Vladimir Safatle, na Revista CartaCapital
Uma característica interessante dos liberais, em especial os latino-americanos, é sua imunidade absoluta a qualquer forma de autocrítica. Você encontrará esquerdistas em exercícios constantes de autocrítica. Não é difícil mapear as críticas da própria esquerda aos desvios autoritários das experiências comunistas, à insensibilidade contra certas questões ligadas às liberdades individuais, à forma-partido, ao raciocínio estratégico tacanho de grupos de esquerda no governo, entre tantos outros temas. Mas você praticamente não encontrará um liberal fazendo a crítica das experiências neoliberais fracassadas dos anos 1980 e 1990, da desregulamentação dos mercados financeiros ou do aumento da desigualdade social resultante de “choques de modernização”.
Não, meus amigos, um liberal entende a autocrítica como uma confissão de capitulação. Para alguns, a confissão do erro é sinal de força, mas não para ele. Por isso sua perspectiva é antipolítica por excelência. Pois, como a política, é a reflexão a partir de contextos. Como ela é a inflexão tensa entre princípios e análise de contexto, ela é uma dimensão da ação estruturalmente falível. O que faz da primeira virtude política a autocrítica, a desconfiança de si mesmo. Sartre dizia que a filosofia era a capacidade de pensar contra si mesmo. Na verdade, esta é também uma bela definição da política.
Digo isso porque ainda me espanto com certas reações de nossos liberais. Na quarta-feira 11, o Chile lembrou os 40 anos do golpe militar que derrubou Salvador Allende e jogou o país no mais profundo período de obscurantismo de sua história. Não apenas devido aos fartamente documentados crimes contra a humanidade, como as caravanas da morte e as sessões públicas de tortura no Estádio Nacional. Relembrou não apenas o êxodo provocado (mais de 150 mil chilenos seguiram a via do exílio), mas a tentativa de moldar o país de forma a eliminar tudo o que ele tinha de debate político e de mentalidade aberta.
No entanto, quem esperava haver atualmente certo consenso supraideológico a respeito da barbárie que o regime Pinochet representou, enganou-se. Nunca um liberal, que no fundo viu com alívio a queda da experiência socialista e libertária de Allende, aceitará que as ditaduras latino-americanas foram simplesmente brutalidades políticas que merecem o mais firme e inequívoco repúdio. Ao contrário, eles sempre virão com o cinismo de argumentos do tipo: “Veja bem, não gosto de regimes autoritários, mas é inegável que Pinochet modernizou a economia do país, criando um Chile dinâmico e moderno”.
No entanto, quem esperava haver atualmente certo consenso supraideológico a respeito da barbárie que o regime Pinochet representou, enganou-se. Nunca um liberal, que no fundo viu com alívio a queda da experiência socialista e libertária de Allende, aceitará que as ditaduras latino-americanas foram simplesmente brutalidades políticas que merecem o mais firme e inequívoco repúdio. Ao contrário, eles sempre virão com o cinismo de argumentos do tipo: “Veja bem, não gosto de regimes autoritários, mas é inegável que Pinochet modernizou a economia do país, criando um Chile dinâmico e moderno”.
Na verdade, esse cinismo é a pior de todas as posições, pois tenta vender-se como análise isenta dos fatos, quando não passa, no fundo, de simples cegueira ideológica. Durante os dez primeiros anos da ditadura de Pinochet, o PIB do Chile caiu, em média, 1,1%, a despeito do auxílio financeiro maciço dos Estados Unidos. Quando o país voltou a crescer, nos últimos cinco anos da ditadura, apenas recuperou a posição que tinha décadas atrás, mas agora sem o sistema gratuito de saúde, sem a previdência pública e com um índice de desigualdade inimaginável anos atrás. Pinochet entregou um país no qual as famílias numerosas precisavam escolher qual filho iria para a escola até a universidade, porque tais famílias não tinham dinheiro para bancar a educação de todos os seus filhos. Quem fala isso é um chileno, que conhece a realidade de seu país de nascimento.
No entanto, quando escrevi isso em um artigo alguns dias atrás, deparei-me com comentários inacreditáveis, como: os anos de recessão foram necessários para “corrigir os estragos” feitos por Allende. De nada adianta esfregar na cara desses arautos da verdade todos os documentos americanos que vieram ao domínio público. Eles deixam claro, por exemplo, como o governo Nixon patrocinou uma inacreditável política de sabotagem econômica comandada pelo bandido internacional Henry Kissinger, como seus locautes, suas práticas de desabastecimento e de verdadeiras ações terrorismo de Estado. Eles falarão que tudo isso é um complô de esquerdistas internacionais para desculpar a incompetência de Allende.
Diante disso, fica claro como não se trata de contrapor argumentos com fatos, porque estamos diante de pessoas que nunca, em hipótese alguma, dirão algo como: “É, certamente, esse apoio foi um erro a respeito do qual deveríamos meditar”.
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