Claudio Bernabucci, na Revista CartaCapital
Aos olhos do observador estrangeiro, a autocrítica da Globo em relação a seu apoio ao golpe de 64 e as reações que esta tem suscitado são surpreendentes sob vários pontos de vista.
As corresponsabilidades da família Marinho com a ditadura militar e sua cumplicidade não ocasional com as graves escolhas do regime – que, aliás, garantiu consistentes vantagens econômicas ao grupo – são consideradas há décadas fato histórico consolidado, seja nos ambientes democráticos internacionais, seja nos brasileiros. Então, minha primeira surpresa deriva do fato de que, no País onde o apreço pela história é tradicionalmente modesto, a admissão de culpas antigas venha do “algoz”, sem pressão das “vítimas”. Os protestos de rua seguramente geraram alarme no grupo, habituado a ouvir os humores do público, mas não me parecem suficientes para justificar a “novidade”. Quanto a partidos, sindicatos e intelectuais, ou seja, expressões substanciais da democracia moderna, permito-me observar que não veio deles nenhum pedido de retificação histórica dirigido à Globo. Muito pelo contrário, lembro a estupefaciente decisão do governo Lula de decretar três dias de luto nacional na ocasião da morte do patriarca Roberto Marinho, em 2003, como se ele fosse herói da pátria. Em minha visão um tanto provocativa, fica então a validez da inédita, porém inadequada, autocrítica como significativo precedente na política nacional.
Ao lado dessa conclusão, impossível não constatar a absoluta insuficiência da elaboração oferecida pelos vértices da Globo à sociedade brasileira: no comprido editorial – que dedica muito espaço a encontrar justificativas, em vez de articular com qualidade a reflexão autocrítica – faltam profundidade de pensamento e, mais ainda, deduções lógicas. Não quero estender-me nesse aspecto, que outros colegas tratarão nesta revista – estou certo – com maior competência do que eu. Só me interessa destacar que a autocrítica superficial presta-se à forte suspeita de ser – com razão ou sem ela – meramente instrumental: resposta contingente aos problemas do presente, mais do que autêntica catarse histórica. Em outros termos, à luz de minha apreciação anterior: a montanha pariu um ratinho.
Outro aspecto que muito me surpreendeu nesses dias foi a ausência atordoante de um debate nacional digno desse nome. Os principais jornais, com evidente embaraço, informaram telegraficamente os próprios leitores, como se o posicionamento da Globo não fosse notícia contundente. Observo que em outras democracias, consideradas “maduras”, uma notícia como essa seria seguramente objeto de imediatas declarações e entrevistas: jornalistas, políticos, sindicalistas e intelectuais competiriam na reflexão, apoiando ou expressando críticas sobre o controverso assunto. As primeiras páginas dos jornais seriam tomadas por não pouco tempo. Até agora, aqui não aconteceu nada disso: os partidos não tomaram posição e poucos intelectuais se manifestaram nas redes sociais. Ironia da sorte, os nostálgicos do Clube Militar resolveram denunciar a “covardia” da Globo em áspero comunicado de 4 de setembro, que define como “mentira deslavada” a revisão cosmética dos Marinho. É de se esperar que, além da verdade histórica, essa provocação dos militares contribua para animar o pífio debate. Em suma, parece-me que estamos assistindo a uma espécie de autocensura da classe dirigente nacional.
Ao lado do silêncio da esquerda tradicional, decepção não menor provocou-me nessas horas a reação descomposta de setores da esquerda radical. Observo que a declaração da Globo tem sido vivida por estes como oportunidade de nova guerrilha política, mais do que ocasião de reflexão crítica, porém contundente, contra a editora carioca (existiria amplo espaço e a satisfação seria garantida). Para esses senhores, que com suas iras funestas afastam-se sempre mais de qualquer diálogo construtivo com a sociedade, as controvérsias políticas se reduzem inevitavelmente a enfrentamento entre torcidas de futebol, daquelas que degeneram em pancadaria. Não se contribui dessa forma para a evolução da cultura política no País.
As contradições e os limites da Globo merecem ser denunciados com coerência, mas os democratas brasileiros não podem desconsiderar o fato de que o principal grupo de comunicação do País, a partir de posições explicitamente de direita, afirma que a democracia é valor absoluto. Avanço para a nossa democracia? Resta ver até onde vai a sinceridade global.
