão da agencia de risco Moody's, que reduziu a classificação dos títulos da dívida portuguesa para a categoria ‘junk’ (lixo).
Lisboa acaba de obter um socorro de 78 bilhões de euros, em três anos, em troca de um pacote de ajuste que o próprio primeiro-ministro Pedro Passos Coelho, direitista assumido, admite ser um gigantesco contrato de recessão com o futuro. A exemplo do que faz a Grécia, a auto-imolação lusa inclui demissões, cortes de gastos em áreas essenciais, aumento de impostos e privatização, inclusive da tevê pública portuguesa.
Inútil. O veredito da Moody’s baseia-se na constatação de que o sacrifício não será suficiente porque não é viável.
A sentença coloca sob suspeição e risco todo o esforço na mesma direção implementado pela troika --Banco Central Europeu, Comissão Europeia e o FMI-- para evitar o desmonte financeiro da UE, trincado verticalmente pelo pré-calote da Grécia, a quebra da Islândia, o descrédito crescente na solvência das dívidas soberanas da Espanha, Itália, Bélgica etc.
As interações estruturais nessa engrenagem avariada não tardaram a dar razão ao pânico desencadeado pelo rebaixamento da dívida portuguesa.
Vinte e quatro horas após o disparo da Moody’s, ações dos bancos espanhóis, que detém mais de 50% da dívida externa portuguesa, desabaram.
O efeito contágio atingiu também a dívida soberana da Espanha obrigando Madri a elevar os juros pagos aos seus credores ao nível mais alto dos últimos três meses e jurar de pés juntos: ‘Nãos somos Portugal; não somos a Grécia.
O rastilho derrubou as bolsas de Milão, Frankfurt, Paris, Londres, Atenas e Dublin na quarta-feira, deixando claro o abraço de afogados que tais ‘imprevistos’ desencadeiam. E continuarão a desencadear.
Mas o episódio português ilustra, sobretudo, os paradoxos típicos dos crepúsculos históricos. À falta de novos protagonistas --e de novos projetos--, criaturas e criadores do capítulo agonizante se desentendem nos seus próprios termos.
É assim que se deve interpretar a reação contrariada da dama de ferro prussiana, a chanceler alemã Ângela Merkel, diante da decisão da Moody’s.
“É importante que a troika não permita que lhe retirem a capacidade de avaliação”, disse Merkel referindo-se à estratégia definida pelo Banco Central Europeu, pela Comissão Europeia e pelo FMI para os resgates de países em dificuldades financeiras, casos da Grécia e de Portugal.
O que Ângela Merkel está exigindo, no fundo, é que os entes sagrados do neoliberalismo devolvam aos Estados –portanto à soberania da política-- o poder de comandar o destino da sociedade e da economia.
Bem mais enfático – a refletir a sua extração à esquerda da chanceler - o diretor da Agência das Nações Unidas para o Comércio Mundial e o Desenvolvimento (UNCTAD), Heiner Flassbeck, ex-secretário de Estado das Finanças alemão, disparou: “As agências de rating deviam limitar-se a avaliar empresas, não deveriam avaliar Estados”. Thomas Straubhaar, presidente do Instituto de Economia Mundial, de Hamburgo, foi lapidar: “A política foi monopolizada nas mãos de um punhado de institutos de avaliação”.
Nada como uma crise após a outra para iluminar as distorções da história.
No auge da glória neoliberal, nos anos 80/90 e até meados de 2000, as agencias de risco figuravam como uma espécie de mensageiro divino.
Investidas de poderes para emitir julgamentos sumários quanto a salvação ou o sacrifício das criaturas históricas, determinavam a sorte e os azares de bancos, empresas, governos e Nações. Direta ou indiretamente, todos eram instados a vergar suas vontades ao implacável torniquete indutor das avaliações de risco.
