14 setembro 2012

POLÍTICA


A ÓPERA DOS MALANDROS

Jacques Gruman

Minhas mais antigas memórias políticas vão completar meio século. Era a campanha pelo fim do parlamentarismo, imposto pelos golpistas civis e militares em 1962 para que Jango tomasse posse após a renúncia de Jânio. Houve intensa participação popular e o rádio teve papel destacado. Até hoje lembro o estribilho do jingle cantado pelos maiores craques das artes: O parlamentarismo não tem jeito nem razão/No dia 6, vamos dizer que não! Há um registro precioso deste momento, regido por Bibi Ferreira, no vídeo abaixo. O presidencialismo ganhou fácil e o estancieiro reformista governou, com plenos poderes presidenciais, durante pouco mais de um ano. Prelúdio em dor maior.



Uma segunda lembrança, na véspera do golpe militar, foi Jango no Automóvel Clube, centro do Rio, como convidado de honra numa festa promovida pela Associação de Sargentos e Suboficiais da Polícia Militar. Num discurso inflamado, radicalizou a defesa das Reformas de Base, prometidas no grande comício da Central do Brasil, em 13 de março de 1964, e denunciou as manobras golpistas. Entregou de vez o pescoço aos carrascos. Na minha casa, classe média baixa na Tijuca, sussurros preocupados, que, na época, gravei mas não entendi. “Ih, lá vem os comunistas de novo”, a voz de meu pai não traía sua posição política. Os comunistas não só não vieram, mas foram trucidados pelos que, durante 21 anos, submeteram o país à mais longa ditadura de sua história.

São resíduos de uma época polarizada. Direita e esquerda disputavam espaço, verbalizando as posições de classe de uma sociedade que exigia mudanças e era assediada pelo clima sombrio da Guerra Fria. Olhando para trás, vejo o desnível abissal entre os políticos de então e os de hoje. 

Começo com Carlos Lacerda, comunista na juventude e golpista profissional desde o início dos anos 50. Jornalista e orador brilhante, chegava a intimidar seus adversários políticos quando discursava, pela extraordinária capacidade que tinha para improvisar. O Corvo, como Lan o desenhou para ilustrar matéria de Samuel Wainer, não era fácil. Durante o golpe de 1964, entrincheirou-se no Palácio Guanabara e discursou, lançou apelos, provocou. Dirigindo-se ao almirante Cândido Aragão, comandante-geral do Corpo de Fuzileiros Navais, despejou: “Almirante Aragão, Almirante Aragão, assassino, monstruoso, incestuoso e miserável. Almirante Aragão, não te aproximes senão te mato com meu revólver”. Linguagem sóbria do governador da Guanabara, hem ? Discordo de cada pedaço de sua trajetória de udenista antidemocrático, de suas articulações antipopulares, mas sou forçado a reconhecer que ele está a anos-luz da mediocridade dos políticos que andam pedindo nosso voto. A direita também tinha seu brilho. 

Uma historinha do Corvo. Viajou alegre a Paris para “explicar” o golpe de 1964. Numa entrevista coletiva, um jornalista francês ironizou: “Por que as revoluções sul-americanas são sempre sem sangue ?”. Lacerda nem pestanejou: “Porque são semelhantes às luas-de-mel francesas”.

Uma Câmara de Vereadores lotada para ouvir discursos de um político. Nem o mais delirante dos místicos, o mais descontrolado surrealista, imaginaria uma cena dessas. E, no entanto, meus caros, isso já aconteceu. Aparício Torelly, o Barão de Itararé, foi vereador no então Distrito Federal pelo PCB. Eleito em 1946, usou slogans inesquecíveis na campanha. Um deles: “Mais água e mais leite, mas menos água no leite !”. Muita gente ia à Câmara só para ouvi-lo. Quando forças reacionárias conseguiram, em 1947, a cassação do partido, ele se despediu com um discurso antológico, em que terminava dizendo: “Saio da vida pública e entro na privada”. Grande Barão !

Em outubro, elegeremos prefeitos e vereadores. A época dos grandes comícios ficou no passado. Hoje, as ferramentas mais usadas para convencer o eleitorado são os meios eletrônicos e a linguagem planejada/enganosa dos marqueteiros. A preços monumentais. A eleição do prefeito de São Paulo, por exemplo, pode custar RS 40 milhões ao vencedor. A cereja do bolo é o chamado horário eleitoral gratuito das televisões. O nível geral é tão ruim, tão deplorável, que dá vontade de repetir o que o Henfil desenhou ainda nos anos 70. Sob uma silhueta de prédios, a frase: “Em Brasília, 19 horas”. Ia começar a Voz do Brasil no rádio. No quadrinho seguinte, sob a mesma silhueta e vindo de todas as janelas, o som: Clic ! Clic ! Clic ! Resisti, não desliguei a televisão e acompanhei, por duas semanas, a propaganda dos candidatos a vereador. É um choque brutal, mas reflete muito bem em que se transformou a atividade política. Valeu a pena e compartilho minhas reflexões.

