28 setembro 2012

SOCIEDADE


Um grito parado no ar



Alberto Villas, no sítio da Revista CartaCapital


Quem são as pessoas que gritam em shows? Quem são as pessoas que compram ingressos, se aprontam escolhendo uma roupa bacana, pegam o carro, pagam caro o estacionamento e entram num show prontas pra gritar? E não é de hoje. Uns vão pra assobiar e outros pra gritar mesmo. Tenho em casa gravações de shows ao vivo datadas dos anos 1960 onde lá no fundo a gente ouve aquele…
- Lindo!
Não é só lindo que gritam não. Tem todo tipo de grito. Quem nunca foi a um show de Maria Bethânia e não ouviu quando dá aquele silêncio sepulcral entre uma música e outra, um gritinho…
- Maravilhosa!
Quem nunca foi a um show em que Caetano Veloso está apresentando as suas novas canções e alguém no escurinho não solta um…
- Leãozinho!
Parece que são sempre as mesmas pessoas, as vozes são parecidas mas, na verdade, não são as mesmas não. Quem já foi a um show de Zeca Baleiro? Lembra? De repente, lá no fundo tem sempre um que berra…
- Toca Raul!
Até em show de João Gilberto, o sistemático que reclama não só do barulhinho mas do ar condicionado, das cordas do violão, da iluminação, da vida, da cidade e do banquinho, tem gente disposta a gritar…
- Chega de saudade!
E aqueles que vão lá no fundo do baú e em pleno show do Chico, um Chico desses tempos deQuerido DiárioEssa PequenaBarafunda e Rap de Cálice e gritam…
- A Banda!
Mas é em show de cantora que os animadinhos e animadinhas mais gostam de colocar suas asinhas de fora. Não tem show de Simone, de Marisa Monte, de Marina Lima, de Adriana Calcanhoto que alguém lá no fundo não solte a voz…
- Gostosa!
- Delícia!
Quando entro numa sala de espetáculo e as luzes ainda estão acesas fico olhando pras pessoas e imaginando quem será que vai gritar, que vai se declarar, que vai pedir uma música.
Foi o que aconteceu no show Recanto da Gal Costa que fui na semana passada em São Paulo, um show digamos de passagem, maravilhoso. Mas não deu outra. E dessa vez não foi uma voz que saiu não se sabe de onde. Saiu de um cara na minha mesa, ao meu lado, que foi ao show com frases prontas e não deixou por menos. Bastou um silêncio depois da cançãoDivino Maravilhoso pra ele dar o seu berro…
- Um tapa na cara das botocadas!
Todo mundo, acho que meio constrangido, engoliu em seco. Mas eis que de repente, logo depois dela cantar Neguinho, lá vem ele de novo…
- Marilena Chauí número dois!
A resposta veio a cavalo. Um outro cara, lá do outro canto da sala não deixou por menos…
- Vá se foder!
Confesso que gostei mais deste. Foi o último grito que se ouviu naquela noite de sábado naquele recanto.


PS do Blog: quem nunca sentou ao lado de um "ivo trindade" em algum show da vida, e ouvi-lo gritar, com
a boca cheia de pipoca, pedindo uma música?











