12 setembro 2013

O SHOW TEM QUE CONTINUAR

Pressa não é argumento para Justiça

A decisão, hoje, no STF, consiste em saber se a mais alta corte do país irá, mais uma vez, negar um direito aos réus

Paulo Moreira Leite, em seu blogue
Nestes que podem ser os momentos derradeiros da ação penal 470, alega-se que a Justiça tem pressa e o julgamento deve acabar logo. Engano, amigos. Como se viu no 7 de setembro, quem tem pressa é a televisão, que precisa manter a audiência eletrizada e vender anúncios. 
Trazida para o tribunal em nome da transparência do julgamento, a TV serviu para criar ambiente de pressão sobre os ministros, num cenário fantasioso de mocinhos e bandidos.
 
Como nada é tão anti-televisivo como argumentos técnicos, em linguagem rebuscada e referências incompreensíveis fora do mundo dos iniciados, o show logo se torna cansativo, monótono – e insuportável. 
 
Bem-vindos à Justiça da vida real, meus caros. Comparada a uma novela, ela anda devagar, é cautelosa, demorada. 
 
Há argumentos favoráveis e contrários à transmissão de julgamentos ao vivo. Mas é criminoso confundir o tempo de uma com o da outra. 
 
É o atraso do atraso. 
 
Num caso e em outro, o tempo pode ser o bem e o mal. 
 
Desculpe o mau gosto de falar nisso, mas se um inquérito tão relevante como o propinoduto tucano, com denúncias que remontam a 1998, sequer chegou aos tribunais, a ação penal 470 está rápida demais, vamos combinar. 
 
Pelo ritmo do PSDB, o julgamento do PT só deveria começar em 2020. É só fazer as contas sobre ritmos e prazos do propinoduto. 
 
Quando parece possível pensar no final da Ação Penal 470, convém lembrar o início. 
 
Em 2005, Roberto Jefferson perdeu seu mandato no Congresso, cassado porque não conseguiu provar denúncias feitas da tribuna. 
 
Em seguida, José Dirceu foi cassado – em função das denúncias que Roberto Jefferson fez, mas não provou. 
 
Essa contradição absurda está no DNA de uma história que seria escrita nos oito anos seguintes. 
 
Uma denúncia que se auto-demonstra e jamais foi provada de forma objetiva pode terminar em penas mais longas do que casos de homicídio, sequestro seguido de morte e outras barbaridades contra a vida humana. 
 
As principais acusações contra os réus perderam sustentação. Não se provou a compra de votos no Congresso nem o desvio de dinheiro público. Acusações de desvio de um recurso do mercado publicitário conhecido como Bônus de Volume, que, viu-se no julgamento, muitos ministros sequer sabiam direito para que serve, revelaram-se risíveis. A Polícia Federal demonstrou que empréstimos para o PT denunciados como fraudulentos envolviam recursos legais recebidos por todos os partidos políticos, reconhecidos pela Justiça e avalizados pelo ministério público. Denúncias bombásticas de pagamento de propinas, que tanto impacto tiveram no show de TV, foram abandonadas -- sem o destaque devido para uma boa informação do público, claro -- por falta de credibilidade. 
 
A decisão, hoje, no STF, consiste em saber se a mais alta corte do país irá, mais uma vez, negar um direito aos réus, o recurso conhecido como embargo infringente.
 
A primeira negativa ocorreu há pouco mais de um ano. Em 2012, na deliberação em que se pedia o desmembramento do caso, os ministros negaram a 35 réus que não tinham mandato parlamentar o direito a um segundo julgamento na hipótese de condenação em primeira instância. 
 
Com isso, eles foram transformados em cidadãos de segunda classe. Todos os brasileiros, quando são julgados por um crime, têm direito a um segundo grau de jurisdição. Atenta às imperfeições da conduta humana, procura-se assegurar que as sentenças sejam produzidas da forma mais isenta possível, impedindo que um só juiz tenha a palavra final sobre os acusados. 
 
O segundo grau de jurisdição foi assegurado aos réus do mensalão PSDB-MG e deve ser assegurado aos acusados no DEM-DF. Mas foi negado aqui, com o argumento de que no caso dos acusados da ação penal 470 – só aqui! – era indispensável manter todo mundo junto. Assumiu-se que era preferível tomar uma decisão discriminatória em nome das conveniências do processo. Qual a conveniência? 
 
O tempo, a pressa, a TV, meus caros. 
 
O embargo infringente é um direito previsto em lei e que não foi revogado pela única instituição a quem cabe fazer isso, o Congresso. Já foi examinado, julgado e empregado várias vezes no STF. “Não foram derrogados”, disse o ministro Celso de Mello, decano do tribunal, em agosto de 2012, quando explicava porque deveriam ser encarados como “direito ordinário” pelos réus da ação penal 470. 
 