Com exceções moleculares, as siglas deixaram de ter qualquer significado. Projetos ideológicos deram lugar a uma gelatina indiferenciada, não raro demagógica e oportunista. Ao invés de educar politicamente os eleitores, os candidatos repetem, mecanicamente, frases vazias e propostas incompreensíveis. Eliminaram a fronteira entre esquerda e direita.

Há uma enxurrada de religiosos candidatos e apoiadores de candidatos. Nada tenho contra quem tem fé, mas o lugar para o exercício dela não seriam os templos ? Será que estão nos oferecendo um Estado clerical ? As mensagens não variam muito: fulano é abençoado, beltrana vai fazer “um Rio de Deus”, sicrano vai defender “os valores cristãos”, um se diz “professor e católico”, outro “professor e franciscano”. Um candidato do PCdoB escancara: “Você que crê em Deus, vote em meu irmão”. Oportunismo barato, mas que ganha votos em grotões e currais, numa população habituada a desconfiar dos polítcos “profissionais”.

Estão querendo reeditar as capitanias hereditárias. Há pais e mães reivindicando votos para seus filhos queridos. É o voto DNA. O Neguinho da Beija-Flor está pedindo votos para sua esposa, que concorre pelo PT. O neto do Brizola apela para o ectoplasma do avô. Que radicalizem e defendam de uma vez a volta da monarquia. Serviço completo.

Nomes e apelidos, digamos, exóticos, enfeitam (ridicularizam ?) o quadro. Dudu Bodinho, Chapisco, Cabeção, Palhaço Seboso, Carlinhos Míssil, Chico Mé, Renata do Bole-Bole (epa !), Panela, Hélio do Alho. A lista não tem fim. Seria charmoso, pitoresco, mas apenas serve para ofuscar o principal: nenhum deles parece ter a menor ideia do que é ser legislador público. Participam de uma farsa grotesca, reedição maquiada da Lei Falcão da ditadura. Têm alguns segundos para balbuciar meia dúzia de palavras. Os menos afortunados apenas sorriem, levantam o polegar. Nada que se assemelhe a um debate sério. É o MERDA – Método Enéas de Rajadas Discursivas Apopléticas em ação.

No mais, há doutores paramentados com seus jalecos e estetoscópios (ah, nossa velha e renitente tradição bacharelesca), mentirosos (como o cidadão que disse ter acabado com os sequestros no Rio), artistas decadentes, diretores do Flamengo (que não se envergonham de usar a popularidade do time de futebol para enganar os eleitores; afinal de contas, trata-se de campanha para a Câmara de Vereadores, não para gerente de clube ou de estádio de futebol), tios e tias (recreadores de festas infantis).

Nas ruas, apenas gente alugada para fazer propaganda. Militância orgânica ? Onde ? As esquerdas que não desistiram da proposta socialista têm, infelizmente, baixa capilaridade social e poucos recursos para usar com eficiência os meios de comunicação de massa. Resultado: poucos votos. Se a revolução não passa pela televisão, bem, aí a conversa é outra.

A esse teatro burlesco chamam democracia.

(*) Engenheiro químico, é militante internacionalista da esquerda judaica no Rio de Janeiro.


Fonte: www.cartamaior.com.br 




























O PSB e a novíssima direita







Escrevo do Recife, em setembro de 2012, em meio a uma eleição municipal em que o Partido Socialista Brasileiro (PSB), liderado pelo atual governador do estado, Eduardo Campos, compete voto a voto com o Partido dos Trabalhadores. Ocupando a prefeitura há 12 anos, o PT vive pela primeira vez em três eleições uma real – senão inexorável – ameaça de derrota eleitoral. Inicialmente desconhecido da população, o candidato do PSB, “Geraldo 40”, ultrapassou as expectativas de voto do candidato petista, o até então Senador, Humberto Costa. 

Sobre os ombros de Eduardo Campos e dos seus 82% de votos nas últimas eleições para o Governo do Estado, “Geraldo 40” quase não precisa dizer a que veio, tampouco se apresentar. O “40” herdado de Eduardo vem lhe garantindo capital simbólico suficiente. Por outro lado, Humberto desliza numa apatia incendiária. O esquecimento da existência de um prefeito petista na cidade (qual é mesmo o nome dele?) e a crescente deslegitimação do PT entre as organizações e intelectualidades de esquerda deixam Humberto e suas boas intenções num vácuo retórico incontornável: afinal, como convencer a população do Recife a não votar no candidato de Eduardo e sua unanimidade? O que diferencia Humberto e o PT a ponto de serem eles merecedores de escolha?

