01 setembro 2012

POLÍTICA - I


O retrato do País




Mino Carta, na Revista  CartaCapital

Não fosse enredo da vida real, o processo do chamado “mensalão” seria espetáculo ímpar na capacidade de trafegar entre tragédia e comédia com toques exemplares de drama e de farsa. Não cabe desmerecê-lo, contudo, nesta versão próxima do terceiro ato, o do epílogo, ao menos teoricamente, e que me arrisco a encarar como crítico teatral disposto a registrar de saída seu mérito inegável: o mensalão, em todos os seus aspectos, retrata à perfeição os males do Brasil. A inesgotável mazela, a hipocrisia inata dos senhores, o patrimonialismo do sistema. Um conjunto excepcional de prepotência e parvoíce.
Raposa-mor. Este está por trás de tudo. A edição é de 10 de setembro de 2008
Padecemos um longo prólogo, longo demais, a partir da denúncia do inconfiável Roberto Jefferson, e ainda assim rico em eventos que se fundem no entrecho central mesmo quando parecem desligados do contexto. Por exemplo, a presença do banqueiro Daniel Dantas. Vibra claramente na própria origem do mensalão como vibrou nos pregressos de marca tucana. E desaguou na Operação Satiagraha, enfim adernada miseravelmente porque DD está por trás de tudo, e muito além do que se imagine.
Marcos Valério serviu a Dantas e dele José Dirceu é bom amigo. Bela figura a ­ocupar a ribalta sete anos atrás, começo do prólogo, foi o ministro Luiz Gushiken, o samurai, como então o batizei, um inocente que pagou caro por sua inocência. Cavaleiro sem mancha, cometeu o pecado de enxergar em Dantas o grande vilão de todas as situações. Pecado imperdoável, tudo indica. A respeito, recomendo nesta edição o texto assinado pelo redator-­chefe Sergio Lirio, a retratar uma personagem de insólita dignidade, sacrificada injustamente ao ser forçada a deixar o governo.
O início do primeiro ato propõe Roberto Gurgel, o procurador-geral, Gogol se deliciaria com ele, fâmulo da treva e da reação, escalado para definir o mensalão como “o mais atrevido e escandaloso esquema de corrupção e de desvio de dinheiro público flagrado no Brasil”. Não lhe são inferiores, talvez mais daninhos, a bem da verdade factual, os anteriores urdidos pelo tucanato, a partir da compra de votos no Congresso para permitir a reeleição de Fernando Henrique Cardoso. Decerto mais imponente, o maior de todos, o episódio das privatizações, promovidas pelo mesmo FHC e protagonizado, entre outros, olhem só, por Daniel Dantas.
Não é que nossos juristas façam jus ao respeito unânime da audiência, sobretudo aquela que se apinha no balcão. Alguns produzem argumentações destinadas a suscitar pena em uma plateia mais atilada e menos comprometida do que a da ­casa-grande, esta escorada pelos barões da mídia e seus sabujos, unidos na ameaça aos próprios ministros do Supremo inclinados a um julgamento imparcial. O ministro Luiz Fux, no seu realismo exasperado, pretendeu condenar por peculato um réu chamado a responder por outros crimes, conforme teve de ser bondosamente avisado ao cabo de sua diatribe. Enquanto isso, Ricardo Lewandowski se abala a telefonar para um crítico global, Merval Pereira, que contestava duramente seus argumentos a favor de João Paulo Cunha. Contribuição inefável à imortalidade de um jornalista acadêmico, a seguir as pegadas culturais do seu falecido patrão. Donde, largo à cultura. Leiam, a propósito, Mauricio Dias na sua Rosa dos Ventos.
O primeiro ato do espetáculo presta-se a demonstrar a inadequação do título “mensalão”. Como sempre sustentou Carta­Capital. Provas certamente haverá de outros delitos, igualmente condenáveis, peculato, corrupção, lavagem de dinheiro. Quanto ao uso de caixa 2, a lei brasileira prontifica-se a uma lamentável leniência na punição do crime eleitoral. O segundo ato inaugura-se em proveito de outra constatação, caso não tivesse já dado o ar da sua desgraça: um grupo de petistas, que não seria o caso de chamar de aloprados, decidiu imitar a estratégia tucana desenhada e comandada por Serjão Motta a partir de 1994 com o propósito de manter no poder ad aeternitatem o pássaro incapaz de voar.
Não deu, José Serra lá estava para atrapalhar desde 2002, a despeito do maciço apoio midiático. A diferença entre uns e outros está no fato de que o Partido dos Trabalhadores nasceu em odor de subversão e de nada lhe adiantou abjurar pelo caminho a fé primeva. Além disso, no caso do ex-metalúrgico Lula pesa, em primeiro lugar, o ódio de classe, sentimento tão natural na casa-grande. Em contrapartida, a trajetória da esquerda nativa, oportuno é sublinhar, é tão deplorável quanto tudo o mais, e cabe neste enredo de traições aos ideais propalados em vão, de promessas bombásticas e falsos propósitos inexoravelmente descumpridos em nome do oportunismo aconselhado pelo momento fugidio.
Estamos na iminência do terceiro ato, mas o que se viu até agora estimula depressões monumentais. E aonde quer que o espectador se volte não encontrará razões de alívio.




