O desalento da presidente
Mauro Santayana
Ao falar, ontem, a emissoras do Paraná, a Presidente Dilma Roussef foi sincera e humana: há muitas coisas no governo que a entristecem. Pode estar certa a chefe de Estado que os brasileiros em sua imensa maioria comungam do mesmo desalento. Os cidadãos entendem que o ato de governar é difícil, e que reclama habilidade e paciência, mas não aceitam - salvo os interessados na instabilidade política – as pressões que se fazem à presidente. Depois de ouvir um correligionário irado, que se queixava do tratamento privilegiado a um aliado do governo, Juscelino gastou meia hora tranqüilizando-o. Quando o reclamante saiu, desabafou-se com seu chefe da Casa Civil, Vítor Nunes Leal:
- Aqui, na Presidência, suporto insolência que não agüentaria, se fosse simples prefeito de Diamantina.
Ele não foi prefeito de Diamantina, mas, os que o conheceram prefeito de Belo Horizonte e governador de Minas, se lembram de que ele era rigoroso com seus subordinados, e sabia cobrar as tarefas com energia.
Podemos entender as dificuldades da presidente e não podemos negar-lhe solidariedade e apoio. Não lhe serve de consolo, mas de estímulo, saber que os governantes dos principais países do mundo não se sentem tampouco em plena felicidade nestes últimos meses e anos. Estamos em um daqueles momentos históricos em que a ruptura se anuncia, mas pede líderes sensatos, capazes de criar instrumentos políticos hábeis para vencer a conjuntura perigosa.
Não é seguro que a História se repita, embora os seus movimentos de impaciência sempre se pareçam. O grande fermento das mudanças é a informação, que amplia o entendimento dos homens e suscita idéias novas, nas artes, na filosofia e na política. Isso explica que o Renascimento tenha sido contemporâneo da imprensa, e o Iluminismo, sua continuidade, haja trazido ebulição intelectual que não só deflagraria a Revolução Francesa, mas também estabeleceria os fundamentos científicos da tecnologia contemporânea.
A química de Lavoisier abriu a imensa perspectiva da produção de sucedâneos das matérias naturais e sem ela seria impensável a nanotecnologia, entre outras conquistas da ciência de hoje. Mas o excepcional cientista deixou-se seduzir pela corrupção, ao participar de uma empresa concessionária da cobrança de impostos, que lesou as finanças revolucionárias, e foi guilhotinado. Não são raros os casos de corrupção de homens geniais.
O que está ocorrendo em algumas áreas do governo felizmente não chega a anunciar horas tão trágicas como as vividas na França de há 220 anos – mas incomoda principalmente os que têm muito a elogiar na política econômica e social dos últimos oito anos e seis meses. Não se pode perder uma experiência que reduziu drasticamente a desigualdade e promoveu o desenvolvimento do país, de forma tão marcante, em conseqüência dessa promiscuidade entre setores do governo e do parlamento com empreendedores privados.
Um dos mais audaciosos criminosos dos anos 70, o assaltante Lúcio Flávio, ficou famoso por uma sentença óbvia, ao explicar por que não se envolvia com policiais: polícia é polícia, bandido é bandido. A máxima – reduzida a crueza de sua origem e circunstância – pode ser ampliada: governo é governo, empresas privadas são empresas privadas. A realidade – aqui e em todos os países ocidentais, registre-se – mostra que já não há fronteiras nítidas entre a administração pública e os grandes negócios. Os pequenos empresários se candidatam ao poder municipal, e começam a crescer fazendo negócios com a prefeitura. Em seguida se elegem para os parlamentos estaduais e para o Congresso – onde ampliam sua participação nos recursos públicos: mediante suas próprias empresas, ou se associando a grupos nacionais e internacionais. Em alguns casos, preferem ser apenas intermediários. São lobistas privilegiados, com acesso a todos os níveis de poder.
Estamos chegando aos limites da paciência dos povos. Nos Estados Unidos, Obama não consegue taxar os ricos em favor dos pobres, porque a maioria dos congressistas representa ali os grandes interesses financeiros e industriais, entre eles os dos fabricantes de armas. Na Europa, para salvar o dinheiro dos grandes bancos, os estados nacionais estão indo à falência. A razão é simples: são os ricos que financiam as eleições e a eles os governos prestam obediência.
