Paraísos fiscais, um porto seguro para multimilionários
Sarah Jaffe - Alternet
Vinte e um trilhões - com “t” - de dólares. Eis o que as pessoas
mais ricas do mundo escondem em paraísos fiscais internacionais. Embora a
quantidade real possa ser maior, chegando aos 32 trilhões, uma vez que, claro, é
quase impossível conhecê-la com exatidão.
Ao mesmo tempo em que os governos cortam o gasto público e demitem os trabalhadores, em prol de uma maior "austeridade" obrigada pela desaceleração da economia, os super-ricos - menos de 10 milhões de pessoas - esconderam longe do alcance do arrecadador de impostos uma quantidade igual às economias japonesa e estadunidense juntas.
Os dados são de um novo relatório da Tax Justice Network (Rede para a justiça tributária) [1] cujas conclusões são impactantes. As receitas fiscais perdidas graças aos refúgios fiscais extraterritoriais – offshore -, afirma o relatório, "são suficientemente grandes como para marcar uma diferença significativa em todas nossas medidas convencionais da desigualdade. Dado que a maior parte da riqueza financeira desaparecida pertence a uma pequena elite, o efeito é assustador”.
James S. Henry, ex-economista chefe em McKinsey & Co, autor do livro The Blood Bankers (Os banqueiros ensanguentados) assim como de artigos em publicações como o The Nation e o The New York Times, procurou suas informações no Banco de Compensações Internacionais, no Fundo Monetário Internacional, no Banco Mundial, nas Nações Unidas, nos bancos centrais e analistas do setor privado, e descobriu os contornos da gigantesca reserva de dinheiro que flutua nesse lugar nebuloso conhecido como offshore. (E isso que só se ocupou do dinheiro em espécie: o relatório deixa de lado coisas como bens de raízes, iates, obras de arte e outras formas de riqueza que os super-ricos escondem, livres de impostos, nos paraísos fiscais extraterritoriais.)
Henry se refere a eles como um "buraco negro" na economia mundial e afirma que, "apesar de ter muito cuidado em ser cauteloso, por prudência, os resultados são assustadores."
Há uma grade quantidade de informação para analisar neste relatório, pelo que nos limitamos aqui a seis coisas que devemos saber sobre o dinheiro que os mais ricos do mundo escondem de nós.
1. Apresentamos-lhes o Top 0,001%
"Segundo nossas estimativas, pelo menos um terço de toda a riqueza financeira privada, e quase a metade de toda a riqueza offshore, é agora propriedade das 91.000 pessoas mais ricas do mundo: só 0,001% da população mundial", diz o relatório. Estes 91.000 que formam o vértice da pirâmide têm cerca de 9,8 trilhões de dólares do total estimado neste estudo, e menos de dez milhões de pessoas detém todo o volume de dinheiro em espécie.
Quem são essas pessoas? Sabemos que são os mais ricos, mas o que mais sabemos deles? O relatório menciona "especuladores imobiliários chineses e magnatas do software de Vale do Silício, com idades em torno de trinta anos", e em seguida estão aqueles cuja riqueza provém do petróleo e do tráfico de drogas. Não menciona, mas poderia, os candidatos presidenciais dos Estados Unidos. Por exemplo, Mitt Romney que recebeu fortes críticas por ter dinheiro guardado em uma conta bancária na Suíça e em investimentos nas Ilhas Cayman, segundo o site Politifact [2].
Os narcotraficantes têm necessidade, é claro, de ocultar seus lucros ilícitos, mas muitos dos outros super-ricos pretendem simplesmente evitar o pagamento de impostos, para o qual constroem complicadas redes de empresas e investimentos só para deduzir um pouco mais da fatura fiscal que pagam em seu país de origem. Tudo ajuda.
2. Onde está o dinheiro? É difícil saber
Offshore, segundo Henry, não é já um lugar físico, embora existam vários lugares, como Singapura e Suíça, que ainda se especializam em proporcionar "residências físicas seguras e fiscalmente interessantes" aos ricos do mundo.
Mas nestes tempos que correm, a riqueza offshore é virtual. Henry a descreve como algo nominal, hiperportátil, multijurisdicional, seguidamente lugar temporário de redes de entidades e acordos legais ou quase legais. Uma empresa pode estar situada em uma jurisdição, ser propriedade de um testa de ferro localizado em outro lugar e ser administrada por testas de ferro de um terceiro lugar. "Em última instancia, portanto, o termo offshore se refere a um conjunto de capacidades" e não tanto a um ou vários lugares.
Também é importante, afirma o relatório, distinguir entre os "paraísos intermediários" - lugares nos quais pensam a maioria das pessoas quando se fala de paraísos fiscais, como as Ilhas Cayman de Mitt Romney, as Bermudas ou a Suíça - e os "paraísos de destino", que incluem os EUA, o Reino Unido e inclusive a Alemanha. Estes destinos são desejáveis já que proporcionam "mercados de valores relativamente eficientes e regulados, bancos respaldados por grandes populações de contribuintes, e companhias de seguro. Além de códigos jurídicos desenvolvidos, advogados competentes, poder judicial independente e Estado de direito."
Assim, pois, os mesmos que escapam do pagamento de impostos distribuindo seu dinheiro por diferentes lugares, se aproveitam dos serviços financiados pelos contribuintes para fazê-lo. E nos EUA, alguns estados começaram, desde a década de 1990, a oferecer entidades jurídicas a baixo custo "cujos níveis de confidencialidade, proteção frente aos credores e vantagens fiscais rivalizam com os dos tradicionais paraísos fiscais secretos do mundo." Adicione a isso a porcentagem cada vez menor dos impostos que os ricos e as empresas estadunidenses pagam e verão que estamos começando a ter um aspecto muito atrativo para aqueles que tratam de camuflar seu dinheiro.
3. Grandes bancos resgatados dirigem este negócio
Mas quem facilita este processo? Alguns nomes familiares saem rapidamente à superfície quando se vasculha os dados: Goldman Sachs, UBS e Credit Suisse são os três primeiros, e o Bank of America, Wells Fargo e JP Morgan Chase estão no Top 10. Segundo afirma o relatório, "Agora podemos acrescentar algo a mais a sua lista de distinções: são os atores principais dos refúgios fiscais de todo o mundo e ferramentas chave do injusto sistema tributário global”.
