As desventuras e a alegria de viajar pela América Latina
Emir Sader
Ir do Brasil a El Salvador, com troca de avião em Lima. Ir à Republica Dominicana via Miami. Ir a La Paz, a capital do país, desde qualquer lugar, tendo que trocar de avião em Santa Cruz de la Sierra (mesmo com a companhia estatal, a Boa).
Nem pense em ir a lugares como Quito o Montevideo, porque é necessário fazer uma enorme quantidade de malabarismos de aeroportos, trocas de aviões, trânsito – com as esperas, os cancelamentos e os atrasos respectivos e os correspondentes riscos multiplicados de perda das malas, se você faz a bobagem, da qual pode se arrepender por vários meses, de despachar as malas. Quem viaja constantemente deve reservas vários dias ao ano das suas vidas para esperar malas, que podem tardar vem mais de uma hora ou não chegar nunca, para nossa decepção quando as malas vão rareando, as pessoas pegando as suas e indo embora, até que ficamos solitários e desolados diante da esteira vazia, que começa a parar, indicando que se deve dirigir ao balcão de reclamações de bagagens perdidas.
Começa ai um longo périplo – que pode demorar alguns meses – de preenchimento de formulários, de escolha de qual das dezenas de malas de formatos muito parecidos, se assemelha a infeliz mala perdida – qual cachorrinho levado pela carrocinha. Incalculável numero de telefonemas, em que se dá, cada vez, várias vezes os nosso dados pessoais, o itinerário a data da viagem, as vezes o lugar em que se viajou, e a senha mágica que nos deram, frequentemente composto de intermináveis números e letras, em que não fica claro quando é o numero zero ou a letra O, quando as letras são maiúsculas ou minúsculas. Mas se termina tendo familiaridade com aquela maldita senha, que suposta nos levara ao reencontra feliz com a pobre e abandonada mala perdida. Se começa cada vez tudo de novo, como se estivesse começando o procedimento e quando se acredita que se individualiza alguém que já nos atendeu varias vezes, nos relatam que a tal persona, que era o passe para relação mais personalizada, está de férias ou já não trabalha naquele setor ou naquela companhia.
Por alguma razão incompreensível alguns países pedem certificado de vacina que, uma vez conseguido, nem nos pedem. Já tive que adiar uma viagem por 24 horas enquanto se conseguia uma autorização especial para eu viajar sem o certificado – ele vale por 10 anos, mas tem que a vacina tem que ser tomada 40 dias antes – e quando finalmente cheguei esbaforido no dia seguinte ao previsto, correndo diretamente para fazer a conferência para um auditório cheio de estudantes muito ansiosos, nem me pediram o certificado. Tive vergonha e pena de dizer isso aos que tinham se desdobrado durante aquelas 24 horas para que eu pudesse finalmente entrar no país.
Outra vez eu só soube quando ia retornar ao Brasil que deveria ter tirado o certificado no Brasil antes de ir. Na véspera de retornar fui ao consulado brasileiro e um simpático funcionário me deu a chave: um centro de saúde em que se pagava para ter o certificado e a funcionaria dava o certificado com os devidos 40 dias de antecipação, data evidentemente anterior à do meu ingresso no país, data em que eu não estava naquele país. Mas funcionou tudo conforme os requerimentos.
Mas a América Latina piorou no chamam de tráfego aéreo – que a gente só vê na hora de subir e de descer, com aquelas demoras anunciadas simpaticamente pelos pilotos, dizendo que somos o numero 18 na fila para decolar ou que temos que ficar dando voltas em torno do Galeão por um tempo indeterminado, devido ao “congestionamento do tráfego aéreo”.
Piorou porque a Iberia – uma verdadeira devoradora de companhias aéreas – comprou a Viasa, até ali uma boa companhia aérea venezuelana –e a quebrou. A Venezuela ficou sem companhia aérea nacional, agora o governo de Hugo Chavez, com grande esforço está construindo, a duras penas, uma. O mesmo a Iberia fez com a Aerolineas Argentinas, comprada pela insaciável cia. espanhola, que a devolveu quebrara para o governo argentino, que teve que estatizá-la e a mantem viva, com grande dificuldades, viva.