É interessante relembrar que, na França de 1789, o povo foi às ruas e derrubou a Bastilha em favor de um banqueiro que, na administração das finanças nacionais, corroídas pela ladroagem dos nobres, defendia reformas moralizadoras. Necker teve a lucidez que falta aos banqueiros de hoje – e, por isso mesmo, não perdeu a cabeça naquelas jornadas sangrentas.
A presidente está diante de arriscada oportunidade: a de iniciar o processo de saneamento da administração do Estado. Os observadores sensatos contam com sua paciência diante da protérvia e sua firmeza estratégica. É certo que enfrentará inimigos poderosos, internos e externos, mas, se assim agir, a maioria do povo brasileiro estará ao seu lado, como esteve nas eleições do ano passado.
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A perda de confiança na ordem atual
Leonardo Boff(*)
Na perspectiva das grandes maiorias da humanidade, a atual ordem é uma ordem na desordem, produzida e mantida por aquelas forças e países que se beneficiam dela, aumentando seu poder e seus ganhos. Essa desordem deriva do fato de que a globalização econômica não deu origem a uma globalização política. Não há nenhuma instância ou força que controle a voracidade da globalização econômica. Joseph Stiglitz e Paul Krugman, dois prêmios Nobel em economia, criticam o Presidente Obama por não ter imposto freios aos ladrões de Wall Street e da City, ao invés de se ter rendido a eles. Depois de terem provocado a crise, ainda foram beneficiados com inversões bilionários de dinheiro público. Voltaram, airosos, ao sistema de especulação financeira.
Estes excepcionais economistas são ótimos na análise; mas, mudos na apresentação de saídas à atual crise. Talvez, como insinuam, por estarem convencidos de que a solução da economia não esteja na economia, mas no ‘refazimento’ das relações sociais destruídas pela economia de mercado, especialmente, a especulativa. Esta é sem compaixão e desprovida de qualquer projeto de mundo, de sociedade e de política. Seu propósito é acumular maximamente, apropriando-se de bens comuns vitais como água, sementes e solos e destroçado economias nacionais.
Para os especuladores, também no Brasil, o dinheiro serve para produzir mais dinheiro e não para produzir mais bens. Aqui o Governo tem que pagar 150 bilhões de reais anuais pelos empréstimos tomados, enquanto repassa apenas cerca de 60 bilhões para os projetos sociais. Esta disparidade resulta eticamente perversa, consequência do tipo de sociedade a qual nos incorporamos, sociedade essa que colocou, como eixo estruturador central, a economia, que de tudo faz mercadoria até da vida.
Não são poucos que sustentam a tese de que estamos num momento dramático de decomposição dos laços sociais. Alain Touraine fala até de fase pós-social ao invés de pós-industrial.
Esta decomposição social se revela por polarizações ou por lógicas opostas: a lógica do capital produtivo cerca de 60 trilhões de dólares/ano e a do capital especulativo, cerca de 600 trilhões de dólares sob a égide do “greed is good” (a cobiça é boa). A lógica dos que defendem a maior lucratividade possível e a dos que lutam pelos direitos da vida, da humanidade e da Terra. A lógica do individualismo que destrói a “casa comum”, aumentando o número dos que não querem mais conviver e a lógica da solidariedade social a partir dos mais vulneráveis. A lógica das elites que fazem as mudanças intrassistêmicas e se apropriam dos lucros e a lógica dos assalariados, ameaçados de desemprego e sem capacidade de intervenção. A lógica da aceleração do crescimento material (o PAC) e a dos limites de cada ecossistema e da própria Terra.
Vigora uma desconfiança generalizada de que deste sistema não poderá vir nada de bom para a humanidade. Estamos indo de mal a pior em todos os itens da vida e da natureza. O futuro depende do cabedal de confiança que os povos depositam em suas capacidades e nas possibilidades da realidade. E esta confiança está minguando dia a dia.