Uma espécie de ectoplasma da autorregulação num tempo em que tudo o que exalasse a soberania política ou planejamento público era picado e salgado na sarjeta do anacronismo obscurantista, as agências de risco reinavam incontestáveis nesse tempo.
Estavam acima da lei e da ordem; da urna e da Constituição. Acima da própria democracia.
Sobretudo a santíssima trindade representada pela Standard & Poor's, a Moody's e a Fitch – que determinavam, e ainda detém, 90% do poder de consagrar o que presta e o que não presta no universo da economia mundial— expressava o próprio espírito dos mercados, avessos a qualquer outro princípio ou ética que não a mobilidade irrestrita dos capitais.
Na mídia nativa, vanguardeira das boas causas do ramo, colunistas da gema ortodoxa vociferavam –ainda o fazem , com m,enor audiência, é certo-- contra afrontas do governo Lula aos princípios desse poder ubíquo.
O argumento final irrespondível como irrespondíveis são as sentenças divinas, invariavelmente brandia a ameaça de uma punição no ‘rating’, a tábua sagrada de classificação do ‘risco–país’ das ditas agências.
Erigiu-se assim um círculo de ferro formado pela supremacia dos mercados financeiros desregulados, as agencias de risco e os centuriões vigilantes da mídia, associados à malta de consultores genuflexos.
Uma espécie de poder mundial opaco, mas contundente, vigiava e punia. À semelhança do panóptico de Foulcaut cuidava de assegurar que instituições, governos, empresas, mas também partidos —inclusive os de esquerda— se auto-vigiassem renunciando às transgressões ao credo neoliberal, um processo ao mesmo tempo repressivo e auto-adestrável.
Uma instituição de cooperação internacional, ou um banco privado, ou ainda um fundo de investimento, jamais poderiam –e ainda não podem-- investir num país ou num projeto público ou privado que não tivesse o ‘OK’ das agências de risco. Era o vigia oculto do panóptico a condicionar projetos e agendas desde o seu nascimento. Nenhuma surpresa assim que o debate estratégico e mesmo certos vocábulos –‘ projeto de desenvolvimento’, ‘socialismo’, ‘soberania’, estatização’ e, claro, ‘comunismo’ - tenham sido extirpados da vida política nesse período. Menos surpresa ainda que um vazio intelectual vertiginoso tenha se instaurado na vida interna dos partidos, inclusive do PT brasileiro ao longo desse ciclo e de maneira progressiva até cristalizar o silêncio atual.
O interdito desse poder supracional tinha força suficiente para humilhar presidentes eleitos, obrigando-os a picar e engolir programas de governo sancionados nas urnas, caso afrontassem dogmas sagrados dos mercados.
Essa capa de inviolabilidade sagrada começou a esgarçar-se antes da crise mundial.
Em dezembro de 2001, por exemplo, a Enron, a sétima maior empresa dos EUA, gigante do setor de energia fortemente beneficiada pela desregulação nessa área, ruiu escandalosamente. A soterrá-la, uma montanha de práticas fraudulentas, avaliações falsas de ativos, transações simuladas entre diretores e investidores e milhões de dólares embolsados por uma verdadeira gangue de experts do jogo financeiro leve, livre e solto.
Nenhuma agencia de risco advertiu nem antecipou aos investidores incautos que havia uma mazorca em curso dentro de uma das maiores empresas de energia do mundo.
Auditores ‘independentes’,como a Arthur Andersen, haviam aprovado as contas da Enron pouco antes do rombo de US$ 13 bilhões derrubar as bolsas em todo o planeta.
Assim, de tropeço em tropeço, omissão e omissão, a santíssima trindade das agencias veria sua aura perder brilho crescente até se tornar um buraco negro no auge da crise mundial, em 2007/2008/2009.
Quando o banco Lehamann Brothers quebrou em setembro de 2008, dando a largada para a maior crise do capitalismo desde 1929, seus papéis desfrutavam de avaliação AAA pelas criteriosas agencias de risco.
Um mês depois do Lehamann Brothers quebraria a Islândia.