Mas tudo isso vale a pena, pela beleza e pelas extraordinárias experiências politicas que vários países do continente estão vivendo, tanto em processos de democratização econômica e social interna, como de integração – na contramão das companhias aéreas e enfrentando a resistência férrea delas. Como cruzar a cordilheira do Andes indo do Rio para Lima, com bolsões de neve e, de repente, despontar, majestoso, o lago Titicaca, uma aparição milagrosa de um oásis interminável no meio daquela secura de terras aparentemente inexpugnáveis. E passar por Lima, mesmo se por algumas – inevitáveis 5 horas – de esperar para seguir a San Salvador – com a consciência de que, mesmo se vai tomar posse somente no fim deste mês, o Peru vai deixar de ser governado por Fujimori, por Toledo, por Alan Garcia. Vai ter um governante com profundas raízes peruanas, que se propõe a fazer com que a economia do país continue a crescer, mas distribuindo renda, ao contrário do que aconteceu nas duas ultimas décadas, em que o pais foi pilhado por empresas extrativistas das suas riquezas minerais, com o beneplácito de governos que nem sequer esboçaram fazer com que um dos povos mais pobres do continente pudessem participar minimamente com migalhas dessa expansão.
Tudo vale a pena na América Latina, porque a nossa alma não é pequena.
Nem pense em ir a lugares como Quito o Montevideo, porque é necessário fazer uma enorme quantidade de malabarismos de aeroportos, trocas de aviões, trânsito – com as esperas, os cancelamentos e os atrasos respectivos e os correspondentes riscos multiplicados de perda das malas, se você faz a bobagem, da qual pode se arrepender por vários meses, de despachar as malas. Quem viaja constantemente deve reservas vários dias ao ano das suas vidas para esperar malas, que podem tardar vem mais de uma hora ou não chegar nunca, para nossa decepção quando as malas vão rareando, as pessoas pegando as suas e indo embora, até que ficamos solitários e desolados diante da esteira vazia, que começa a parar, indicando que se deve dirigir ao balcão de reclamações de bagagens perdidas.
Começa ai um longo périplo – que pode demorar alguns meses – de preenchimento de formulários, de escolha de qual das dezenas de malas de formatos muito parecidos, se assemelha a infeliz mala perdida – qual cachorrinho levado pela carrocinha. Incalculável numero de telefonemas, em que se dá, cada vez, várias vezes os nosso dados pessoais, o itinerário a data da viagem, as vezes o lugar em que se viajou, e a senha mágica que nos deram, frequentemente composto de intermináveis números e letras, em que não fica claro quando é o numero zero ou a letra O, quando as letras são maiúsculas ou minúsculas. Mas se termina tendo familiaridade com aquela maldita senha, que suposta nos levara ao reencontra feliz com a pobre e abandonada mala perdida. Se começa cada vez tudo de novo, como se estivesse começando o procedimento e quando se acredita que se individualiza alguém que já nos atendeu varias vezes, nos relatam que a tal persona, que era o passe para relação mais personalizada, está de férias ou já não trabalha naquele setor ou naquela companhia.
Por alguma razão incompreensível alguns países pedem certificado de vacina que, uma vez conseguido, nem nos pedem. Já tive que adiar uma viagem por 24 horas enquanto se conseguia uma autorização especial para eu viajar sem o certificado – ele vale por 10 anos, mas tem que a vacina tem que ser tomada 40 dias antes – e quando finalmente cheguei esbaforido no dia seguinte ao previsto, correndo diretamente para fazer a conferência para um auditório cheio de estudantes muito ansiosos, nem me pediram o certificado. Tive vergonha e pena de dizer isso aos que tinham se desdobrado durante aquelas 24 horas para que eu pudesse finalmente entrar no país.
Outra vez eu só soube quando ia retornar ao Brasil que deveria ter tirado o certificado no Brasil antes de ir. Na véspera de retornar fui ao consulado brasileiro e um simpático funcionário me deu a chave: um centro de saúde em que se pagava para ter o certificado e a funcionaria dava o certificado com os devidos 40 dias de antecipação, data evidentemente anterior à do meu ingresso no país, data em que eu não estava naquele país. Mas funcionou tudo conforme os requerimentos.
Mas a América Latina piorou no chamam de tráfego aéreo – que a gente só vê na hora de subir e de descer, com aquelas demoras anunciadas simpaticamente pelos pilotos, dizendo que somos o numero 18 na fila para decolar ou que temos que ficar dando voltas em torno do Galeão por um tempo indeterminado, devido ao “congestionamento do tráfego aéreo”.