Estamos nos confrontando com esse dilema: ou deixamos as coisas correrem assim como estão e então nos afundaremos numa crise abissal ou então nos empenharemos na gestação de uma nova vida social, capaz de sustentar um outro tipo de civilização. Os vínculos sociais novos não se derivarão nem da técnica nem da política, descoladas da natureza e de uma relação de sinergia com a Terra. Nascerão de um consenso mínimo entre os humanos, a ser ainda construído, ao redor do reconhecimento e do respeito dos direitos da vida, de cada sujeito, da humanidade e da Terra, tida como Gaia e nossa Mãe comum. A essa nova vida social devem servir a técnica, a política, as instituições e os valores do passado. Sobre isso venho pensando e escrevendo já pelo menos há vinte anos. Mas é voz perdida no deserto. “Clamei e salvei a minha alma” (clamavi et salvavi animam meam), diria desolado Marx. Mas importa continuar. O improvável é ainda possível.
Estes excepcionais economistas são ótimos na análise; mas, mudos na apresentação de saídas à atual crise. Talvez, como insinuam, por estarem convencidos de que a solução da economia não esteja na economia, mas no ‘refazimento’ das relações sociais destruídas pela economia de mercado, especialmente, a especulativa. Esta é sem compaixão e desprovida de qualquer projeto de mundo, de sociedade e de política. Seu propósito é acumular maximamente, apropriando-se de bens comuns vitais como água, sementes e solos e destroçado economias nacionais.
Para os especuladores, também no Brasil, o dinheiro serve para produzir mais dinheiro e não para produzir mais bens. Aqui o Governo tem que pagar 150 bilhões de reais anuais pelos empréstimos tomados, enquanto repassa apenas cerca de 60 bilhões para os projetos sociais. Esta disparidade resulta eticamente perversa, consequência do tipo de sociedade a qual nos incorporamos, sociedade essa que colocou, como eixo estruturador central, a economia, que de tudo faz mercadoria até da vida.
Não são poucos que sustentam a tese de que estamos num momento dramático de decomposição dos laços sociais. Alain Touraine fala até de fase pós-social ao invés de pós-industrial.
Esta decomposição social se revela por polarizações ou por lógicas opostas: a lógica do capital produtivo cerca de 60 trilhões de dólares/ano e a do capital especulativo, cerca de 600 trilhões de dólares sob a égide do “greed is good” (a cobiça é boa). A lógica dos que defendem a maior lucratividade possível e a dos que lutam pelos direitos da vida, da humanidade e da Terra. A lógica do individualismo que destrói a “casa comum”, aumentando o número dos que não querem mais conviver e a lógica da solidariedade social a partir dos mais vulneráveis. A lógica das elites que fazem as mudanças intrassistêmicas e se apropriam dos lucros e a lógica dos assalariados, ameaçados de desemprego e sem capacidade de intervenção. A lógica da aceleração do crescimento material (o PAC) e a dos limites de cada ecossistema e da própria Terra.
Vigora uma desconfiança generalizada de que deste sistema não poderá vir nada de bom para a humanidade. Estamos indo de mal a pior em todos os itens da vida e da natureza. O futuro depende do cabedal de confiança que os povos depositam em suas capacidades e nas possibilidades da realidade. E esta confiança está minguando dia a dia.
Estamos nos confrontando com esse dilema: ou deixamos as coisas correrem assim como estão e então nos afundaremos numa crise abissal ou então nos empenharemos na gestação de uma nova vida social, capaz de sustentar um outro tipo de civilização. Os vínculos sociais novos não se derivarão nem da técnica nem da política, descoladas da natureza e de uma relação de sinergia com a Terra. Nascerão de um consenso mínimo entre os humanos, a ser ainda construído, ao redor do reconhecimento e do respeito dos direitos da vida, de cada sujeito, da humanidade e da Terra, tida como Gaia e nossa Mãe comum. A essa nova vida social devem servir a técnica, a política, as instituições e os valores do passado. Sobre isso venho pensando e escrevendo já pelo menos há vinte anos. Mas é voz perdida no deserto. “Clamei e salvei a minha alma” (clamavi et salvavi animam meam), diria desolado Marx. Mas importa continuar. O improvável é ainda possível.
(*)Leonardo Boff é teólogo e escritor.
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