Até quase a véspera do naufrágio, a mesma Moody’s que agora esfaqueia a direita portuguesa pelas costas –ou lhe desfecha ‘um murro no estômago’, no dizer do desabrido primeiro-ministro conservador, Pedro Passos Coelho - emprestava às finanças islandesas o carimbo de um triplo A: segurança, rentabilidade e solidez.
Na farra das subprimes nos EUA, papéis de créditos podres fatiados e ‘inseridos’ em pacotes de investimento tóxicos tiveram igualmente um lubrificante eficaz na chancela das agencias de risco, para escorregarem goela abaixo de fundos espertos e investidores crédulos mundo afora.
O resultado desse intercurso é conhecido, embora ainda inconcluso.
A colisão que se assiste agora entre agencias e a ortodoxia da troika do euro configura os esgares de uma época que teima em não terminar. Seu crepúsculo não será revertido com remendos para salvaguardar povos e nações dos riscos embutidos na ação das agencias de risco.
Num ato falho, como vimos acima, a chanceler alemã Ângela Merkel, cobrou que os entes criados pelos livres mercados não usurpem a prerrogativa da troika de ditar os rumos da sociedade.
Devolver à política a soberania das decisões sobre a liberdade humana e o destino do desenvolvimento, porém, não é algo que se possa fazer de forma compartimentada e estanque.
O que a chanceler não parece entender, porque não pode ou não quer, é que a mesma prerrogativa vale para a sociedade grega, por exemplo, 75% dela contrária ao esmagamento ortodoxo que a troika afrontada agora pela Moody’s quer impor ao país, com o apoio de uma Parlamento-zumbi, a contrapelo da praça Sintagma. É ali, a exemplo de outras praças e ruas do mundo, que a multidão revitaliza o único poder capaz de se opor à ditadura dos mercado, das agencias e do dinheiro: a democracia participativa.
Na terça-feira (5) governantes e autoridades financeiras da União Européia rangeram e rugiram diante da decisão da agencia de risco Moody's, que reduziu a classificação dos títulos da dívida portuguesa para a categoria ‘junk’ (lixo).
Lisboa acaba de obter um socorro de 78 bilhões de euros, em três anos, em troca de um pacote de ajuste que o próprio primeiro-ministro Pedro Passos Coelho, direitista assumido, admite ser um gigantesco contrato de recessão com o futuro. A exemplo do que faz a Grécia, a auto-imolação lusa inclui demissões, cortes de gastos em áreas essenciais, aumento de impostos e privatização, inclusive da tevê pública portuguesa.
Inútil. O veredito da Moody’s baseia-se na constatação de que o sacrifício não será suficiente porque não é viável.
A sentença coloca sob suspeição e risco todo o esforço na mesma direção implementado pela troika --Banco Central Europeu, Comissão Europeia e o FMI-- para evitar o desmonte financeiro da UE, trincado verticalmente pelo pré-calote da Grécia, a quebra da Islândia, o descrédito crescente na solvência das dívidas soberanas da Espanha, Itália, Bélgica etc.
As interações estruturais nessa engrenagem avariada não tardaram a dar razão ao pânico desencadeado pelo rebaixamento da dívida portuguesa.
Vinte e quatro horas após o disparo da Moody’s, ações dos bancos espanhóis, que detém mais de 50% da dívida externa portuguesa, desabaram.
O efeito contágio atingiu também a dívida soberana da Espanha obrigando Madri a elevar os juros pagos aos seus credores ao nível mais alto dos últimos três meses e jurar de pés juntos: ‘Nãos somos Portugal; não somos a Grécia.
O rastilho derrubou as bolsas de Milão, Frankfurt, Paris, Londres, Atenas e Dublin na quarta-feira, deixando claro o abraço de afogados que tais ‘imprevistos’ desencadeiam. E continuarão a desencadear.