A ascensão conservadora em SP





Matheus Pichonelli, na Revista CartaCapital


Num seminário sobre a ascensão do conservadorismo em São Paulo realizado na USP no final de agosto, a filósofa Marilena Chauí provocou risos na plateia ao contar o estranhamento de uma amiga sobre o comportamento de parte dos habitantes da maior cidade do País. A amiga dizia custar a entender como pessoas tão hospitaleiras e civilizadas na vida doméstica se transformavam em “feras indomáveis” quando entravam em espaços compartilhados, como o trânsito ou as filas do banco.
É fato. Quem já acompanhou os bate-bocas diários protagonizados em disputas fratricidas pelas faixas preferenciais, barbeiragens no trânsito ou um simples carrinho de supermercado sabe do que a filósofa está falando. Nessas pequenas disputas pelos espaços públicos, brigamos, ofendemos, damos cotoveladas, estacionamos em vagas proibidas, ofendemos os garçons, o manobrista, o vendedor, o atendente, o empregado, o motoboy, a vizinha do terceiro andar…e tudo parece natural, pacífico até segunda ordem.
Burns é brasileiro. E mora (e vota) em São Paulo
Como se ganhar no grito fosse esporte popular. Não é. Como explicou Chauí no mesmo evento, essa deterioração das relações interpessoais possui raízes históricas. Tem base numa violência historicamente cristalizada que opera com base na discriminação e preconceito de classe, sexo, religião, profissão e raça. Que naturaliza as diferenças. Que não reconhece a humanidade do outro. Que confunde o exercício da consciência, da liberdade e da responsabilidade com um conjunto de regulamento típico das empresas e suas horas marcadas e regras de comportamento. E se assenta sobre as “características mais alarmantes” do neoliberalismo: o encolhimento do espaço público e o alargamento do espaço da vida privada.
O resultado é que sabemos tudo da intimidade da celebridade mas não somos capazes de conviver de forma civilizada nos espaços comuns, onde o “outro” é sempre uma ameaça. E corremos para nos abrigar em escolas, escoltas ou sistema de saúde privados: para nos “proteger” e nos diferenciar.
A violência é, muitas vezes, uma reação de quem vê o acesso a esses espaços antes impenetráveis como a invasão de um espaço cativo. Como se a proteção fosse violada e o prestígio, ameaçado pela presença das “gentes diferenciadas”.
Em tempos de eleição, essa violência latente ganha amplificação nos discursos. O desafio é puxar meia hora de conversa em qualquer grupo de qualquer lugar e passar menos de cinco minutos sem ouvir velhos absurdos. Discursos que, mais do que ignorância política, atestam a manifestação impune dos mais elementares preconceitos sociais.
Daí a mesmice, ouso dizer, dos questionamentos em tempos de campanha (“O senhor é a favor do aborto?”. “Vai permitir casamento entre gays?”. “Acredita em Deus?”) e posições dos candidatos (“sou a favor da ética”, como quem se posiciona a favor do sol, da saúde e da alegria). Tanto a mídia como as campanhas políticas sabem exatamente o terreno em que pisam. Por isso todos resolvem, a cada dois anos, querer saber o que pensam os líderes religiosos sobre tal e qual candidato. O referendo para as urnas passa pela benção dos homens de fé.
É como se, dotado dos padrões de comportamento religioso exigidos, o candidato fosse incapaz de mexer nas duas obsessões das classes conservadoras, base do eleitorado, e também citadas pela filósofa: a ordem e a segurança.
Esse comportamento foi, em parte, retratado na pesquisa Datafolha divulgada no domingo 23 sobre o perfil do eleitor paulistano. O levantamento mostrou que nada menos do que 79% dos eleitores acham que acreditar em Deus torna as pessoas melhores. Com perguntas como esta (eram dez no total), o instituto mostrou haver em São Paulo nada menos do que 34% de eleitores identificados como conservadores – enquanto apenas 27% se dizem liberais. O restante se diz neutro.
E o que é ser conservador em São Paulo, além do já citado talento em se estapear pela faixa de trânsito ou pelo carrinho de supermercado (afinal, paga-se para se ter razão)? Pela pesquisa, descobrimos exatamente quem confunde as atribuições do Estado com uma cerca elétrica aos medos mais inexplicáveis. Na metrópole, mostrou o Datafolha, duas em cada dez pessoas acreditam que a homossexualidade deve ser desencorajada pela sociedade. Mais: três em cada dez eleitores acham que pobres migrantes trazem problemas para a cidade; e 60% veem na “maldade das pessoas” a causa principal da violência.
É a divisão clara de quem vê o mundo por uma ótica simplista fora do próprio umbigo. E que, como consequência, cobra soluções fáceis para lidar com problemas que não consegue explicar. É o que leva uma parcela assustadora do eleitorado (41%) a considerar a pena de morte como a “melhor punição para indivíduos que cometeram crimes graves”.
O cálculo parece claro. Esse eleitor quer soluções agressivas contra tudo o que o ameace (da prisão de adolescentes infratores à proibição total das drogas) e, ao mesmo tempo, tem dificuldade em participar da vida pública, algo evidente da concepção segundo a qual os sindicatos “servem mais para fazer política do que defender os trabalhadores”, como declaram 60% dos eleitores.
Não estranhe se um dia, numa roda de conversa, identificar neste eleitor a “fera indomável” citada por Chauí. O cidadão-eleitor que em casa fala de paz, prosperidade, valores, esforço, que bota nariz de palhaço ao votar e sai às ruas, uma vez por ano, para cobrar “ética na política” pode ser capaz de promover uma hecatombe se alguém chegar perto do seu automóvel, o único elo que o diferencia numa multidão sem identidade a reproduzir uma velha violência incrustada. O reacionarismo que exige do Estado medidas duras contra tudo o que não é ele é a face mais notável da covardia.


 PS do Blog: qualquer semelhança com o que você observa aqui no Recife, não é mera coincidência.

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