Piorou porque a Iberia – uma verdadeira devoradora de companhias aéreas – comprou a Viasa, até ali uma boa companhia aérea venezuelana –e a quebrou. A Venezuela ficou sem companhia aérea nacional, agora o governo de Hugo Chavez, com grande esforço está construindo, a duras penas, uma. O mesmo a Iberia fez com a Aerolineas Argentinas, comprada pela insaciável cia. espanhola, que a devolveu quebrara para o governo argentino, que teve que estatizá-la e a mantem viva, com grande dificuldades, viva.
Mas tudo isso vale a pena, pela beleza e pelas extraordinárias experiências politicas que vários países do continente estão vivendo, tanto em processos de democratização econômica e social interna, como de integração – na contramão das companhias aéreas e enfrentando a resistência férrea delas. Como cruzar a cordilheira do Andes indo do Rio para Lima, com bolsões de neve e, de repente, despontar, majestoso, o lago Titicaca, uma aparição milagrosa de um oásis interminável no meio daquela secura de terras aparentemente inexpugnáveis. E passar por Lima, mesmo se por algumas – inevitáveis 5 horas – de esperar para seguir a San Salvador – com a consciência de que, mesmo se vai tomar posse somente no fim deste mês, o Peru vai deixar de ser governado por Fujimori, por Toledo, por Alan Garcia. Vai ter um governante com profundas raízes peruanas, que se propõe a fazer com que a economia do país continue a crescer, mas distribuindo renda, ao contrário do que aconteceu nas duas ultimas décadas, em que o pais foi pilhado por empresas extrativistas das suas riquezas minerais, com o beneplácito de governos que nem sequer esboçaram fazer com que um dos povos mais pobres do continente pudessem participar minimamente com migalhas dessa expansão.
Tudo vale a pena na América Latina, porque a nossa alma não é pequena.
-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x
A "ideologia parlamentarista" na América Latina
Amílcar Salas Oroño (*)
I
A desorientação e frustração de uma boa parte das forças opositoras a respeito de certos governos progressistas latino-americanos apelam, com maior ou menor sofisticação argumentativa, para um recurso de contrapeso aos processos em curso: insistir em uma “parlamentarização da política”. Insiste-se na necessidade de “parlamentarizar” as decisões políticas, deixar que o Parlamento seja a instância que reorganize o poder da administração. Neste sentido, deve-se entender, por exemplo, as posturas dos setores opositores a Chávez para que fosse o Parlamento que assumisse o governo durante sua convalescência em Cuba; ou então a exagerada repercussão que teve o fato de Dilma não revogar as emendas orçamentárias, que os meios de comunicação conservadores brasileiros se encarregaram de propagandear como um triunfo parlamentar e um “alívio” democrático.
A reivindicação desses setores opositores se reduz a uma posição simples: frente ao “autoritarismo” dos presidentes, é “o tempo do Parlamento”. Revitalizar o Parlamento como instituição é o que permitiria estabelecer um maior “equilíbrio” no jogo político, construindo uma cultura política mais “plural e republicana”. Assim, esta contemporânea “ideologia parlamentarista” aparece no horizonte das elites e das forças opositoras que as expressam – e dos meios de comunicação que articulam sua gramática – como aquele desvio possível que lhes permite superar sua crise de identidade e projeto.
II
Na história latino-americana, o Parlamento tem sido uma figura institucional de variadas conotações: na América hispânica, superposto com as tradições ibéricas dos Cabildos, foi um capítulo repetido nos transplantes constitucionais locais e reorganizou, junto com o exército e outras sociedades de interesses privados, a composição das diferentes facções políticas das elites nacionais. Assim, durante grande parte do século XX, foi o objeto mais imediato da permanente interferência dos militares na política, com sua clausura ou esvaziamento funcional. No Brasil, o mais parlamentar de todos os países latino-americanos, há bastante tempo que o Congresso Nacional se converteu no espaço dos interesses corporativos e setoriais das elites. Não é casualidade que boa parte da historiografia brasileira tem lidado com o binômio Presidente modernizador/Parlamento conservador há décadas.