No final de 2010, os maiores 50 bancos privados administravam cerca de 12,1 trilhões de dólares em "ativos trans fronteiriços" investidos por seus clientes. É mais do que o dobro da cifra de 2005, e representa uma taxa média de crescimento anual superior a 16%.
"Desde bancos a empresas contábeis e advogados corporativos, algumas das maiores empresas do mundo são parte da trama de evasão fiscal global", escreve no The Guardian a investigadora financeira (e ex-trader de Goldman Sachs) Lydia Prieg. "Estas empresas não são pessoas jurídicas as quais possamos chamar a atenção para que paguem sua parte justa; sua razão de ser consiste em maximizar seus lucros e os de seus clientes."
"Até finais da década de 2000", afirma Henry, "a sabedoria convencional entre os capitalistas evasores era: 'O que existe de mais seguro que os bancos suíços, estadunidenses ou britânicos etiquetados como grandes demais para falir? '” Sem os resgates que acompanharam a crise financeira de 2008 – acrescenta - muitos dos bancos que estão escondendo dinheiro em espécie para os ultra ricos já não existiriam. "Dar por certo o apoio dos governos é precisamente a razão principal pela qual os super-ricos fazem seus negócios com os bancos de maior tamanho."
4. A desigualdade é pior do que acreditamos
Com toda esta riqueza oculta em todo o mundo, impossível de contar e de tributar – afirma a Tax Justice Network -, não resta dúvida de que estamos subestimando a desigualdade de ingressos e riqueza realmente existente. Stewart Lansley, autor de The Cost of Inequality (O custo da desigualdade), assegurou a Heather Stewart, do The Guardian: "Não há absolutamente nenhuma dúvida de que as estatísticas sobre a renda e a riqueza dos de cima diminuem a magnitude do problema".
Ao calcular o coeficiente Gini, que mede a desigualdade em uma sociedade, disse, "Não se recolhem os dados dos multimilionários, e inclusive quando se faz, não é adequadamente".
Este é um assunto tão importante que a Tax Justice Network incluiu um segundo relatório, ao mesmo tempo em que o de Henry, titulado "Inequality: You don't know the half of it" [3] (Desigualdade: você não conhece nem a metade). O estudo detalha todos os problemas da forma em que agora calculamos a desigualdade; seguidamente parecem ser, em essência, que não temos uma medida exata da verdadeira riqueza dos super-ricos. Os dados sobre ingressos fiscais estão disponíveis, mas se na realidade há trilhões escondidos por todo o mundo nos paraísos fiscais, como calcular os ingressos reais dos mais ricos do mundo?
A desigualdade disparou em todo o mundo, segundo os cálculos frequentemente utilizados. Se o 1% superior da população dos EUA não só é dono de 35,6% da riqueza, por exemplo, mas que também tem um volume de dinheiro muito maior escondido em algum lugar, que significado tem isto para nós?
Não esqueçamos, afirma o relatório, que "a desigualdade é uma opção política. Ou seja, nós decidimos o quê fazer como sociedade baseando-nos no montante de desigualdade que consideramos tolerável ou justo. Se esse montante é muito maior do que pensamos, de que forma desvaloriza nossas prioridades? Muitos estadunidenses já estão mal informados acerca de seu nível de desigualdade, mas este estudo confirma que inclusive os supostos especialistas estão subestimando em muito o problema”.
5. Os países "endividados" não devem, na realidade, nada
O relatório de Henry destaca um subgrupo de 139 países, de ingressos baixos ou médios, e destaca que segundo a maioria dos cálculos, os ditos 139 países tinham, em conjunto, uma dívida superior a quatro trilhões de dólares no final de 2010. Mas ao se tomar em conta todo o dinheiro que se acumula offshore, os países, na verdade, teriam uma dívida negativa de 10 trilhões de dólares, ou como Henry escreve:
"Uma vez tomados em consideração estes ativos ocultos e os ingressos que geram, muitos antigos países "devedores" seriam, de fato, países ricos. Mas o problema é que sua riqueza está depositada offshore, em mãos de suas próprias elites e seus banqueiros privados”.
Henry afirma também que os países em desenvolvimento em seu conjunto terminam sendo credores do mundo desenvolvido, em lugar de devedores, e o foram durante mais de uma década. "Isto significa que se trata realmente de um problema de justiça tributária, não simplesmente de ‘dívida’”.
Mas essas dívidas, como afirmamos, recaem nos ombros dos trabalhadores desses países, que não podem desfrutar das vantagens dos sofisticados paraísos fiscais.
E isto, é claro, não é só um problema do mundo em desenvolvimento. Hoje em dia, afirma Henry, o mundo desenvolvido tem sua própria crise da dívida (vejam-se os problemas atuais da zona do euro). O economista francês Thomas Piketty afirma, "a riqueza depositada em paraísos fiscais é provavelmente de um montante suficiente para converter a Europa em um credor muito grande com respeito ao resto do mundo”.
6. Quanto estamos perdendo?
Aqui está o centro da questão, não? É impossível saber a exatamente, é claro, devido a que as cifras são só estimativas, mas Henry calcula que se estes 21 trilhões de dólares não declarados obtivessem uma taxa de rendimento de 3% e os ingressos se gravaram em 30%, por si só gerariam receitas fiscais de cerca de 190 bilhões de dólares. Se a quantidade total de dinheiro colocada em paraísos fiscais fosse próxima a estimativa mais alta, ou seja, 32 trilhões de dólares, se obteriam cerca de 280 bilhões, o que é aproximadamente o dobro do montante que os países da OCDE gastam em ajuda ao desenvolvimento. Em outras palavras, uma enorme quantidade de dinheiro. E isso levando em conta que um rendimento de 3% é um cálculo muito prudente.
Estamos falando unicamente de impostos sobre a renda: os impostos sobre os lucros, impostos à herança e outros renderiam ainda mais.
