06 setembro 2013

A VERDADE COMO ELA É

Jornal não 'concordou' com o golpe,
promoveu-o


Mauro Malin, no Observatório da Imprensa



Um primeiro e essencial desacordo com o texto de autoindulgência publicado no O Globo de 1º de setembro (leia aqui) diz respeito a uma falácia quanto à participação do jornal no movimento que levou ao golpe de Estado de 1964. Está escrito que o O Globo “concordou com a intervenção dos militares”. Não é verdade. Embora muito atrás em prestígio e influência do que, por exemplo, entre outros, o Jornal do Brasil, o Correio da Manhã e o O Jornal, no Rio de Janeiro, e o O Estado de S. Paulo, na Pauliceia, o jornal da Rua Irineu Marinho foi um dos incentivadores do movimento golpista. Não “concordou”. Promoveu.
Registra Carlos Chagas no precioso O Brasil sem retoque: A História contada por jornais e jornalistas, 1808-1964, vol. II, página 1.052, que no início de 1964 Roberto Marinho passa a frequentar a casa do general Humberto de Alencar Castelo Branco, então chefe do Estado-Maior do Exército, assim como faziam outros conspiradores, nomeadamente os deputados udenistas Bilac Pinto e Aliomar Baleeiro.
Castelo era historicamente um oficial legalista. Relutou muito em se incorporar ao movimento conspiratório, que tinha no proprietário do O Estado de S. Paulo, Júlio de Mesquita Filho, um de seus mais influentes chefes civis. É relativamente conhecido o documento com diretivas para um governo ditatorial escrito por Mesquita. Chagas cita-o longamente.
Cabe um parêntese. Ironias da história, a família Mesquita, do Estadão, jornal que em seu tempo de glória era incomparavelmente mais importante do que o O Globo, jamais chegou aos pés de Roberto Marinho em matéria de aptidão para negócios. O O Globo era fichinha em 64, mas com o advento e o sucesso da TV Globo, Marinho se tornaria muito mais poderoso e influente dos que os Mesquitas, situação que os descendentes de ambas as famílias houveram por bem preservar.
A bajulação
Um discurso de Castelo na Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais, em 20 de janeiro de 1964, faz recair sobre o general a admiração do Estadão, que passa a elogiar com frequência “sua liderança militar e seu passado” (Chagas). Castelo, homem até então avesso aos holofotes, anima-se com o sucesso e adere à conspiração.
O Estadão, portanto, não apenas narra a política, faz política. O mesmo se diga de toda a imprensa engajada no golpismo, amplamente majoritária no país. O Globo não estava sozinho ao apoiar o golpe. Ou melhor: ao promover o golpe.
Hoje também a mídia jornalística faz política, em parte na tentativa vã de substituir uma oposição partidária desfibrada e/ou inepta.
Quando Castelo é eleito indiretamente presidente da República, com os votos tanto da UDN como do PSD (exceção solitária no PSD: Tancredo Neves; Juscelino Kubitschek e Ulysses Guimarães votaram a favor da designação do general), o Globo não noticia, regozija-se, como se vê na capa do dia 15 de abril. Mais do que isso: fala em nome da nação.
Leva a massa, não é levado
Voltemos ao documento do Globo de domingo (1/9). No mesmo parágrafo, mais uma manobra narrativa: “Fez o mesmo (‘concordar’ com a intervenção dos militares) parcela importante da população, um apoio expresso em manifestações e passeatas organizadas em Rio, São Paulo e outras capitais”.
Parece o “todo mundo faz” de Lula em 2005. Quer dizer que, se parcela importante da população for às ruas agora pedindo a pena de morte, o jornal poderá (moralmente falando) aderir à turba? Não, não poderá.
Mas o ponto aqui é outro: não existe mobilização de massas na rua sem algum tipo de comunicação. Hoje serão as redes sociais, na época eram os meios ditos agora convencionais. Para que se tenha ideia de como a mobilização de apoio popular ao golpe foi importante, veja-se (tanto quanto possível, porque a imagem é péssima) como o Estado de S. Paulo deu, em 20 de março de 1964, a Marcha da Família com Deus pela Liberdade realizada na capital paulista (mais informações aqui).
O raciocínio empregado no texto do Globo está, novamente, invertido. O jornal não foi induzido pelas massas a “concordar” com a intervenção dos militares golpistas. O jornal participou ativamente da convocação do apoio à derrubada do governo de João Goulart. E comemorou, com direito a ponto de exclamação, a versão carioca da Marcha com Deus.
Veremos em novos tópicos como o Globo fabricou uma narrativa que briga com os fatos.
 
 
 

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