PSB e PT, de fato, guardam cada vez mais semelhanças. O recrudescimento das bases populares do Partido dos Trabalhadores; o emprego governamental de estratégias de negação e criminalização de movimentos sociais – os cortes de ponto dos servidores públicos em greve, os apelos à limitação legal do direito à greve, a contenção de protestos, a não abertura real de negociações etc.; o neodesenvolvimentismo econômico; o investimento em megaprojetos aliado ao abandono da reforma agrária e à violência contra populações tradicionais indígenas e quilombolas; as alianças, já não mais tão desconfortáveis, com partidos políticos conservadores: PT e PSB aproximam, dia após dia, o seu “socialismo” de uma cortante indiferenciação ideológica e se afastam, minuto a minuto, das esquerdas. 

Isso de tal forma que a compreensão de suas diferenças se encontra menos nos vínculos que o PT ainda mantém, timidamente, com setores das esquerdas do país – organizações dos movimentos sindicais, estudantis e populares – e mais no modo como o PSB passa, à frente do PT, à constituição da novíssima direita brasileira.

Com a derrocada do PFL, a desesperança do tucanato engendrada pelo lulismo e com parte significativa dos partidos de direita, sobretudo os menores, reunidos na base do Governo Federal, a direita nacional perdeu sua expressão partidária autônoma. Aquela indiferenciação ideológica a que me referi anteriormente permitiu que os sujeitos constituintes do campo direitista se dispersassem em diversas organizações partidárias, quase todas necessárias à conservação das engrenagens governamentais. O PSD de Kátia Abreu (ex-PFL e dirigente parlamentar do agronegócio brasileiro) talvez seja o exemplo mais claro desse fenômeno. 

Essa dispersão, entretanto, não significa desaparecimento. Os setores e classes sociais que retroalimentam os interesses da direita, afinal, não deixaram de existir. Fragmentada em partidos da base governista e nos partidos centrais, ainda que enfraquecidos, de oposição, a direita se adapta escorregadia. Dois anos atrás, nas eleições que levaram Dilma Rousseff à presidência, os direitistas mostraram seus dentes no tradicional apoio a José Serra, ainda que alguns deles já se achassem lado a lado ao lulismo. Respeitadas as complexidades da distribuição do trabalho social de dominação, contudo, nesses fluxos do poder, PT e PSDB ainda esboçam um confronto nítido. Dilma, nem mesmo com todo o apoio de Lula, conseguiria alcançar os números que Eduardo Campos atingiu em Pernambuco. O próprio Lula não havia conseguido.

Os 82% de votos são emblemáticos. Se no cenário nacional, PT e PSDB se enfrentavam – e as diferenças ideológicas se mostravam, mesmo que de forma reativa, sobre questões como aborto, direitos humanos e direitos de homossexuais – em Pernambuco, nós nos perguntávamos: onde está a direita? A resposta: com o PSB. A oposição simbólica de Jarbas Vasconcelos (PMDB) a Eduardo Campos não refletia os rearranjos históricos dos sujeitos em jogo. De fato, aqueles coronéis a que me referi anteriormente enlaçaram-se ao Governador. Lembro de ter em mãos, à época das eleições, um santinho de um candidato a Deputado Federal, liderança nacional do PSDB e conhecido latifundiário local, com indicações de voto para José Serra e Eduardo Campos, a despeito de o apoio formal psdbista pertencer a Jarbas. 

Diferentemente do Partido dos Trabalhadores, o PSB vem conseguindo arregimentar os setores mais tradicionais da direita brasileira. Nestas eleições municipais, em João Pessoa e Belo Horizonte, por exemplo, os candidatos do PSB trazem em suas bases de apoio tanto o PSDB como o DEM. Trata-se de uma jogada política em expansão, não de algo excepcional, e se conecta ao projeto de ascensão política do PSB sobre os horizontes eleitorais do PT. Nas eleições de 2010 para o Governo da Paraíba, a aliança PSB/PSDB/DEM já se formava. No Governo do Ceará, encabeçado por Cid Gomens, o PSB mantinha o PSDB de Tasso Jereissati entre os seus apoiadores mais dispostos.

A novíssima direita emerge, dessa maneira, do seio de sua dispersão nos partidos menores que figuram na base do Governo Federal – e que, nos passos do PMDB, estarão com quem quer que ocupe o Palácio da Alvorada –e dos recentes laços dos partidos centrais da direita tradicional com uma esquerda cada vez mais indistinta e, portanto, nada de esquerda. O PSB é sua face mais evidente. Aglutina tanto os partidos menores como os hoje enfraquecidos partidos tradicionais da direita. Sem pudores, sem pruridos. Em mais uma diferença do PT, o PSB não precisa se justificar por “trair” as esquerdas brasileiras. De fato, ninguém espera dele quaisquer desculpas.

(*) Roberto Efrem Filho é professor da UFPB e doutorando em Ciências Sociais no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp.




Fonte: www.cartamaior.com.br 


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