Por isso Henry afirma que, no final das contas, poderíamos tomar este assunto como uma boa notícia. "O mundo acaba de localizar uma quantidade enorme de riqueza financeira que poderia ser utilizada para contribuir à solução dos problemas mundiais mais urgentes". "Temos a oportunidade de pensar não só acerca de como prevenir alguns dos abusos que conduziram a esta situação, mas também de pensar na melhor maneira de fazer uso dos ingressos atualmente não tributáveis que gera."
NOTAS
[1] James S. Henry, The Price of Offshore Revisited , 2012
[2] http://www.politifact.com/truth-ou-meter/statements/2012/jul/17/barack-obama/obama-ad-says-romney-stashed-money-caymam-islands/
[3] http://taxjustice.blogspot.be/2012/07/inequality-you-dont-know-half-of-it.html
(*) Publicado originalmente em Alternet. Tradução de Libório Júnior a partir da versão em espanhol publicada em Bitácora (Uruguai). Sarah Jaffe é jornalista.
Ao mesmo tempo em que os governos cortam o gasto público e demitem os trabalhadores, em prol de uma maior "austeridade" obrigada pela desaceleração da economia, os super-ricos - menos de 10 milhões de pessoas - esconderam longe do alcance do arrecadador de impostos uma quantidade igual às economias japonesa e estadunidense juntas.
Os dados são de um novo relatório da Tax Justice Network (Rede para a justiça tributária) [1] cujas conclusões são impactantes. As receitas fiscais perdidas graças aos refúgios fiscais extraterritoriais – offshore -, afirma o relatório, "são suficientemente grandes como para marcar uma diferença significativa em todas nossas medidas convencionais da desigualdade. Dado que a maior parte da riqueza financeira desaparecida pertence a uma pequena elite, o efeito é assustador”.
James S. Henry, ex-economista chefe em McKinsey & Co, autor do livro The Blood Bankers (Os banqueiros ensanguentados) assim como de artigos em publicações como o The Nation e o The New York Times, procurou suas informações no Banco de Compensações Internacionais, no Fundo Monetário Internacional, no Banco Mundial, nas Nações Unidas, nos bancos centrais e analistas do setor privado, e descobriu os contornos da gigantesca reserva de dinheiro que flutua nesse lugar nebuloso conhecido como offshore. (E isso que só se ocupou do dinheiro em espécie: o relatório deixa de lado coisas como bens de raízes, iates, obras de arte e outras formas de riqueza que os super-ricos escondem, livres de impostos, nos paraísos fiscais extraterritoriais.)
Henry se refere a eles como um "buraco negro" na economia mundial e afirma que, "apesar de ter muito cuidado em ser cauteloso, por prudência, os resultados são assustadores."
Há uma grade quantidade de informação para analisar neste relatório, pelo que nos limitamos aqui a seis coisas que devemos saber sobre o dinheiro que os mais ricos do mundo escondem de nós.
1. Apresentamos-lhes o Top 0,001%
"Segundo nossas estimativas, pelo menos um terço de toda a riqueza financeira privada, e quase a metade de toda a riqueza offshore, é agora propriedade das 91.000 pessoas mais ricas do mundo: só 0,001% da população mundial", diz o relatório. Estes 91.000 que formam o vértice da pirâmide têm cerca de 9,8 trilhões de dólares do total estimado neste estudo, e menos de dez milhões de pessoas detém todo o volume de dinheiro em espécie.
Quem são essas pessoas? Sabemos que são os mais ricos, mas o que mais sabemos deles? O relatório menciona "especuladores imobiliários chineses e magnatas do software de Vale do Silício, com idades em torno de trinta anos", e em seguida estão aqueles cuja riqueza provém do petróleo e do tráfico de drogas. Não menciona, mas poderia, os candidatos presidenciais dos Estados Unidos. Por exemplo, Mitt Romney que recebeu fortes críticas por ter dinheiro guardado em uma conta bancária na Suíça e em investimentos nas Ilhas Cayman, segundo o site Politifact [2].
Os narcotraficantes têm necessidade, é claro, de ocultar seus lucros ilícitos, mas muitos dos outros super-ricos pretendem simplesmente evitar o pagamento de impostos, para o qual constroem complicadas redes de empresas e investimentos só para deduzir um pouco mais da fatura fiscal que pagam em seu país de origem. Tudo ajuda.
2. Onde está o dinheiro? É difícil saber
Offshore, segundo Henry, não é já um lugar físico, embora existam vários lugares, como Singapura e Suíça, que ainda se especializam em proporcionar "residências físicas seguras e fiscalmente interessantes" aos ricos do mundo.
Mas nestes tempos que correm, a riqueza offshore é virtual. Henry a descreve como algo nominal, hiperportátil, multijurisdicional, seguidamente lugar temporário de redes de entidades e acordos legais ou quase legais. Uma empresa pode estar situada em uma jurisdição, ser propriedade de um testa de ferro localizado em outro lugar e ser administrada por testas de ferro de um terceiro lugar. "Em última instancia, portanto, o termo offshore se refere a um conjunto de capacidades" e não tanto a um ou vários lugares.
Também é importante, afirma o relatório, distinguir entre os "paraísos intermediários" - lugares nos quais pensam a maioria das pessoas quando se fala de paraísos fiscais, como as Ilhas Cayman de Mitt Romney, as Bermudas ou a Suíça - e os "paraísos de destino", que incluem os EUA, o Reino Unido e inclusive a Alemanha. Estes destinos são desejáveis já que proporcionam "mercados de valores relativamente eficientes e regulados, bancos respaldados por grandes populações de contribuintes, e companhias de seguro. Além de códigos jurídicos desenvolvidos, advogados competentes, poder judicial independente e Estado de direito."
Assim, pois, os mesmos que escapam do pagamento de impostos distribuindo seu dinheiro por diferentes lugares, se aproveitam dos serviços financiados pelos contribuintes para fazê-lo. E nos EUA, alguns estados começaram, desde a década de 1990, a oferecer entidades jurídicas a baixo custo "cujos níveis de confidencialidade, proteção frente aos credores e vantagens fiscais rivalizam com os dos tradicionais paraísos fiscais secretos do mundo." Adicione a isso a porcentagem cada vez menor dos impostos que os ricos e as empresas estadunidenses pagam e verão que estamos começando a ter um aspecto muito atrativo para aqueles que tratam de camuflar seu dinheiro.
