13 setembro 2013

BONS EXEMPLOS

O sequestrado, o  papa e  a mídia


Mino Carta, na Revista CartaCapital



Não fiquei preocupado, não era mesmo o caso, mas a dramática aventura do jornalista italiano Domenico Quirico teve para mim o poder de convocar a célebre pulga capaz de desenvolver singular hábito de sugar orelhas. Enviado à Síria na tormenta pelo jornal La Stampa de Turim, de circulação nacional juntamente com o La Repubblica e o Corriere della Sera, há cinco meses Quirico foi sequestrado por uma das facções rebeldes.
O governo italiano empenhou-se de várias formas para conseguir a libertação, a qual somente se deu no domingo 8 passado. Quando, na segunda 9, o jornalista desembarcou em Roma de um avião fretado, foi recebido pela ministra das Relações Exteriores, Emma Bonino, e por colegas do mundo todo. Combalido, física e moralmente, após cinco meses passados em um cubículo fétido, alimentado por restos amanhecidos e cascas de queijo.

A mídia italiana cobriu o retorno do colega de forma exaustiva e generosa, e dedicou-se ao assunto nos dias seguintes, a retratar com precisão o protagonista da aventura, veterano repórter de guerra, citar seu jornal e abrir espaço para o próprio diretor de redação do La Stampa. A história me impressionou e logo perguntei aos meus atentos botões o que se daria no Brasil em circunstâncias semelhantes. Figuremos ousadamente a hipótese de que, digamos, César Tralli ou Mônica Bergamo fossem sequestrados, não sei se pelos rebeldes sírios, ou pelo PCC, ou pelo Comando Vermelho.
Que aconteceria? Creio, provável, que o governo se interessasse pelo assunto a ponto de entrar em ação para obter a libertação no mais breve tempo possível, sem deixar de manter, no decorrer das negociações, o mesmo sigilo que cercou aquelas a respeito do sequestro de Quirico. Mas, uma vez soltos Mônica ou César, como se portaria a mídia nativa? Os botões aventam a possibilidade de que os nomes dos sequestrados mereceriam rápida citação, e sem referência à empresa de comunicação onde trabalham, enquanto, está claro, Folha de S.Paulo ou Globo produziriam estardalhaços sem trégua. Ali, sim, O Globo não citaria a Folha, ou vice-versa, a depender da identidade do sequestrado.
Talvez, talvez. É comum que a mídia nativa, unida na mesma trincheira, ou melhor, no mesmo fortim, na hora, por exemplo, do golpe de 64, ou contra os governos Lula e Dilma, ou contra os “embargos infringentes” no processo do “mensalão”, negaceie na hora de nomear com todas as letras os naturais companheiros de jornada. Costuma ser o momento de dizer “reportagem de um jornal paulista”, ou “cobertura de uma emissora carioca”. Uma certeza tenho, absoluta: sequestrado por quem quer que seja e finalmente em liberdade, não faria jus a menção alguma. Sei, ou suponho saber, não correr risco de sequestro, parece-me ouvir, contudo, o silêncio retumbante a meu respeito, com a exceção da lembrança piedosa de alguns, poucos, bons amigos. Há até quem considero amigo e que, no instante azado, me ignoraria de bom grado.
Outro exemplo de como se dá a relação entre órgãos de imprensa em uma democracia madura vem ainda da Itália. O jornalista Eugenio Scalfari, dos mais importantes da península, fundador do La Repubblica e hoje nonagenário, dirigiu ao papa Francisco oito perguntas na qualidade de “não crente” por meio de dois editoriais. A pergunta-chave diz respeito à responsabilidade moral do ateu e do agnóstico aos olhos do crente. O pontífice não deixa de nos surpreender. Favoravelmente, pela parte que me toca. Na quarta 11 ele respondeu com uma carta no tom de quem fala com um amigo, e, à pergunta crucial, de forma lapidar e misericordiosa: quem não crê “deve obedecer à sua própria consciência”.

No fim da vida de cada um, Deus não fará diferença entre quem tem fé e quem não a tem. Esta singular correspondência é registrada e comentada largamente pela mídia, inclusive pelo Corriere della Sera, principal concorrente do La Repubblica.
Não tentarei abrir portas escancaradas. É sabido, porém, que os comportamentos midiáticos são indicativos do estágio democrático de um país. A julgar pelas reações do jornalismo italiano diante dessas histórias, é fácil entender que são próprias de uma democracia madura. De resto, na Itália os jornalistas jamais chamariam o patrão de colega. Ali patrão não pode ser diretor de redação.

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