As corresponsabilidades da família Marinho com a ditadura militar e sua cumplicidade não ocasional com as graves escolhas do regime – que, aliás, garantiu consistentes vantagens econômicas ao grupo – são consideradas há décadas fato histórico consolidado, seja nos ambientes democráticos internacionais, seja nos brasileiros. Então, minha primeira surpresa deriva do fato de que, no País onde o apreço pela história é tradicionalmente modesto, a admissão de culpas antigas venha do “algoz”, sem pressão das “vítimas”. Os protestos de rua seguramente geraram alarme no grupo, habituado a ouvir os humores do público, mas não me parecem suficientes para justificar a “novidade”. Quanto a partidos, sindicatos e intelectuais, ou seja, expressões substanciais da democracia moderna, permito-me observar que não veio deles nenhum pedido de retificação histórica dirigido à Globo. Muito pelo contrário, lembro a estupefaciente decisão do governo Lula de decretar três dias de luto nacional na ocasião da morte do patriarca Roberto Marinho, em 2003, como se ele fosse herói da pátria. Em minha visão um tanto provocativa, fica então a validez da inédita, porém inadequada, autocrítica como significativo precedente na política nacional.
Ao lado dessa conclusão, impossível não constatar a absoluta insuficiência da elaboração oferecida pelos vértices da Globo à sociedade brasileira: no comprido editorial – que dedica muito espaço a encontrar justificativas, em vez de articular com qualidade a reflexão autocrítica – faltam profundidade de pensamento e, mais ainda, deduções lógicas. Não quero estender-me nesse aspecto, que outros colegas tratarão nesta revista – estou certo – com maior competência do que eu. Só me interessa destacar que a autocrítica superficial presta-se à forte suspeita de ser – com razão ou sem ela – meramente instrumental: resposta contingente aos problemas do presente, mais do que autêntica catarse histórica. Em outros termos, à luz de minha apreciação anterior: a montanha pariu um ratinho.
Outro aspecto que muito me surpreendeu nesses dias foi a ausência atordoante de um debate nacional digno desse nome. Os principais jornais, com evidente embaraço, informaram telegraficamente os próprios leitores, como se o posicionamento da Globo não fosse notícia contundente. Observo que em outras democracias, consideradas “maduras”, uma notícia como essa seria seguramente objeto de imediatas declarações e entrevistas: jornalistas, políticos, sindicalistas e intelectuais competiriam na reflexão, apoiando ou expressando críticas sobre o controverso assunto. As primeiras páginas dos jornais seriam tomadas por não pouco tempo. Até agora, aqui não aconteceu nada disso: os partidos não tomaram posição e poucos intelectuais se manifestaram nas redes sociais. Ironia da sorte, os nostálgicos do Clube Militar resolveram denunciar a “covardia” da Globo em áspero comunicado de 4 de setembro, que define como “mentira deslavada” a revisão cosmética dos Marinho. É de se esperar que, além da verdade histórica, essa provocação dos militares contribua para animar o pífio debate. Em suma, parece-me que estamos assistindo a uma espécie de autocensura da classe dirigente nacional.
Ao lado do silêncio da esquerda tradicional, decepção não menor provocou-me nessas horas a reação descomposta de setores da esquerda radical. Observo que a declaração da Globo tem sido vivida por estes como oportunidade de nova guerrilha política, mais do que ocasião de reflexão crítica, porém contundente, contra a editora carioca (existiria amplo espaço e a satisfação seria garantida). Para esses senhores, que com suas iras funestas afastam-se sempre mais de qualquer diálogo construtivo com a sociedade, as controvérsias políticas se reduzem inevitavelmente a enfrentamento entre torcidas de futebol, daquelas que degeneram em pancadaria. Não se contribui dessa forma para a evolução da cultura política no País.
As contradições e os limites da Globo merecem ser denunciados com coerência, mas os democratas brasileiros não podem desconsiderar o fato de que o principal grupo de comunicação do País, a partir de posições explicitamente de direita, afirma que a democracia é valor absoluto. Avanço para a nossa democracia? Resta ver até onde vai a sinceridade global.
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