3. Grandes bancos resgatados dirigem este negócio
Mas quem facilita este processo? Alguns nomes familiares saem rapidamente à superfície quando se vasculha os dados: Goldman Sachs, UBS e Credit Suisse são os três primeiros, e o Bank of America, Wells Fargo e JP Morgan Chase estão no Top 10. Segundo afirma o relatório, "Agora podemos acrescentar algo a mais a sua lista de distinções: são os atores principais dos refúgios fiscais de todo o mundo e ferramentas chave do injusto sistema tributário global”.
No final de 2010, os maiores 50 bancos privados administravam cerca de 12,1 trilhões de dólares em "ativos trans fronteiriços" investidos por seus clientes. É mais do que o dobro da cifra de 2005, e representa uma taxa média de crescimento anual superior a 16%.
"Desde bancos a empresas contábeis e advogados corporativos, algumas das maiores empresas do mundo são parte da trama de evasão fiscal global", escreve no The Guardian a investigadora financeira (e ex-trader de Goldman Sachs) Lydia Prieg. "Estas empresas não são pessoas jurídicas as quais possamos chamar a atenção para que paguem sua parte justa; sua razão de ser consiste em maximizar seus lucros e os de seus clientes."
"Até finais da década de 2000", afirma Henry, "a sabedoria convencional entre os capitalistas evasores era: 'O que existe de mais seguro que os bancos suíços, estadunidenses ou britânicos etiquetados como grandes demais para falir? '” Sem os resgates que acompanharam a crise financeira de 2008 – acrescenta - muitos dos bancos que estão escondendo dinheiro em espécie para os ultra ricos já não existiriam. "Dar por certo o apoio dos governos é precisamente a razão principal pela qual os super-ricos fazem seus negócios com os bancos de maior tamanho."
4. A desigualdade é pior do que acreditamos
Com toda esta riqueza oculta em todo o mundo, impossível de contar e de tributar – afirma a Tax Justice Network -, não resta dúvida de que estamos subestimando a desigualdade de ingressos e riqueza realmente existente. Stewart Lansley, autor de The Cost of Inequality (O custo da desigualdade), assegurou a Heather Stewart, do The Guardian: "Não há absolutamente nenhuma dúvida de que as estatísticas sobre a renda e a riqueza dos de cima diminuem a magnitude do problema".
Ao calcular o coeficiente Gini, que mede a desigualdade em uma sociedade, disse, "Não se recolhem os dados dos multimilionários, e inclusive quando se faz, não é adequadamente".
Este é um assunto tão importante que a Tax Justice Network incluiu um segundo relatório, ao mesmo tempo em que o de Henry, titulado "Inequality: You don't know the half of it" [3] (Desigualdade: você não conhece nem a metade). O estudo detalha todos os problemas da forma em que agora calculamos a desigualdade; seguidamente parecem ser, em essência, que não temos uma medida exata da verdadeira riqueza dos super-ricos. Os dados sobre ingressos fiscais estão disponíveis, mas se na realidade há trilhões escondidos por todo o mundo nos paraísos fiscais, como calcular os ingressos reais dos mais ricos do mundo?
A desigualdade disparou em todo o mundo, segundo os cálculos frequentemente utilizados. Se o 1% superior da população dos EUA não só é dono de 35,6% da riqueza, por exemplo, mas que também tem um volume de dinheiro muito maior escondido em algum lugar, que significado tem isto para nós?
Não esqueçamos, afirma o relatório, que "a desigualdade é uma opção política. Ou seja, nós decidimos o quê fazer como sociedade baseando-nos no montante de desigualdade que consideramos tolerável ou justo. Se esse montante é muito maior do que pensamos, de que forma desvaloriza nossas prioridades? Muitos estadunidenses já estão mal informados acerca de seu nível de desigualdade, mas este estudo confirma que inclusive os supostos especialistas estão subestimando em muito o problema”.
5. Os países "endividados" não devem, na realidade, nada
O relatório de Henry destaca um subgrupo de 139 países, de ingressos baixos ou médios, e destaca que segundo a maioria dos cálculos, os ditos 139 países tinham, em conjunto, uma dívida superior a quatro trilhões de dólares no final de 2010. Mas ao se tomar em conta todo o dinheiro que se acumula offshore, os países, na verdade, teriam uma dívida negativa de 10 trilhões de dólares, ou como Henry escreve:
"Uma vez tomados em consideração estes ativos ocultos e os ingressos que geram, muitos antigos países "devedores" seriam, de fato, países ricos. Mas o problema é que sua riqueza está depositada offshore, em mãos de suas próprias elites e seus banqueiros privados”.
Henry afirma também que os países em desenvolvimento em seu conjunto terminam sendo credores do mundo desenvolvido, em lugar de devedores, e o foram durante mais de uma década. "Isto significa que se trata realmente de um problema de justiça tributária, não simplesmente de ‘dívida’”.
Mas essas dívidas, como afirmamos, recaem nos ombros dos trabalhadores desses países, que não podem desfrutar das vantagens dos sofisticados paraísos fiscais.
E isto, é claro, não é só um problema do mundo em desenvolvimento. Hoje em dia, afirma Henry, o mundo desenvolvido tem sua própria crise da dívida (vejam-se os problemas atuais da zona do euro). O economista francês Thomas Piketty afirma, "a riqueza depositada em paraísos fiscais é provavelmente de um montante suficiente para converter a Europa em um credor muito grande com respeito ao resto do mundo”.