No entanto, desde um ponto de vista geral, a consolidação do Parlamento como instituição política deve ser situada no marco da adaptação cultural do liberalismo em nossas terras: a assimilação de alguns de seus principais símbolos e sua incorporação a nossas práticas cotidianas possibilitou, também, ir construindo em nossas representações coletivas a mediação da necessidade de que a dominação – exercida pelos donos do poder – contemple mínimos parâmetros de legitimidade enquanto representação plural. Aí está sua genuína força retórica, como fundamento da divisão de poderes. Neste sentido, a relevância do Parlamento resultou – historicamente – numa instância social necessária, construtora da própria noção de sociedade; o caminho de nossos progressos como sociedades também tem que debitar sua parte às implicações da existência do Parlamento.
Mas a questão problemática é que hoje há uma exaltação do Parlamento como instância definidora, com outras significações. No atual contexto latino-americano sua evocação faz parte de uma encruzilhada diferente. A “construção” de sua relevância tem um objetivo preciso: deslegitimar a autoridade dos presidentes. Isso ocorreu na Venezuela de um modo extremo logo depois da última eleição do ano passado. Teve efeitos práticos, como em Honduras, que terminou colocando um parlamentar – Micheletti- na chefia do governo após o golpe. E ocorre inclusive no Brasil, onde o Parlamento se erige como um permanente fator de instabilidade para o presidente: ocorreu com Lula em 2005 e voltou a acontecer com Dilma que, por essa mesma pressão, já teve que substituir vários ministros.
III
Políticos, intelectuais e todo tipo de mediadores sócio-culturais apostam em ativar essa “ideologia parlamentarista” que “parlamentarize” toda a esfera política, tentando anular a atuação de outros setores. Tudo deve ser debatido no Parlamento, âmbito emblemático de uma potencial “harmonia social”. As ações do governo devem “passar” pelo Parlamento e quanto mais “discutidas” sejam as leis mais democráticas elas serão. Isso ocorreu com a polêmica Lei de Retenções na Argentina, em 2008, que desencadeou um extenso conflito entre o governo e as patronais ruralistas, e é um hábito no Brasil, ou seja, colocar exageradamente como um problema na esfera pública que sejam respeitados os mecanismos da tramitação legislativa. No fundo, trata-se de recriar uma imagem alternativa a dos presidentes atuais. Não é casualidade que essa “exaltação” do Parlamento apareça em uma etapa da história latino-americana na qual diferentes poderes executivos conseguiram estabelecer agendas públicas em conflito com interesses setoriais específicos. O lugar no qual estes interesses encontram refúgio político é precisamente o parlamento: a “ideologia parlamentarista” não é outra coisa que a fundamentação de suas ações, tentando converter o que é uma necessidade particular em um interesse universal.
Estava faltando um elemento nas ideologias das elites para contrapor os tempos atuais; uma matriz, um símbolo, que fosse suficientemente tradicional e, ao mesmo tempo, renovado. Estava claro que, sem um rodeio desse tipo, os interesses particulares das lideranças corporativas/empresariais – De Narváez, Piñera, Noboa, entre outros – não podem prosperar. O Parlamento já não como poder do Estado, mas sim como alteridade do governo presente e reorganizador eventual do governo futuro. Neste sentido, a atuação do vice-presidente argentino tem sido emblemática: longe de identificar-se com o Poder Executivo, seu papel se reduziu a ser um primus inter pares no jogo político do Congresso.
IV
De um lado, a denominada “desmedida” dos presidentes; de outro, a “medida” e o “equilíbrio” que traz consigo a ingerência do Parlamento da dinâmica política. Por trás do simbolismo deste equilíbrio há reacomodações mais estruturais, próprias da dialética social (capitalista). Entre os porta-vozes das “bondades” parlamentares, há os mais ou menos comprometidos com a reprodução da acumulação do capital, mas todos, a sua maneira, terminam funcionando como facilitadores para a recriação ficcional e ideológica de uma possível “harmonia” dos interesses sociais.
Para dizê-lo em termos mais clássicos: os setores dominantes devem, por todos meios, frear essa onda de presidentes que não têm feito outra coisa que iluminar conflitos internos do sistema social, a maioria destes ainda sem resolver.
Como não podem “decretar” o fim dos conflitos, agora se empenham em construir imaginários sociais que os desarticulem, que os dissolvam. Sabe-se que as ilusões desconflituadas, as evasões, as fugas são todos elementos inerentes de construção social da realidade no capitalismo.
