Luciano Martins Costa, no Observatório da Imprensa
A imprensa coloca em debate, ainda que de forma esparsa e desorganizada, a questão da violência difusa que parece contaminar a sociedade brasileira. Emparelhado aos eventos na Ucrânia e na Venezuela, o noticiário produz uma sensação de fim dos tempos, como se a própria humanidade estivesse em véspera de uma hecatombe.
Alguns analistas misturam esses contextos aos corriqueiros embates que se acentuam com a aproximação de eleições importantes. Discute-se a violência policial como fenômeno relacionado à ação dos Black Bloc, quando se sabe que a arbitrariedade ainda é parte da natureza das corporações de segurança pública – e a violência institucional não se realiza apenas na brutalidade do ato repressivo.
De modo geral, a imprensa enxerga apenas eventos com potencial para maior repercussão, em especial episódios em que a vítimas não são aquelas de costume, mas cidadãos brancos das classes de renda mais elevada. No caso dos incidentes ocorridos nas recentes manifestações, o destaque é para jornalistas agredidos e cerceados no exercício de suas funções.
Também é um ato de violência o descaso na apuração de crimes cujas vítimas não têm o respaldo do noticiário. Por exemplo, provavelmente o homem que foi massacrado num ponto de ônibus por supostos torcedores do São Paulo Futebol Clube vai apenas compor as estatísticas da violência associada às torcidas organizadas. Se não houver um interesse da imprensa, como aconteceu no caso do pedreiro Amarildo Dias de Souza, no Rio de Janeiro, nada será apurado.
Entre os textos selecionados para a radiografia da violência, destaque para a visão de um desembargador, publicada no Globo, segundo o qual as agressões a jornalistas e supostas tentativas de intimidação do Judiciário seriam aspectos de um plano de controle social por parte do Poder Executivo. Como se vê, o papel e a tela aceitam quase tudo, mas os responsáveis pela mediação das informações e opiniões demonstram uma tendência quase doentia, quase insana, de arrastar tudo para o palco eleitoral.
Essa predileção insensata contribui para a radicalização de posições e reduz as possibilidades de uma estratégia nacional contra a violência.
Ataque de nervos
Os jornais de terça-feira (25/2) voltam a elogiar a nova tática da polícia paulista no controle do vandalismo durante manifestações de rua: em lugar das balas de borracha e da profusão de bombas de efeito moral que não escolhem suas vítimas, entram em cena agentes especializados em lutas marciais. Viciada na espetacularização dos acontecimentos, a imprensa já batizou esses policiais de “tropa ninja”, e certamente as futuras imagens dos protestos não terão aquelas nuvens de fumaça, mas cenas de filmes de caratê.
Em torno do noticiário e das opiniões criteriosamente privilegiadas pela mídia tradicional vai sendo construída a ideia de que a sociedade brasileira, como um todo, está mergulhada na violência. Um clima de insanidade, que seria bem descrito no conceito da “desrazão” certa vez aventado pelo filósofo Michel Foucault, estaria se apossando da coletividade brasileira. Essa “desrazão” – espécie de insanidade cultural, não patológica – seria parte da modernidade, expressão extremada da sociedade do consumo e da superficialidade.
Entrariam na conta dessa insensatez tanto a violência dos criminosos que encontram no escudo de um time de futebol a razão para seus atos brutais quanto a sofreguidão com que adolescentes se aglomeram nos shopping centers para seus “rolezinhos”.
Há muitos aspectos dessa insanidade cultural presentes, por exemplo, nas concentrações de jovens desocupados em regiões abandonadas pelo poder público, mas essa “desrazão” também se manifesta na ação da imprensa, quando ela se mostra obcecada pelo efeito espetaculoso dos incidentes.
Os fatos de grande repercussão são quase sempre eventos isolados, que, embora se repitam com frequência preocupante, não representam o todo, mas apenas a parte da realidade que é alcançada pela mídia.
Na cultura do espetáculo, privilegia-se o efeito pirotécnico das ações e se deixa em plano secundário a compreensão de suas razões. O noticiário quer nos convencer de que o Brasil está convulsionado, mas é apenas a imprensa que parece à beira de um ataque de nervos.
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