6. Quanto estamos perdendo?
Aqui está o centro da questão, não? É impossível saber a exatamente, é claro, devido a que as cifras são só estimativas, mas Henry calcula que se estes 21 trilhões de dólares não declarados obtivessem uma taxa de rendimento de 3% e os ingressos se gravaram em 30%, por si só gerariam receitas fiscais de cerca de 190 bilhões de dólares. Se a quantidade total de dinheiro colocada em paraísos fiscais fosse próxima a estimativa mais alta, ou seja, 32 trilhões de dólares, se obteriam cerca de 280 bilhões, o que é aproximadamente o dobro do montante que os países da OCDE gastam em ajuda ao desenvolvimento. Em outras palavras, uma enorme quantidade de dinheiro. E isso levando em conta que um rendimento de 3% é um cálculo muito prudente.
Estamos falando unicamente de impostos sobre a renda: os impostos sobre os lucros, impostos à herança e outros renderiam ainda mais.
Por isso Henry afirma que, no final das contas, poderíamos tomar este assunto como uma boa notícia. "O mundo acaba de localizar uma quantidade enorme de riqueza financeira que poderia ser utilizada para contribuir à solução dos problemas mundiais mais urgentes". "Temos a oportunidade de pensar não só acerca de como prevenir alguns dos abusos que conduziram a esta situação, mas também de pensar na melhor maneira de fazer uso dos ingressos atualmente não tributáveis que gera."
NOTAS
[1] James S. Henry, The Price of Offshore Revisited , 2012
[2] http://www.politifact.com/truth-ou-meter/statements/2012/jul/17/barack-obama/obama-ad-says-romney-stashed-money-caymam-islands/
[3] http://taxjustice.blogspot.be/2012/07/inequality-you-dont-know-half-of-it.html
(*) Publicado originalmente em Alternet. Tradução de Libório Júnior a partir da versão em espanhol publicada em Bitácora (Uruguai). Sarah Jaffe é jornalista.
Fonte: www.cartamaior.com.br
Cuba e seu futuro, sem o bloqueio
informativo da mídia dominante
Redação Carta Maior
Acaba de sair o livro “Cuba sem bloqueio: a revolução cubana e
seu futuro, sem as manipulações da mídia dominante”, de Hideyo Saito e Antonio
Gabriel Haddad, da Radical Livros*. Como anuncia o título, o trabalho procura
mostrar a realidade cubana atual de forma direta e fundamentada, sem o bloqueio
informativo que distingue a cobertura da mídia dominante. Cuba costuma ser
caracterizada por esses órgãos de comunicação como uma ditadura decadente, com
população empobrecida e oprimida, disposta a escapar para Miami ao menor
descuido da polícia, graças ao fracasso indiscutível do regime socialista. Em
contraste, “Cuba sem bloqueio” revela uma sociedade pobre, sim, mas
razoavelmente harmônica, sem miséria, sem fome, sem analfabetismo, sem violência
social e sem crianças abandonadas, imersa em um clima de debate aberto sobre
como criar um socialismo capaz de unir prosperidade econômica, democracia e
progresso social.
Para chegar a esse resultado, os autores pesquisaram em fontes cubanas e de vários outros países, independentemente de sua orientação política. Foram consultados livros, estudos acadêmicos, estatísticas, relatórios de organizações cubanas e internacionais (Unesco, Organização Mundial da Saúde, Cepal, Banco Mundial e muitas outras), publicações de think tanks (como o Conselho de Relações Exteriores dos Estados Unidos), além de periódicos, portais noticiosos da internet e outras fontes. Nos 12 capítulos redigidos com base no material reunido, Saito e Haddad relatam como a ilha caribenha decidiu permanecer socialista depois do súbito desaparecimento de seus parceiros comerciais do leste europeu, do recrudescimento do bloqueio econômico dos Estados Unidos e da expansão mundial da hegemonia neoliberal. Eles narram um processo de construção social que ainda luta para superar seus problemas, encarados como consequência de erros e de dificuldades políticas e econômicas de toda ordem, mas também de agressões e de obstáculos criados pelas potências dominantes.
O livro reconstitui a saída do líder histórico Fidel Castro do poder, a emoção do povo com seu afastamento e o início do governo dirigido por Raúl Castro, caracterizado pelas medidas econômicas tomadas para corrigir distorções que se acumularam devido às políticas emergenciais dos anos 1990. As decisões foram amadurecidas em debates públicos travados por economistas, sociólogos, cientistas sociais e dirigentes governamentais, que têm tido ecos em assembleias de trabalhadores e de estudantes em todo o país e repercutem ainda em conversas particulares, em obras artísticas, em publicações acadêmicas e também na mídia local.
Reinventar o socialismo
As discussões são dominadas por temas econômicos, mas abrangem também questões como o modelo eleitoral em vigor, a ampliação da liberdade de expressão artística e cultural, o reconhecimento pleno das uniões homoafetivas. Mais especificamente, constam da agenda os seguintes pontos: redefinição dos objetivos do sistema socialista; construção de um sistema econômico funcional, com a adoção complementar de formas de propriedade mista, cooperativada e privada; elevação qualitativa da participação popular; maior poder para a Assembleia Nacional; descentralização administrativa; fim do controle burocrático sobre a produção artística e cultural. Para o sociólogo Aurelio Alonso, subdiretor da revista Casa de las Américas, trata-se de criar um modelo capaz de assegurar a complementação entre justiça social e desenvolvimento econômico. No plano político, analisa Alonso, a História mostrou que o socialismo não se mantém sem democracia. Para ele, se houvesse um verdadeiro poder popular na União Soviética, Gorbatchov poderia ter sido bem-sucedido em reinventar o sistema socialista.
“Cuba sem bloqueio” relata que os projetos de lei mais importantes são debatidos antes pela população, para só então serem enviados à Assembleia Nacional do Poder Popular já com as alterações sugeridas. Foi em um processo desse tipo que, no início da década de 1990, o povo cubano se manifestou pela continuidade da construção socialista no país, apesar da conjuntura crítica surgida pela derrocada do socialismo europeu. Mostra também que os deputados eleitos (equivalentes aos nossos representantes da Câmara Federal) continuam a receber o salário que tinham em seus respectivos trabalhos, sem mordomia. Relata ainda o caso de um dissidente que tentou se candidatar a representante municipal, obtendo apenas 5% dos votos dos moradores de sua região. O livro conta que a posição do judiciário cubano, que deu ganho de causa a trabalhadores das áreas de arte e cultura vitimados por atos arbitrários do período conhecido como “quinquênio cinza” (década de 1970), ajudou a derrubar a própria política repressiva.