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Buffet farto, orquestra afinada e pista vazia





Saul Leblon, no Blog das Frases


Há certo gosto de decepção no ar. O conservadorismo que durante meses, anos, cultivou o julgamento do chamado mensalão como uma espécie de terceiro turno sanitário, capaz de redimir revezes acumulados desde 2002 no ambiente hostil do voto, de repente percebe-se algo solitário na festa feita para arrebanhar multidões.

Como assim se os melhores buffets da praça foram contratados; a orquestra ensaiou cinco anos a fio e o repertório foi escolhido a dedo?

Por que então a pista está vazia?

Pouca dúvida pode haver, estamos diante de um evento de coordenação profissional.

O timing político coincide exatamente com o calendário eleitoral de 2012; a similitude e a precedência comprovadas do PSDB na mesma e disseminada prática de caixa 2 de campanha --nem por isso virtuosa--, e que ora distingue e demoniza o PT nas manchetes e sentenças, foi enterrada no silêncio obsequioso da mídia.

Celebridades togadas não sonegam seu caudaloso verbo à tarefa de singularizar o que é idêntico.Tudo caminha dentro do figurino previsto, costurado com o afinco das superproduções, o que falta então?

Apenas o essencial: a alegria do povo.

A população brasileira não tem ilusões. Ninguém enxerga querubins no ambiente nebuloso da luta política. Consciente ou intuitiva, ela sabe a seu modo que a política brasileira não é o que deveria ser: o espaço dos que não tem nenhum outro espaço na economia e na sociedade.

A distância em relação ao ambiente autofestivo da mídia condensa essa sabedoria em diferentes versões.

Privatizada pelo financiamento de campanha a cargo dos mercados, a política foi colonizada pelos mercadores. Afastada do cidadão pelo fosso cravado entre a vontade da urna e o definhamento do voto no sistema representativo, a política é encarada exatamente como ela é: um matrimônio litigioso entre a esperança e a decepção.

O PT do qual se cobra aquilo que não se pratica em muitos círculos - à direita e à esquerda - é protagonista dessa ambiguidade; personagem e cronista dos seus limites, possibilidades e distorções.

Que tenha aderido à lógica corrosiva do financiamento eleitoral vinculado ao caixa 2 das empresas e , ao mesmo tempo, protagonizado um ciclo de governo que faz do Brasil hoje o país menos desigual de sua história (de obscena injustiça social), ilustra a complexidade desse jogo pouco afeito a vereditos binários.

Essa ambiguidade não escapa ao discernimento racional ou intuitivo da sociedade.

Se por um lado semeia degenerações clientelistas e apostas recorrentes nos out-siders que se apresentam como entes 'acima dos partidos', ao mesmo tempo é uma vacina de descrença profilática em relação a encenações de retidão como a que se assiste agora.

