Luciano Martins Costa, no Observatório da Imprensa
O programa Mais Médicos não sai do noticiário. Não por seus méritos ou pelo potencial de reduzir as diferenças na oferta de serviços de saúde no Brasil, mas pela exposição exagerada dos problemas na sua implantação.
Como toda ação de política pública, a iniciativa deveria ser avaliada pelo que faz e pelo que deixa de fazer. Para isso, o pressuposto da imprensa precisa ser baseado nos efeitos obtidos em prazo razoável, com os resultados contextualizados em relação às carências que o programa se propõe a atacar. No entanto, toda ênfase tem sido dada a ausências e atrasos na posse dos profissionais inscritos.
O que se vê diariamente, desde o anúncio do projeto, é um grande desequilíbrio nas escolhas dos editores, com a predominância de dados e informações negativas sobre o preenchimento das vagas abertas. Na quarta-feira (4/9), ao se deparar com o principal título da Folha de S. Paulo sobre o assunto – “Médicos questionam infraestrutura e exigências e abandonam programa” –, o leitor é levado a acreditar que ocorre uma debandada de profissionais. Mas a Folha não diz quantos médicos desistiram nos primeiros dias, qual a porcentagem deles em relação ao total de profissionais que aderiram, e outros detalhes que poderiam justificar o título.
Outra reportagem no mesmo jornal informa que os lugares para onde deverão ser enviados os médicos cubanos formam o pior cenário na geografia desigual do desenvolvimento humano no Brasil. Não seria por outra razão que o programa destinaria os profissionais cubanos para esses municípios, que, segundo aFolha, apresentam indicadores socioeconômicos inferiores aos da média nacional de treze anos atrás: ao contrário da maioria dos médicos brasileiros, os cubanos estão habituados a atuar em condições precárias, em países assolados por desastres ambientais e crises humanitárias.
Os médicos brasileiros, na maioria oriundos das camadas de renda mais alta da população, não se destacam pelo espírito de sacrifício. Na organização Médicos sem Fronteiras, por exemplo, o total de profissionais do Brasil em 2011 não passava de uma centena.
Os médicos cubanos, que são formados para a medicina preventiva e o atendimento básico, e educados para atuar em situações de extremo desconforto, formam o maior contingente do mundo de profissionais de saúde em ações humanitárias: são dezenas de milhares trabalhando nas mais severas e inseguras circunstâncias imagináveis.
Suspeita de boicote
Por essa razão, as escolhas dos editores dos principais jornais, ao destacar as ausências, desistências e reclamações dos primeiros profissionais brasileiros a ocupar os postos para os quais foram escalados, expõem de maneira escandalosa essa diferença entre eles e o perfil característico dos estrangeiros.
Veja-se, por exemplo, o caso de um cardiologista brasileiro entrevistado pelo Estado de S.Paulo: o especialista se inscreveu “sem notar” que o programa era destinado a clínicos gerais, foi destacado para a cidade de Santa Bárbara d’Oeste, no interior paulista, e saiu no primeiro dia, alegando que “falta tudo no sistema público”.
Observe-se que o doutor tem um consultório particular em Ribeirão Preto e atende também em Salvador, Bahia, por meio de convênio. Ele considera o salário do Mais Médicos, de R$ 10 mil reais por mês, “uma miséria”.
Não foi destacado para trabalhar numa favela ou numa aldeia da Amazônia, mas em Santa Bárbara, a apenas 138 km de São Paulo, cidade que foi colonizada por imigrantes dos Estados Unidos, tem um alto Índice de Desenvolvimento Humano e taxas reduzidas de violência.
O cardiologista jura que não se inscreveu para boicotar o programa. Apenas não leu direito as instruções.
Então, tá.
Na falta de números que autorizem a afirmar que o projeto é um fracasso, os jornais capricham nos títulos de dupla interpretação. Sem dados comparativos, o Estado de S.Paulo afirma: “Desistências continuam em diversos estados”. Na ausência de informações consistentes no texto interno, predomina a intenção do título, que é a de induzir no leitor a ideia de que o programa não se consolida.
O Globo, que aprecia trocadilhos e gracejos, aplica um título de gosto duvidoso usando o nome do programa: “Mais Médicos que faltam ao trabalho”.
Na contramão do senso comum, que colocou na pauta das manifestações de junho a emergência de ações na saúde pública, a imprensa dá a entender que torce contra o sucesso do plano. Insiste que o projeto foi feito atabalhoadamente, quando registros dos próprios jornais informam sobre reuniões de planejamento ocorridas anos atrás, inclusive com a participação de entidades dos profissionais de saúde.
O resultado pode ser um tiro pela culatra, com o efeito colateral de provocar maiores danos na imagem dos médicos brasileiros, que nas redes sociais ganharam um apelido tão genérico quanto injusto: são chamados de “coxinhas”, aqueles seres mimados que não toleram uma contrariedade.
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