Mas o episódio português ilustra, sobretudo, os paradoxos típicos dos crepúsculos históricos. À falta de novos protagonistas --e de novos projetos--, criaturas e criadores do capítulo agonizante se desentendem nos seus próprios termos.
É assim que se deve interpretar a reação contrariada da dama de ferro prussiana, a chanceler alemã Ângela Merkel, diante da decisão da Moody’s.
“É importante que a troika não permita que lhe retirem a capacidade de avaliação”, disse Merkel referindo-se à estratégia definida pelo Banco Central Europeu, pela Comissão Europeia e pelo FMI para os resgates de países em dificuldades financeiras, casos da Grécia e de Portugal.
O que Ângela Merkel está exigindo, no fundo, é que os entes sagrados do neoliberalismo devolvam aos Estados –portanto à soberania da política-- o poder de comandar o destino da sociedade e da economia.
Bem mais enfático – a refletir a sua extração à esquerda da chanceler - o diretor da Agência das Nações Unidas para o Comércio Mundial e o Desenvolvimento (UNCTAD), Heiner Flassbeck, ex-secretário de Estado das Finanças alemão, disparou: “As agências de rating deviam limitar-se a avaliar empresas, não deveriam avaliar Estados”. Thomas Straubhaar, presidente do Instituto de Economia Mundial, de Hamburgo, foi lapidar: “A política foi monopolizada nas mãos de um punhado de institutos de avaliação”.
Nada como uma crise após a outra para iluminar as distorções da história.
No auge da glória neoliberal, nos anos 80/90 e até meados de 2000, as agencias de risco figuravam como uma espécie de mensageiro divino.
Investidas de poderes para emitir julgamentos sumários quanto a salvação ou o sacrifício das criaturas históricas, determinavam a sorte e os azares de bancos, empresas, governos e Nações. Direta ou indiretamente, todos eram instados a vergar suas vontades ao implacável torniquete indutor das avaliações de risco.
Uma espécie de ectoplasma da autorregulação num tempo em que tudo o que exalasse a soberania política ou planejamento público era picado e salgado na sarjeta do anacronismo obscurantista, as agências de risco reinavam incontestáveis nesse tempo.
Estavam acima da lei e da ordem; da urna e da Constituição. Acima da própria democracia.
Sobretudo a santíssima trindade representada pela Standard & Poor's, a Moody's e a Fitch – que determinavam, e ainda detém, 90% do poder de consagrar o que presta e o que não presta no universo da economia mundial— expressava o próprio espírito dos mercados, avessos a qualquer outro princípio ou ética que não a mobilidade irrestrita dos capitais.
Na mídia nativa, vanguardeira das boas causas do ramo, colunistas da gema ortodoxa vociferavam –ainda o fazem , com m,enor audiência, é certo-- contra afrontas do governo Lula aos princípios desse poder ubíquo.
O argumento final irrespondível como irrespondíveis são as sentenças divinas, invariavelmente brandia a ameaça de uma punição no ‘rating’, a tábua sagrada de classificação do ‘risco–país’ das ditas agências.
Erigiu-se assim um círculo de ferro formado pela supremacia dos mercados financeiros desregulados, as agencias de risco e os centuriões vigilantes da mídia, associados à malta de consultores genuflexos.
Uma espécie de poder mundial opaco, mas contundente, vigiava e punia. À semelhança do panóptico de Foulcaut cuidava de assegurar que instituições, governos, empresas, mas também partidos —inclusive os de esquerda— se auto-vigiassem renunciando às transgressões ao credo neoliberal, um processo ao mesmo tempo repressivo e auto-adestrável.