A repulsa epidêmica dos eleitores de São Paulo a um dos patrocinadores
desse rega-bofe, do qual se imaginava o principal beneficiário, é sintomática do distanciamento que amarela o riso de vitória espetado nos cronistas convidados a animar o evento.

O baixo custo eleitoral do julgamento em curso no STF, contudo, não deve ensejar alívio ou indiferença na frente progressista da qual o PT é um polo central.

O julgamento do chamado 'mensalão' por certo omite o principal e demoniza o secundário. Ao ocultar a dimensão sistêmica a qual o PT aderiu para chegar ao poder, sanciona o linchamento de um partido democrático, uma vez que desautoriza seu principal argumento de defesa.

A meia-verdade atribuída aos réus do PT pelos togados e promotores está entranhada na omissão grotesca da história de que se ressentem suas sentenças pretensiosamente técnicas, envelopadas em liturgia mistificadora.

A pouca ou nenhuma influência eleitoral desse engenhoso ardil que elegeu a ausência de provas como a principal prova condenatória diz o bastante sobre o alcance da hipocrisia vendida como marco zero da moralidade pública pelos vulgarizadores midiáticos.

Não é esse porém o acerto de contas com o qual terá que se enfrentar o PT.

Após uma década no governo federal, o partido, seus intelectuais, lideranças e aliados nos movimentos sociais tem um encontro marcado com uma indagação incontornável, que não é nova na história das lutas sociais: em que medida um partido progressista tem condições de se renovar depois da experiência do poder? Em que medida tem algo a dizer sobre o passo seguinte da história?

O legado inegociável das conquistas acumuladas nesses dez anos entrou na casa dos brasileiros mais humildes, sentou-se à mesa, integrou-se à família. Ganhou aderência no imaginário social.

Não é preciso desconhecer os erros e equívocos para admitir que essa década mudou a pauta da política; alterou a face da cidadania; redefiniu as fronteiras do mercado e da produção.Deu ao Brasil uma presença mundial que nunca teve.

Com todas as limitações sabidas, criou-se uma nova referência histórica no campo popular em que antes só avultava a figura de Getúlio Vargas.

Lula personifica essa novidade que a população entende, identifica e respeita.

E que o enredo do 'mensalão' gostaria de sepultar.

Não está em jogo abdicar do divisor conquistado, mas sim ultrapassá-lo. Avulta que o percurso concluído abriu flancos, sugou agendas, talhou cicatrizes e escavou revezes de esgotamento, dos quais o julgamento em curso no STF é um exemplo ostensivo. Todavia não o principal.

Existe uma moldura histórica mais ampla a saturar esse ciclo.

O colapso da ordem neoliberal, os riscos intrínsecos espetados na desordem financeira e ambiental em curso no planeta --suas ameaças às conquistas brasileiras-- formam um condensado de culminâncias que pede desassombro na renovação da agenda da democracia e do desenvolvimento para ser afrontado.

O caminho não será trilhado, menos ainda liderado, por forças e partidos incapazes de incluir na bússola do trajeto o ponteiro da autocrítica política e de um aggiornamento organizativo coerente com a renovação cobrada pela história.

O carro de som da direita faz barulho por onde passa nesse momento. Mas isso não muda a qualidade da mercadoria que apregoa.

O que o alarido dos decibéis busca vender é o velho pote de iogurte vencido e rançoso, cuja versão eleitoral em São Paulo tem 43% de rejeição popular.

A resposta da frente progressista à qual o PT se insere não pode ser a mera denúncia da propaganda enganosa.

Urge esquadrejar revezes e resoluções para renovar o próprio estoque de metas e métodos requeridos pelo novo ciclo da história. 


