14 setembro 2012

MÍDIA E JUDICIÁRIO


(*) Artigo publicado originalmente na Revista do Brasil (edição de setembro)

Crianças fazendo perguntas de adultos para “celebridades” surgiu como nova atração da Bandeirantes nas noites de domingo. Concorria com Faustão, na Globo; Silvio Santos no SBT e Gugu na Record evidenciando que o controle remoto não serve mesmo para nada. Troca-se de canal mas o nível dos programas continua o mesmo.

A Bandeirantes tentou inovar, sair dos auditórios e das “escolinhas”, e acabou colocando no ar um programa chamado “Conversa de gente grande” que era, no mínimo, constrangedor. 

Menores de 12 anos entrevistavam “celebridades” fazendo perguntas – algumas claramente formuladas pela produção do próprio programa – destinadas a provocar risadas nos adultos.

Para Alexandre Frota uma criança perguntou como tinha sido “a primeira vez” do artista. Outra quis saber se Sabrina Sato havia feito “o teste do sofá” para trabalhar na TV. 

Como se nota a escolha dos entrevistados e das perguntas enquadra-se perfeitamente no artigo da Constituição que estabelece preferência, nos programas de rádio e TV, para conteúdos com “finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas”.

Diante de tais fatos inúmeras pessoas voltaram a perguntar “o que fazer”? Infelizmente muito pouco. Não há a quem reclamar. No Brasil, ao contrário do que acontece nas grandes democracias do mundo, não existe um órgão regulador capaz de ouvir o público e dialogar com as emissoras.

A existência desse órgão foi prevista em alguns dos 19 ante-projetos de lei para o rádio e a televisão, elaborados desde os anos 1980, mas nunca levados ao Congresso. Continuamos praticamente com a mesma legislação que, no último dia 27 de agosto, completou 50 anos. 

Os governos brasileiros sofrem, na radiodifusão, da síndrome Jango. Quando a lei entrou em vigor, João Goulart era o presidente da República. Ele vetou 52 artigos do texto aprovado no Congresso, a maioria favorecendo nitidamente os interesses dos radiodifusores. No entanto, de forma inédita, o Parlamento brasileiro derrubou os vetos presidenciais mostrando uma força que é até hoje inabalável. 

Menos de dois anos depois, esses mesmos radiodifusores, aliados a outros setores da mídia, obtiveram uma vitória maior: derrubaram o presidente da República, integrados que estavam ao movimento civil-militar de 1964. Essa talvez seja a razão principal da timidez de todos os governos, desde então, de levarem adiante o debate em torno de uma nova lei para a radiodifusão.

Há 50 anos o Brasil tinha 71 milhões de habitantes e só 5% possuíam um aparelho de TV. Hoje somos quase 200 milhões e a televisão está em 98% dos domicílios. Hábitos, valores e costumes eram bem diferentes. A pílula anticoncepcional não havia sido inventada e nem a mini-saia virado moda. Era um pais rural, com 80% da população morando no campo. Hoje é o inverso mas a lei permanece a mesma.

Sem falar das diferenças tecnológicas. O video-tape era a grande novidade permitindo, por exemplo, que Chico Anísio contracenasse com ele mesmo. E os jogos da Copa do Mundo no Chile pudessem ser vistos aqui, no dia seguinte. Tudo em preto e branco.

Uma lei feita para aquele momento é incompatível com os tempos atuais. Por ser tão desatualizada não regula quase mais nada permitindo abusos. Como o aluguel de horários para igrejas, a propriedade de vários meios de comunicação por um mesmo grupo empresarial, a falta de diversidade nas programações, a renovação das concessões de rádio e TV sem debate público, entre outras aberrações.

Diante desse quadro, é óbvia a necessidade de uma lei de meios. Aliás ela já está pronta há muito tempo. Há contribuições, por exemplo, dos ministros Sergio Motta e Juarez Quadros, dos governos Fernando Henrique e, mais recentemente, do ministro Franklin Martins, no segundo governo Lula. 