“Cuba sem bloqueio” disseca a chamada dissidência cubana. Em 2006, segundo relatório da Anistia Internacional, foi realizado em Cuba um encontro de “mais de 350 entidades dissidentes”, ao qual compareceram, paradoxalmente, apenas 171 delegados (isto é, menos de meio representante por organização!). O governo cubano diz que são entidades de fachada, criadas para facilitar o recebimento de dinheiro do escritório de representação dos EUA em Cuba. A verdade é que esses grupos guardam pouca semelhança com a oposição democrática que, na maioria dos países da América Latina, lutou contra ditaduras militares. Em que pese a repressão do período no Brasil, por exemplo, a oposição se organizou, ocupou espaços, promoveu manifestações de rua, enfim, enfrentou a ditadura. Muito sangue foi derramado, mas cada vez mais gente se uniu à exigência pelo fim do regime, até que este desmoronou. A dissidência cubana, ao contrário, não consegue crescer e aparecer, mesmo com todo o apoio de Washington e da mídia. É patético, a propósito, que o jornal O Estado de S. Paulo estampe como manchete, com direito à principal foto da edição, uma manifestação de protesto que reuniu dez (isso mesmo, uma dezena!) mulheres no centro de Havana.
Sítio medieval
Outro ponto forte do livro está no relato de como funciona o bloqueio econômico contra Cuba e como ele repercute no dia a dia da população. A medida de força é mantida unilateralmente por Washington, apesar da condenação anual de praticamente todos os países membros da ONU. Em outubro de 2011, a resolução que pedia o fim do bloqueio teve o apoio de 186 países, com o voto contrário apenas dos Estados Unidos e de Israel. O bloqueio fecha a Cuba o acesso ao maior mercado consumidor do mundo e proíbe os seguintes tipos de empresas de comerciar com a ilha: subsidiárias de empresas estadunidenses no exterior, companhias que tenham participação acionária ou cujos produtos contenham pelo menos 10% de peças, componentes ou tecnologia estadunidense e, de forma ampla e irrestrita, todas as firmas que pretendam negociar com os EUA.
Mais ainda: o navio mercante que aportar em território cubano não poderá utilizar portos estadunidenses durante os seis meses seguintes. Proíbe ainda qualquer organização que receba fundos estadunidenses de conceder crédito a Cuba, além de impedir o país de utilizar o dólar em suas transações internacionais, de operar por meio de bancos que mantenham negócio com os Estados Unidos e de usar a rede de fibra óptica para conexão à internet. Por último, cidadãos dos EUA não podem viajar a Cuba e vice-versa.
Ou seja, o bloqueio é uma versão moderna do sítio medieval, que tem o objetivo de estrangular economicamente o país. Cuba é obrigada a utilizar intermediários e empresas de fachada em seu comércio exterior, pagando cada transação à vista e incorrendo em comissões, fretes adicionais e taxas de risco que representam um custo adicional de 20 a 100% do valor de mercado do bem importado, segundo cálculos oficiais. Um estudo de 1992 da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), da ONU, avaliou que, enquanto Cuba contou com seus parceiros comerciais do mundo socialista, o bloqueio repercutia sobre 15% do intercâmbio do país; depois, passou a afetar toda a economia.
Outra nefasta política do governo estadunidense enfocada pelos autores é a Lei de Ajuste Cubano, que concede a condição de refugiado político e visto de residência permanente a qualquer cubano que chegar aos Estados Unidos, em contraste com o tratamento dado aos demais latino-americanos. Washington costuma usar a atração exercida por essa lei e a não concessão de visto regular de entrada nos EUA a cidadãos cubanos, esperando provocar saídas ilegais e desordenadas, que possam servir de propaganda contra a revolução. O livro de Saito e Haddad cita números oficiais estadunidenses para comprovar que, mesmo nessas condições, o fluxo de cubanos que vão aos Estados Unidos é proporcionalmente menor do que o de muitos países latino-americanos. Menciona também o crescente ativismo de exilados favoráveis à revolução, que criaram associações de solidariedade a Cuba em pelo menos 45 países das Américas, da Europa, da Ásia e da África, incluindo o Brasil.
O verdadeiro crime de Cuba
“Cuba sem bloqueio” também aborda fatos que costumam ser omitidos ou minimizados pelos órgãos dominantes de comunicação. É o caso das políticas sociais do país, elogiadas por estudos de organizações internacionais tão insuspeitas (para o caso) como o Banco Mundial e os órgãos ligados à ONU. Num relatório intitulado “Panorama Social da América Latina e do Caribe 2000-2001”, a Cepal observa que, além de investir mais que seus vizinhos da região em programas sociais, Cuba não sacrificou o bem-estar da população quando sua economia entrou em depressão, nos idos de 1990. Os investimentos reais per capita na área social cresceram aproximadamente 23% ao ano entre 1993 e 2001, enquanto o incremento médio do PIB foi de 1,6% anual no mesmo período.
Os resultados são visíveis para quem quiser enxergá-los. Um exemplo apenas: os estudantes cubanos foram os grandes destaques das duas pesquisas comparativas organizadas pela Unesco para avaliar as redes de ensino de países da América Latina, nos moldes dos famosos levantamentos da OCDE. Na primeira delas, o desempenho cubano foi tão superior ao dos demais países que a Unesco pensou ter havido algum equívoco. Por isso refez o teste com outra amostra de estudantes cubanos, mas os excelentes resultados foram confirmados. O mesmo desempenho cubano se repetiu na segunda pesquisa. A imprensa brasileira noticiou as pesquisas, mas não informou sobre a façanha cubana, ao contrário do The New York Times, que destacou o fato até no título da sua matéria. Em suas análises técnicas sobre as pesquisas, a Unesco coloca a educação cubana no nível da dos países líderes do primeiro mundo, da mesma forma como a OMS classifica os indicadores de saúde do país. Outro exemplo de apagão informativo ocorreu quando a revista Veja entrevistou o pedagogo e economista Martin Carnoy, que estava no Brasil para lançar o livro “A vantagem acadêmica de Cuba: por que seus alunos vão melhor na escola”. Na entrevista com o especialista divulgada em seu portal, a publicação cometeu a proeza de não mencionar o ensino cubano e o livro.