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A perda de hegemonia




Vladimir Safatle, na Revista CartaCapital 


Durante décadas, a esquerda conseguiu sustentar uma certa hegemonia no campo cultural nacional. Mesmo na época da ditadura, tal hegemonia não se quebrou. Vivíamos em uma ditadura na qual era possível comprar Marx nas bancas e músicas de protesto ocupavam o topo das paradas de sucesso. Essa aparente legalidade que visava desarticular mobilizações mais profundas da sociedade nacional.
A ditadura brasileira compreendeu rapidamente que não era necessário um controle total da cultura. Os nazistas usaram um modelo parecido quando ocuparam Paris. Um controle parcial bastava, com direito a censura e perseguição em momentos arbitrariamente escolhidos. Dessa forma, liberdade e restrição confundiam-se em uma situação cada vez mais bizarra de anomia e desorientação da crítica.
Deve, porém, ter pesado no cálculo da ditadura a compreensão de que o custo para quebrar a hegemonia da esquerda no campo da cultura seria alto demais. Neste caso, melhor operar por intervenções cirúrgicas. Durante os anos 50 e 60, o País vivera uma impressionante consolidação cultural e intelectual que continuaria dando frutos nas próximas décadas. Colaborou para a propagação dessa hegemonia na classe média brasileira a guinada progressista da Igreja Católica, feita a partir do pontificado de João XXIII e do Concílio Vaticano 2º.
Com o fim da ditadura, a força cultural da esquerda permaneceu. Nossos jornais, por exemplo, seguiam o esquizofrênico princípio: conservador na política, liberal na economia e revolucionário na cultura. Mesmo que figuras como Paulo Francis e José Guilherme Merquior estivessem constantemente a representar o pensamento conservador, suas vozes eram em larga medida minoritárias. Vale lembrar que eles não representavam o conservadorismo mais puro e duro, com direito a pregação moralista de costumes e relação com os setores mais reacionários da Igreja.
Poderíamos acreditar que a perda de tal hegemonia seria resultado direto da queda do Muro de Berlim. Sem desmerecer o fenômeno, não é certo, no entanto, que ele tenha papel tão determinante. Pois vale lembrar como a esquerda cultural brasileira estava longe de ser a emulação do centralismo do Partido Comunista, com sua orientação soviética. Na verdade, as causas devem ser procuradas em outro lugar.
Primeiro, há de se lembrar como, desde o fim dos anos 80, as universidades brasileiras não conseguiam mais formar professores dispostos a desempenhar o papel de ­intelectuais públicos. Os intelectuais que tínhamos vieram da geração que entrou na universidade nos anos 70. Geração que viveu de maneira brutal a necessidade de mobilização política. As gerações que vieram compreenderam-se com uma certa timidez. Elas, em larga medida, foram marcadas pelo desejo de agir no âmbito mais restrito da universidade.
Segundo, há de se colocar a perda da hegemonia cultural como um dos sintomas da era Lula. Do ponto de vista político, o esforço da classe intelectual brasileira parece ter se esgotado com a eleição do ex-metalúrgico. Boa parte dos descaminhos do governo foi colocada na conta da legitimidade dos intelectuais que um dia o apoiaram ou que continuaram apoiando. O simples abandono do apoio não foi uma operação bem-sucedida. Como os intelectuais não tiveram discernimento suficiente para imaginar o que poderia ocorrer? Por outro lado, a repetição reiterada do lado bem sucedido do governo soava, para muitos, como estratégia para diminuir a força crítica diante dos erros, que não eram mais comentados no espaço público, devido ao medo de instrumentalização pela mídia conservadora.
Aos poucos, parte da mídia criou seus intelectuais conservadores, repetindo, algumas dezenas de degraus abaixo, um fenômeno que os franceses viram nos anos 70 com os nouveaux philosophes. Como se não bastasse, o próprio governo foi paulatinamente se afastando da órbita dos intelectuais de esquerda. A troca de comando do Ipea, por exemplo, com o convite ao economista liberal Marcelo Néri, está longe de ser um acontecimento isolado. Há de se notar como este governo é, desde os tempos de Fernando Henrique Cardoso, aquele que tem menos intelectuais em seus quadros. Sequer o ministro da Educação é alguém vindo da vida universitária (como foram Paulo Renato Souza, Cristovam Buarque e Fernando Haddad).
Nesse contexto, sela-se uma situação nova no Brasil. Pela primeira vez em décadas a esquerda é minoritária no campo cultural. Há de se compreender como chegamos a esse ponto, já que este artigo é apenas um ­tateamento provisório.




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