No esforço para exagerar as coisas, e levantar o fantasma da pressa, procura-se dizer que o embargo infringente equivale a um novo julgamento. Mentira.
Num julgamento em que os réus foram condenados por três ou quatro crimes, cabem embargos naqueles casos que dividiram o plenário, nos quais receberam um mínimo de quatro votos que reconheciam sua inocência naquela acusação específica. Nem todas as penas de José Dirceu, por exemplo, serão reexaminadas caso o direito ao embargado seja reconhecido. Apenas uma denúncia, sobre formação de quadrilha, em que ele foi declarado inocente por quatro votos, seria reexaminada pelos ministros. 
 
Grandes advogados, como Celso Antônio Bandeira de Mello, próximo de Lula, e Sergio Bermudes, tão próximo de Fernando Henrique Cardoso que cuidou de uma investigação de paternidade fora do casamento, estão de acordo com sua pertinência no caso. Até agora, os embargos foram aceitos ou rejeitados pelo Supremo, até aqui, conforme seu mérito, quando atendiam a regras explícitas previstas em lei. Até há pouco, quando estavam na iminência de serem usados pelos réus da ação penal 470, ninguém havia pensado em colocar qualquer objeção a seu fundamento. Com autoridade intelectual reconhecida pelo presidente da corte Joaquim Barbosa, o juiz Luiz Flávio Gomes esclarece que, em função disso, mesmo que se chegasse à conclusão de que os embargos perderam valor, o STF não poderia deixar de acolher o pedido dos réus, porque isso “ implicaria retrocesso nos direitos fundamentais do condenado.”
 
Em 2007, o próprio Joaquim Barbosa deu um voto em que não rejeitava os embargos em tese, mas se recusava concedê-los porque os requerentes não tinham o apoio de 4 votos dissidentes. Em 2012, Celso de Mello não só reafirmou a atualidade dos embargos, inclusive em direito “penal”, como também lembrou que, na fase de embargos, haveria um novo relator – que era uma forma de reabrir, mesmo parcialmente, a discussão da etapa inicial. 
 
Um ano depois, o problema não é a pressa. O que se tenta evitar é o debate sobre o conteúdo das condenações. Não dá para falar das alegações de cada um dos requerentes, mas é possível falar de pontos gerais. 
 
Depois de um relator tão envolvido com a acusação a ponto de manter em segredo inquéritos que poderiam beneficiar os acusados, a simples substituição de Joaquim Barbosa iria abrir a possibilidade de uma visão mais equilibrada e isenta dos pontos que estiverem em debate. Não é pouca mudança. Mas não é só. 
 
Considerando que eram 37 réus, indivíduos com sua liberdade pessoal colocada em questão, talvez seja até errado dizer que o julgamento tenha sido longo. Estamos falando em menos de duas sessões por pessoa. Mas nem por isso é certo dizer que os réus tiveram direito a uma ampla defesa. Basta ler os votos e procurar, ali, respostas para diversas alegações dos advogados. Não há, muitas vezes. Memoriais apresentados durante o julgamento não foram respondidos. Acusado, falsamente, de ter recebido uma propina de R$ 400.000, em menos de 24 horas o publicitário Ramon Hollerbach demonstrou, num memorial detalhado, o caráter absurdo da denúncia. Nenhum dos diversos magistrados que se pronunciaram depois, quando o documento com esclarecimentos já fora entregue, fez referência a seu conteúdo. Ou não leram. Ou leram e não tiveram a consideração de responder. 
 
As regras seguidas na definição das penas só poderiam prejudicar os réus. Ao excluir do debate aqueles juízes que votaram pela inocência dos réus – como se isso fosse motivo para se tornarem menos legítimos –, definiram um viés que favorecia penas duras e longas, mesmo que não refletissem a opinião da maioria do STF. Depois de criar cidadãos de segunda classe, sem direito a um segundo julgamento, tivemos juízes de segunda classe, aqueles que, mesmo pertencendo a um mesmo tribunal, escolhidos pelos mesmos critérios, não puderam dar uma palavra final sobre o conjunto dos trabalhos.
 
O debate das últimas semanas, sobre embargos declaratórios, mais limitados, formais, quase, mostraram que nem todas as decisões se apoiam em terra firme. Há contradições, furos, incongruências. Para justificar sua posição em determinado debate, a ministra Rosa Weber chegou a dizer que não iria rever seu voto porque “os embargos declaratórios não eram meio adequado de se fazer justiça”, opinião que coloca a pergunta imediata de saber para que eles devem ser debatidos, então. Também se viu Luiz Roberto Barroso dizer que pensava de um jeito, mas votaria de outro, porque havia acabado de chegar ao STF e não se atrevia a questionar o trabalho de novos colegas. 
 
Longe de um show de TV, a fase de revisão é menos espetacular, sempre. Submete mocinhos e bandidos da fase anterior a um novo olhar e um novo exame, com mais realismo. Seria a situação mais natural do mundo, se não houvesse o desfile de vaidades, nem as ambições explícitas de poder que passeiam pelo tribunal. Mas é um trabalho que merece ser encarado, por mais difícil que possa parecer.
 
 
 
 
 

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