Como vimos, “Cuba sem bloqueio” não fala de paraíso terrestre. Mas levanta algumas questões: Esse país é mesmo o retrato do fracasso do socialismo, como pretende a classe dominante capitalista e sua mídia? Nesse caso, como se explica que Cuba, apesar das pressões e agressões que sofre e em meio a uma crise econômica, consegue manter padrões de saúde e de educação que se igualam aos dos países capitalistas mais ricos? Provavelmente a fúria da mídia dominante se deve justamente à sua incapacidade de responder satisfatoriamente a perguntas como essas. Como disse Noam Chomsky: “O que é intolerável para essa mídia (‘o verdadeiro crime de Cuba’) são os êxitos cubanos, que podem servir de exemplo para povos de países subdesenvolvidos”.
(*) O livro tem 448 páginas e custa R$ 45,00. Pode ser adquirido no portal da editora: www.radicallivros.com.br. A editora ainda não conseguiu divulgar o livro na grande imprensa, nem colocá-lo nas vitrines das redes de livrarias.
Para chegar a esse resultado, os autores pesquisaram em fontes cubanas e de vários outros países, independentemente de sua orientação política. Foram consultados livros, estudos acadêmicos, estatísticas, relatórios de organizações cubanas e internacionais (Unesco, Organização Mundial da Saúde, Cepal, Banco Mundial e muitas outras), publicações de think tanks (como o Conselho de Relações Exteriores dos Estados Unidos), além de periódicos, portais noticiosos da internet e outras fontes. Nos 12 capítulos redigidos com base no material reunido, Saito e Haddad relatam como a ilha caribenha decidiu permanecer socialista depois do súbito desaparecimento de seus parceiros comerciais do leste europeu, do recrudescimento do bloqueio econômico dos Estados Unidos e da expansão mundial da hegemonia neoliberal. Eles narram um processo de construção social que ainda luta para superar seus problemas, encarados como consequência de erros e de dificuldades políticas e econômicas de toda ordem, mas também de agressões e de obstáculos criados pelas potências dominantes.
O livro reconstitui a saída do líder histórico Fidel Castro do poder, a emoção do povo com seu afastamento e o início do governo dirigido por Raúl Castro, caracterizado pelas medidas econômicas tomadas para corrigir distorções que se acumularam devido às políticas emergenciais dos anos 1990. As decisões foram amadurecidas em debates públicos travados por economistas, sociólogos, cientistas sociais e dirigentes governamentais, que têm tido ecos em assembleias de trabalhadores e de estudantes em todo o país e repercutem ainda em conversas particulares, em obras artísticas, em publicações acadêmicas e também na mídia local.
Reinventar o socialismo
As discussões são dominadas por temas econômicos, mas abrangem também questões como o modelo eleitoral em vigor, a ampliação da liberdade de expressão artística e cultural, o reconhecimento pleno das uniões homoafetivas. Mais especificamente, constam da agenda os seguintes pontos: redefinição dos objetivos do sistema socialista; construção de um sistema econômico funcional, com a adoção complementar de formas de propriedade mista, cooperativada e privada; elevação qualitativa da participação popular; maior poder para a Assembleia Nacional; descentralização administrativa; fim do controle burocrático sobre a produção artística e cultural. Para o sociólogo Aurelio Alonso, subdiretor da revista Casa de las Américas, trata-se de criar um modelo capaz de assegurar a complementação entre justiça social e desenvolvimento econômico. No plano político, analisa Alonso, a História mostrou que o socialismo não se mantém sem democracia. Para ele, se houvesse um verdadeiro poder popular na União Soviética, Gorbatchov poderia ter sido bem-sucedido em reinventar o sistema socialista.
“Cuba sem bloqueio” relata que os projetos de lei mais importantes são debatidos antes pela população, para só então serem enviados à Assembleia Nacional do Poder Popular já com as alterações sugeridas. Foi em um processo desse tipo que, no início da década de 1990, o povo cubano se manifestou pela continuidade da construção socialista no país, apesar da conjuntura crítica surgida pela derrocada do socialismo europeu. Mostra também que os deputados eleitos (equivalentes aos nossos representantes da Câmara Federal) continuam a receber o salário que tinham em seus respectivos trabalhos, sem mordomia. Relata ainda o caso de um dissidente que tentou se candidatar a representante municipal, obtendo apenas 5% dos votos dos moradores de sua região. O livro conta que a posição do judiciário cubano, que deu ganho de causa a trabalhadores das áreas de arte e cultura vitimados por atos arbitrários do período conhecido como “quinquênio cinza” (década de 1970), ajudou a derrubar a própria política repressiva.
“Cuba sem bloqueio” disseca a chamada dissidência cubana. Em 2006, segundo relatório da Anistia Internacional, foi realizado em Cuba um encontro de “mais de 350 entidades dissidentes”, ao qual compareceram, paradoxalmente, apenas 171 delegados (isto é, menos de meio representante por organização!). O governo cubano diz que são entidades de fachada, criadas para facilitar o recebimento de dinheiro do escritório de representação dos EUA em Cuba. A verdade é que esses grupos guardam pouca semelhança com a oposição democrática que, na maioria dos países da América Latina, lutou contra ditaduras militares. Em que pese a repressão do período no Brasil, por exemplo, a oposição se organizou, ocupou espaços, promoveu manifestações de rua, enfim, enfrentou a ditadura. Muito sangue foi derramado, mas cada vez mais gente se uniu à exigência pelo fim do regime, até que este desmoronou. A dissidência cubana, ao contrário, não consegue crescer e aparecer, mesmo com todo o apoio de Washington e da mídia. É patético, a propósito, que o jornal O Estado de S. Paulo estampe como manchete, com direito à principal foto da edição, uma manifestação de protesto que reuniu dez (isso mesmo, uma dezena!) mulheres no centro de Havana.