Neste sentido, o “debate parlamentar” é a imagem reflexa do “equilíbrio” social. Além disso, a história deixa suas lições: esse debate se dá mal no capitalismo periférico – e os capitalistas de todo o mundo que fizeram/fazem negócios em seus territórios – quando os governos decidem iluminar e verbalizar os termos e elementos dos conflitos sociais, despertando atores, reconstruindo sujeitos coletivos e estabelecendo limites para as apropriações. Daí a necessidade de “parlamentarizar” a ordem social, voltar a um suposto estado de “harmonia natural”, tarefa que não é simples e que requer mediadores socioculturais que preparem o terreno e estejam cotidianamente construindo os moldes das linguagens circulantes. Por essa razão, o papel dos meios de comunicação resulta imprescindível para a etapa.
(*) Instituto de Estudos da América Latina e Caribe (Universidade de Buenos Aires)
Tradução: Marco Aurélio Weissheimer
A desorientação e frustração de uma boa parte das forças opositoras a respeito de certos governos progressistas latino-americanos apelam, com maior ou menor sofisticação argumentativa, para um recurso de contrapeso aos processos em curso: insistir em uma “parlamentarização da política”. Insiste-se na necessidade de “parlamentarizar” as decisões políticas, deixar que o Parlamento seja a instância que reorganize o poder da administração. Neste sentido, deve-se entender, por exemplo, as posturas dos setores opositores a Chávez para que fosse o Parlamento que assumisse o governo durante sua convalescência em Cuba; ou então a exagerada repercussão que teve o fato de Dilma não revogar as emendas orçamentárias, que os meios de comunicação conservadores brasileiros se encarregaram de propagandear como um triunfo parlamentar e um “alívio” democrático.
A reivindicação desses setores opositores se reduz a uma posição simples: frente ao “autoritarismo” dos presidentes, é “o tempo do Parlamento”. Revitalizar o Parlamento como instituição é o que permitiria estabelecer um maior “equilíbrio” no jogo político, construindo uma cultura política mais “plural e republicana”. Assim, esta contemporânea “ideologia parlamentarista” aparece no horizonte das elites e das forças opositoras que as expressam – e dos meios de comunicação que articulam sua gramática – como aquele desvio possível que lhes permite superar sua crise de identidade e projeto.
II
Na história latino-americana, o Parlamento tem sido uma figura institucional de variadas conotações: na América hispânica, superposto com as tradições ibéricas dos Cabildos, foi um capítulo repetido nos transplantes constitucionais locais e reorganizou, junto com o exército e outras sociedades de interesses privados, a composição das diferentes facções políticas das elites nacionais. Assim, durante grande parte do século XX, foi o objeto mais imediato da permanente interferência dos militares na política, com sua clausura ou esvaziamento funcional. No Brasil, o mais parlamentar de todos os países latino-americanos, há bastante tempo que o Congresso Nacional se converteu no espaço dos interesses corporativos e setoriais das elites. Não é casualidade que boa parte da historiografia brasileira tem lidado com o binômio Presidente modernizador/Parlamento conservador há décadas.
No entanto, desde um ponto de vista geral, a consolidação do Parlamento como instituição política deve ser situada no marco da adaptação cultural do liberalismo em nossas terras: a assimilação de alguns de seus principais símbolos e sua incorporação a nossas práticas cotidianas possibilitou, também, ir construindo em nossas representações coletivas a mediação da necessidade de que a dominação – exercida pelos donos do poder – contemple mínimos parâmetros de legitimidade enquanto representação plural. Aí está sua genuína força retórica, como fundamento da divisão de poderes. Neste sentido, a relevância do Parlamento resultou – historicamente – numa instância social necessária, construtora da própria noção de sociedade; o caminho de nossos progressos como sociedades também tem que debitar sua parte às implicações da existência do Parlamento.
Mas a questão problemática é que hoje há uma exaltação do Parlamento como instância definidora, com outras significações. No atual contexto latino-americano sua evocação faz parte de uma encruzilhada diferente. A “construção” de sua relevância tem um objetivo preciso: deslegitimar a autoridade dos presidentes. Isso ocorreu na Venezuela de um modo extremo logo depois da última eleição do ano passado. Teve efeitos práticos, como em Honduras, que terminou colocando um parlamentar – Micheletti- na chefia do governo após o golpe. E ocorre inclusive no Brasil, onde o Parlamento se erige como um permanente fator de instabilidade para o presidente: ocorreu com Lula em 2005 e voltou a acontecer com Dilma que, por essa mesma pressão, já teve que substituir vários ministros.