Mas aí entra em cena a síndrome Jango. O poder político das empresas de comunicação – ferozes adversárias das mudanças – atemoriza os governos, tornando-os reféns do atraso. E, o telespectador, vítima da TV, não tem a quem reclamar quando vê uma criança perguntando a uma “celebridade” como foi a sua primeira relação sexual.

Laurindo Lalo Leal Filho, sociólogo e jornalista, é professor de Jornalismo da ECA-USP. É autor, entre outros, de “A TV sob controle – A resposta da sociedade ao poder da televisão” (Summus Editorial). Twitter: @lalolealfilho.








J U D I C I Á R I O




Caveat: o STF caminha para
subverter as bases do direito
positivo brasileiro



Desde o século XVIII firmou-se como princípio do direito europeu continental, ao qual se filia o direito brasileiro, a máxima, inscrita em nossa Constituição, de que não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal. (Em latim: Nullum crimen, nulla poena sine previa lege.) O arauto desse princípio foi Cesare Beccaria, numa obra que constitui um dos pilares da era moderna, “Dos Delitos e das Penas”. Ela prenunciava uma doutrina de proteção do cidadão comum contra arbitrariedades do soberano, do Estado ou... de magistrados. A propósito, foram justamente magistrados os poucos opositores de Beccaria.

O julgamento do chamado mensalão está caminhando para uma situação na qual grande parte dos réus está destinada a ser condenada a penas sem prévia cominação legal referidas a crimes que não estão definidos como tais em leis. É que os ministros do Supremo estão se arrogando a prerrogativa de definir “por analogia”, como crimes, após o fato consumado, ações como o gerenciamento de caixa dois eleitoral que estão tradicionalmente presentes como irregularidades eleitorais em todas as eleições brasileiras, sem uma única exceção, acredito eu. Por que só agora a criminalização penal nesse caso específico?

Não falo de gestão fraudulenta de instituição financeira: isso está tipificado em lei e já faz parte do direito objetivo brasileiro. Mas dizer que houve a formação de “quadrilha” por parte dos dirigentes do PT para comprar votos de parlamentares próprios ou de partidos aliados no Congresso, chamar de peculato o recebimento de dinheiro para pagar despesas eleitorais do próprio partido ou de outros, definir ainda como peculato recebimento de pretensa vantagem sem provar que houve contrapartida, tudo isso beira o surrealismo, para não dizer a máxima arbitrariedade.

Vamos ser claros: há uma parte da opinião pública querendo ver sangue, e uma parte do Judiciário querendo saciá-la. Ela ignora as consequências dos precedentes dos julgamentos para o comportamento futuro do sistema judiciário como um todo. Não sabe que, para atender seu apetite, o Supremo, que deveria resguardar-se como guardião da serenidade, atua às vezes, e não raro, política e demagogicamente. No caso, o Supremo está subvertendo a mais sagrada regra do sistema judiciário brasileiro, a saber, a doutrina do direito objetivo que exige prévia definição legal do crime, sem maiores contorcionismos jurídicos. 

Essa subversão terá consequências terríveis para o futuro jurídico brasileiro. Caímos no sistema anglo-saxão, aquele do direito consuetudinário, aquele que dá ao juiz uma imensa margem de discricionariedade em suas decisões. Quais as consequências disso? Para mim, que não sou jurista, devo usar uma linguagem comum: significa simplesmente que nas causas correntes no Judiciário haverá mais margem para os ricos culpados comprarem a sua absolvição e os pobres inocentes arcarem com o peso da lei. Mas é estranho que nenhum grande advogado ou jurista esteja chamando a atenção sobre isso: talvez tenham medo de se indispor junto ao Supremo!

Entendo que o Congresso brasileiro deva invocar suas prerrogativas e barrar essa pretensão do Supremo de, ao arrepio da cidadania, mudar as bases doutrinárias de nosso sistema jurídico. O direito objetivo, mesmo que circunstancialmente favoreça os ricos, é essencialmente uma proteção dos pobres. Se tivermos de adotar o sistema anglo-saxão, que, como dito, dá aos juízes ampla margem de arbitrariedade em suas decisões, que seja por decisão da cidadania, através de seus representantes no Congresso. Não pode ser um simples golpe do Supremo Tribunal Federal. Deve ser por um consenso mínimo na sociedade.