Sítio medieval
Outro ponto forte do livro está no relato de como funciona o bloqueio econômico contra Cuba e como ele repercute no dia a dia da população. A medida de força é mantida unilateralmente por Washington, apesar da condenação anual de praticamente todos os países membros da ONU. Em outubro de 2011, a resolução que pedia o fim do bloqueio teve o apoio de 186 países, com o voto contrário apenas dos Estados Unidos e de Israel. O bloqueio fecha a Cuba o acesso ao maior mercado consumidor do mundo e proíbe os seguintes tipos de empresas de comerciar com a ilha: subsidiárias de empresas estadunidenses no exterior, companhias que tenham participação acionária ou cujos produtos contenham pelo menos 10% de peças, componentes ou tecnologia estadunidense e, de forma ampla e irrestrita, todas as firmas que pretendam negociar com os EUA.
Mais ainda: o navio mercante que aportar em território cubano não poderá utilizar portos estadunidenses durante os seis meses seguintes. Proíbe ainda qualquer organização que receba fundos estadunidenses de conceder crédito a Cuba, além de impedir o país de utilizar o dólar em suas transações internacionais, de operar por meio de bancos que mantenham negócio com os Estados Unidos e de usar a rede de fibra óptica para conexão à internet. Por último, cidadãos dos EUA não podem viajar a Cuba e vice-versa.
Ou seja, o bloqueio é uma versão moderna do sítio medieval, que tem o objetivo de estrangular economicamente o país. Cuba é obrigada a utilizar intermediários e empresas de fachada em seu comércio exterior, pagando cada transação à vista e incorrendo em comissões, fretes adicionais e taxas de risco que representam um custo adicional de 20 a 100% do valor de mercado do bem importado, segundo cálculos oficiais. Um estudo de 1992 da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), da ONU, avaliou que, enquanto Cuba contou com seus parceiros comerciais do mundo socialista, o bloqueio repercutia sobre 15% do intercâmbio do país; depois, passou a afetar toda a economia.
Outra nefasta política do governo estadunidense enfocada pelos autores é a Lei de Ajuste Cubano, que concede a condição de refugiado político e visto de residência permanente a qualquer cubano que chegar aos Estados Unidos, em contraste com o tratamento dado aos demais latino-americanos. Washington costuma usar a atração exercida por essa lei e a não concessão de visto regular de entrada nos EUA a cidadãos cubanos, esperando provocar saídas ilegais e desordenadas, que possam servir de propaganda contra a revolução. O livro de Saito e Haddad cita números oficiais estadunidenses para comprovar que, mesmo nessas condições, o fluxo de cubanos que vão aos Estados Unidos é proporcionalmente menor do que o de muitos países latino-americanos. Menciona também o crescente ativismo de exilados favoráveis à revolução, que criaram associações de solidariedade a Cuba em pelo menos 45 países das Américas, da Europa, da Ásia e da África, incluindo o Brasil.
O verdadeiro crime de Cuba
“Cuba sem bloqueio” também aborda fatos que costumam ser omitidos ou minimizados pelos órgãos dominantes de comunicação. É o caso das políticas sociais do país, elogiadas por estudos de organizações internacionais tão insuspeitas (para o caso) como o Banco Mundial e os órgãos ligados à ONU. Num relatório intitulado “Panorama Social da América Latina e do Caribe 2000-2001”, a Cepal observa que, além de investir mais que seus vizinhos da região em programas sociais, Cuba não sacrificou o bem-estar da população quando sua economia entrou em depressão, nos idos de 1990. Os investimentos reais per capita na área social cresceram aproximadamente 23% ao ano entre 1993 e 2001, enquanto o incremento médio do PIB foi de 1,6% anual no mesmo período.
Os resultados são visíveis para quem quiser enxergá-los. Um exemplo apenas: os estudantes cubanos foram os grandes destaques das duas pesquisas comparativas organizadas pela Unesco para avaliar as redes de ensino de países da América Latina, nos moldes dos famosos levantamentos da OCDE. Na primeira delas, o desempenho cubano foi tão superior ao dos demais países que a Unesco pensou ter havido algum equívoco. Por isso refez o teste com outra amostra de estudantes cubanos, mas os excelentes resultados foram confirmados. O mesmo desempenho cubano se repetiu na segunda pesquisa. A imprensa brasileira noticiou as pesquisas, mas não informou sobre a façanha cubana, ao contrário do The New York Times, que destacou o fato até no título da sua matéria. Em suas análises técnicas sobre as pesquisas, a Unesco coloca a educação cubana no nível da dos países líderes do primeiro mundo, da mesma forma como a OMS classifica os indicadores de saúde do país. Outro exemplo de apagão informativo ocorreu quando a revista Veja entrevistou o pedagogo e economista Martin Carnoy, que estava no Brasil para lançar o livro “A vantagem acadêmica de Cuba: por que seus alunos vão melhor na escola”. Na entrevista com o especialista divulgada em seu portal, a publicação cometeu a proeza de não mencionar o ensino cubano e o livro.
Como vimos, “Cuba sem bloqueio” não fala de paraíso terrestre. Mas levanta algumas questões: Esse país é mesmo o retrato do fracasso do socialismo, como pretende a classe dominante capitalista e sua mídia? Nesse caso, como se explica que Cuba, apesar das pressões e agressões que sofre e em meio a uma crise econômica, consegue manter padrões de saúde e de educação que se igualam aos dos países capitalistas mais ricos? Provavelmente a fúria da mídia dominante se deve justamente à sua incapacidade de responder satisfatoriamente a perguntas como essas. Como disse Noam Chomsky: “O que é intolerável para essa mídia (‘o verdadeiro crime de Cuba’) são os êxitos cubanos, que podem servir de exemplo para povos de países subdesenvolvidos”.
(*) O livro tem 448 páginas e custa R$ 45,00. Pode ser adquirido no portal da editora: www.radicallivros.com.br. A editora ainda não conseguiu divulgar o livro na grande imprensa, nem colocá-lo nas vitrines das redes de livrarias.
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