Uma instituição de cooperação internacional, ou um banco privado, ou ainda um fundo de investimento, jamais poderiam –e ainda não podem-- investir num país ou num projeto público ou privado que não tivesse o ‘OK’ das agências de risco. Era o vigia oculto do panóptico a condicionar projetos e agendas desde o seu nascimento. Nenhuma surpresa assim que o debate estratégico e mesmo certos vocábulos –‘ projeto de desenvolvimento’, ‘socialismo’, ‘soberania’, estatização’ e, claro, ‘comunismo’ - tenham sido extirpados da vida política nesse período. Menos surpresa ainda que um vazio intelectual vertiginoso tenha se instaurado na vida interna dos partidos, inclusive do PT brasileiro ao longo desse ciclo e de maneira progressiva até cristalizar o silêncio atual.
O interdito desse poder supracional tinha força suficiente para humilhar presidentes eleitos, obrigando-os a picar e engolir programas de governo sancionados nas urnas, caso afrontassem dogmas sagrados dos mercados.
Essa capa de inviolabilidade sagrada começou a esgarçar-se antes da crise mundial.
Em dezembro de 2001, por exemplo, a Enron, a sétima maior empresa dos EUA, gigante do setor de energia fortemente beneficiada pela desregulação nessa área, ruiu escandalosamente. A soterrá-la, uma montanha de práticas fraudulentas, avaliações falsas de ativos, transações simuladas entre diretores e investidores e milhões de dólares embolsados por uma verdadeira gangue de experts do jogo financeiro leve, livre e solto.
Nenhuma agencia de risco advertiu nem antecipou aos investidores incautos que havia uma mazorca em curso dentro de uma das maiores empresas de energia do mundo.
Auditores ‘independentes’,como a Arthur Andersen, haviam aprovado as contas da Enron pouco antes do rombo de US$ 13 bilhões derrubar as bolsas em todo o planeta.
Assim, de tropeço em tropeço, omissão e omissão, a santíssima trindade das agencias veria sua aura perder brilho crescente até se tornar um buraco negro no auge da crise mundial, em 2007/2008/2009.
Quando o banco Lehamann Brothers quebrou em setembro de 2008, dando a largada para a maior crise do capitalismo desde 1929, seus papéis desfrutavam de avaliação AAA pelas criteriosas agencias de risco.
Um mês depois do Lehamann Brothers quebraria a Islândia.
Até quase a véspera do naufrágio, a mesma Moody’s que agora esfaqueia a direita portuguesa pelas costas –ou lhe desfecha ‘um murro no estômago’, no dizer do desabrido primeiro-ministro conservador, Pedro Passos Coelho - emprestava às finanças islandesas o carimbo de um triplo A: segurança, rentabilidade e solidez.
Na farra das subprimes nos EUA, papéis de créditos podres fatiados e ‘inseridos’ em pacotes de investimento tóxicos tiveram igualmente um lubrificante eficaz na chancela das agencias de risco, para escorregarem goela abaixo de fundos espertos e investidores crédulos mundo afora.
O resultado desse intercurso é conhecido, embora ainda inconcluso.
A colisão que se assiste agora entre agencias e a ortodoxia da troika do euro configura os esgares de uma época que teima em não terminar. Seu crepúsculo não será revertido com remendos para salvaguardar povos e nações dos riscos embutidos na ação das agencias de risco.
Num ato falho, como vimos acima, a chanceler alemã Ângela Merkel, cobrou que os entes criados pelos livres mercados não usurpem a prerrogativa da troika de ditar os rumos da sociedade.
Devolver à política a soberania das decisões sobre a liberdade humana e o destino do desenvolvimento, porém, não é algo que se possa fazer de forma compartimentada e estanque.
O que a chanceler não parece entender, porque não pode ou não quer, é que a mesma prerrogativa vale para a sociedade grega, por exemplo, 75% dela contrária ao esmagamento ortodoxo que a troika afrontada agora pela Moody’s quer impor ao país, com o apoio de uma Parlamento-zumbi, a contrapelo da praça Sintagma. É ali, a exemplo de outras praças e ruas do mundo, que a multidão revitaliza o único poder capaz de se opor à ditadura dos mercado, das agencias e do dinheiro: a democracia participativa.
Fonte: http://www.cartamaior.com/
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