A propósito, já é tempo de recordar ao Supremo quem é o poder máximo na sociedade. Constitucionalmente, os três poderes são independentes e autônomos. Politicamente, porém, o Poder Judiciário e o Poder Executivo estão subordinados ao Legislativo, pelo fato de que este representa o conjunto da cidadania, da cidadania e da soberania, acima da qual não existe poder algum. Portanto, o ministro Marco Aurélio não pode atropelar a letra da Constituição dizendo que o deputado João Paulo Cunha está cassado por decisão do STF sem ter de passar pelo rito legal que estabelece a própria Carta Magna.

É preciso que o Congresso, nesse contexto de exorbitação de poderes pelo STF, tome iniciativas concretas para o restabelecimento da ordem constitucional. Afinal, há vários ministros do Supremo sobre os quais recaem pesadas suspeitas de falta de decoro. A revista Carta Capital, por exemplo, afirmou em matéria de capa que o ministro Gilmar Mendes foi beneficiário do esquema do valerioduto. Cabe investigar isso. Se confirmado, é um delito político, sem necessidade de um artigo de lei que o tipifique. E vale um processo de impeachment perante o Senado, conforme previsto na Constituição.

Na condição de cidadão livre, e conforme a lição de Bobbio, eu tenho a prerrogativa de fazer as leis através dos meus representantes políticos. Repele-me a ideia de ficar sob o jugo de leis feitas por homens – sejam reis, sejam presidentes, sejam juízes – que não têm que prestar conta a seus constituintes. Veja o abominável sistema judiciário americano e inglês: no curso da maior crise financeira de todos os tempos, devida basicamente a fraudes e desvios praticados por instituições financeiras, nem um único banqueiro ou dirigente financeiro foi preso ou condenado. Eles literalmente compram o sistema judicial e se safam. Já os pobres sofrem penas extremamente rigorosas, com poucas chances de regeneração.

Recorde-se ainda, nos Estados Unidos, a arbitrária decisão da maioria da Suprema Corte de atropelar resultados eleitorais inequívocos que davam a vitória a Gore para fazer vitorioso George Bush filho. O candidato conservador, preferido da maioria da Corte, foi beneficiário de um esquema corrupto, decisivo para o resultado nacional, montado seu próprio irmão, ninguém menos que o governador da Flórida. Estaria o cidadão comum brasileiro mais protegido com a adoção desse sistema? Fala-se descaradamente, entre advogados e juristas, que o critério para o julgamento do chamado mensalão é excepcional. Depois, voltaria tudo como antes. Se for assim estaremos no limite extremo da arbitrariedade, da demagogia e da violação dos direitos humanos. 

Portanto, é necessário fazer um apelo sobretudo aos jovens que se impressionaram com a retórica da procuradoria e do relator do chamado mensalão: isso não passa de um circo para valorização pessoal de alguns atores junto à opinião pública. No fundo, é uma vergonha que o procurador e o relator estejam se prestando a esse papel de basear uma retórica tão hiperbólica em provas factuais tão frágeis ou inexistentes. Em que código, em que lei, em que regra o procedimento normal de dirigentes partidários de buscar alianças e apoio pode ser definido como ação de quadrilha? Não seria o trabalho normal deles? Ou quadrilha é quando se juntam algumas pessoas para qualquer propósito, inclusive o de condenar?

(*) Economista e professor da UEPB, presidente do Intersul, autor junto com o matemático Francisco Antonio Doria do recém-lançado “O Universo Neoliberal em Desencanto”, Ed. Civilização Brasileira. Esta coluna sai às terças também no site Rumos do Brasil e no jornal carioca Monitor Mercantil.




Fonte: Agência Carta Maior










Nenhum comentário:

Postar um comentário