III
Políticos, intelectuais e todo tipo de mediadores sócio-culturais apostam em ativar essa “ideologia parlamentarista” que “parlamentarize” toda a esfera política, tentando anular a atuação de outros setores. Tudo deve ser debatido no Parlamento, âmbito emblemático de uma potencial “harmonia social”. As ações do governo devem “passar” pelo Parlamento e quanto mais “discutidas” sejam as leis mais democráticas elas serão. Isso ocorreu com a polêmica Lei de Retenções na Argentina, em 2008, que desencadeou um extenso conflito entre o governo e as patronais ruralistas, e é um hábito no Brasil, ou seja, colocar exageradamente como um problema na esfera pública que sejam respeitados os mecanismos da tramitação legislativa. No fundo, trata-se de recriar uma imagem alternativa a dos presidentes atuais. Não é casualidade que essa “exaltação” do Parlamento apareça em uma etapa da história latino-americana na qual diferentes poderes executivos conseguiram estabelecer agendas públicas em conflito com interesses setoriais específicos. O lugar no qual estes interesses encontram refúgio político é precisamente o parlamento: a “ideologia parlamentarista” não é outra coisa que a fundamentação de suas ações, tentando converter o que é uma necessidade particular em um interesse universal.
Estava faltando um elemento nas ideologias das elites para contrapor os tempos atuais; uma matriz, um símbolo, que fosse suficientemente tradicional e, ao mesmo tempo, renovado. Estava claro que, sem um rodeio desse tipo, os interesses particulares das lideranças corporativas/empresariais – De Narváez, Piñera, Noboa, entre outros – não podem prosperar. O Parlamento já não como poder do Estado, mas sim como alteridade do governo presente e reorganizador eventual do governo futuro. Neste sentido, a atuação do vice-presidente argentino tem sido emblemática: longe de identificar-se com o Poder Executivo, seu papel se reduziu a ser um primus inter pares no jogo político do Congresso.
IV
De um lado, a denominada “desmedida” dos presidentes; de outro, a “medida” e o “equilíbrio” que traz consigo a ingerência do Parlamento da dinâmica política. Por trás do simbolismo deste equilíbrio há reacomodações mais estruturais, próprias da dialética social (capitalista). Entre os porta-vozes das “bondades” parlamentares, há os mais ou menos comprometidos com a reprodução da acumulação do capital, mas todos, a sua maneira, terminam funcionando como facilitadores para a recriação ficcional e ideológica de uma possível “harmonia” dos interesses sociais.
Para dizê-lo em termos mais clássicos: os setores dominantes devem, por todos meios, frear essa onda de presidentes que não têm feito outra coisa que iluminar conflitos internos do sistema social, a maioria destes ainda sem resolver.
Como não podem “decretar” o fim dos conflitos, agora se empenham em construir imaginários sociais que os desarticulem, que os dissolvam. Sabe-se que as ilusões desconflituadas, as evasões, as fugas são todos elementos inerentes de construção social da realidade no capitalismo.
Neste sentido, o “debate parlamentar” é a imagem reflexa do “equilíbrio” social. Além disso, a história deixa suas lições: esse debate se dá mal no capitalismo periférico – e os capitalistas de todo o mundo que fizeram/fazem negócios em seus territórios – quando os governos decidem iluminar e verbalizar os termos e elementos dos conflitos sociais, despertando atores, reconstruindo sujeitos coletivos e estabelecendo limites para as apropriações. Daí a necessidade de “parlamentarizar” a ordem social, voltar a um suposto estado de “harmonia natural”, tarefa que não é simples e que requer mediadores socioculturais que preparem o terreno e estejam cotidianamente construindo os moldes das linguagens circulantes. Por essa razão, o papel dos meios de comunicação resulta imprescindível para a etapa.
(*) Instituto de Estudos da América Latina e Caribe (Universidade de Buenos Aires)
Tradução: Marco Aurélio Weissheimer
Nenhum comentário:
Postar um comentário