21 setembro 2012

POLÍTICA E RELIGIÃO

Cruzadas, novamente

Vladimir Safatle, na Revista CartaCapital




As cenas dos ataques de salafistas às embaixadas norte-americanas levantam alguns pontos maiores sobre aquilo que poderíamos chamar de “a questão árabe”.
Manifestantes protestam com uma bandeira da Al-Qaeda em um protesto em Benghazi, na Líbia, em 14 de setembro. Foto: AFP
Primeiro, há de se dizer claramente que a atuação dos salafistas é medonha sob todos os aspectos. Depois da Primavera Árabe, esse grupo sunita começou paulatinamente a atuar em países como Tunísia, Egito e Líbia com vistas à afirmação de uma sociedade radicalmente moldada em uma leitura “rigorosista” de preceitos religiosos muçulmanos. Leitura que boa parte dos próprios muçulmanos vê como no limite do delirante. Por meio da invasão de universidades, queima de cinemas, bloqueio de exposições, eles elegeram a cultura o campo de batalha preferencial. Sociedades muçulmanas laicas como a tunisiana veem nos salafistas um risco de regressão social. Pois eles sabem como os salafistas se aproveitam de um sentimento profundo de exclusão e preconceito para transformar isso em raiva antiocidental.
Nesse sentido, é importante lembrar que a briga entre os salafistas e o Ocidente é, na verdade, um desdobramento de um conflito no interior da própria religião muçulmana e dos países árabes. Tal como os cristãos, os muçulmanos não têm unidade alguma. Tal como os cristãos, eles se dividem, muitas vezes de maneira antagônica, a respeito da interpretação dos preceitos de seu livro sagrado. Boa parte dos costumes que acreditamos serem obrigações muçulmanas, como o uso de burca e a extração do clitóris, não tem base alguma no Alcorão. Tudo isso tende a ser negligenciado quando vemos as cenas brutais das embaixadas em chamas.
Aqui, vale a pena uma reflexão tendo em vista a revisão de certas escolhas geopolíticas dos países ocidentais. Os salafistas atuam hoje dessa forma por se sentirem fortes diante de seu crescimento real em várias nações árabes. Tal crescimento, cujas causas devem ser estudadas com calma e que misturam problemas socioeconômicos e demandas de segurança, tem sido financiado, em larga medida, por países como a Arábia Saudita. Bastião de uma sociedade teocrática, sede de uma monarquia absoluta medieval que faz o Irã parecer uma democracia escandinava, a Arábia tem sido generosa na subvenção desses grupos que agora resolvem queimar embaixadas. Ou seja, a primeira coisa que os países ocidentais deviam fazer é rever suas relações preferenciais com os sauditas.
Por outro lado, há de se fazer uma reflexão a respeito do filme que serviu de estopim para tais ações. Permitir um filme dessa natureza, onde seu realizador afirma querer mostrar como o islamismo é um câncer, nada tem a ver com liberdade de expressão. Pois nunca a liberdade de expressão significou poder falar qualquer coisa de qualquer forma. Em toda situação democrática, há afirmações não permitidas. Por exemplo, se alguém fizer um filme a fim de mostrar que os gays são seres promíscuos responsáveis pelo mal moral do mundo, que os negros são seres inferiores ou que os judeus estão por trás da crise econômica, que controlam tudo e que inventaram o Holocausto, tal indivíduo será, com razão, enquadrado em crime penal previsto por lei e a exibição do seu filme será proibida. A razão é simples: não se trata de uma questão de opinião, mas de preconceito e simples violência social. Se há algo que a democracia reconhece é o fato de que nem toda enunciação é uma opinião. Há enunciações que, por causa de sua violência e preconceito, são crimes.
É claro que temos o direito de criticar dogmas religiosos. Não se segue daí, porém, que se possa fazer isso de qualquer forma. Posso criticar o dogma católico da transubstanciação, mas não significa que eu possa entrar na missa e cuspir na hóstia. Da mesma forma, posso criticar, em minha aula, o Estado brasileiro afirmando que sua bandeira é hoje um pano velho sem sentido. Mas não se segue daí que eu possa entrar em sala e atear fogo à bandeira. Saber encontrar a forma adequada de crítica é o mínimo que se pode esperar no século XXI.
Por fim, normalmente há aqueles que afirmam que, se assim fosse, teríamos de proibir Voltaire e seus textos anticlericais. Contra esses, gostaria de lembrar um ponto: Voltaire era corajoso o suficiente para criticar sua própria tradição religiosa. Algo muito diferente é fazer profissão de fé esclarecida, ridicularizando as crenças religiosas de outros povos. Aqueles que não têm coragem de criticar sua própria tradição melhor fariam se silenciassem sobre as tradições do outro.





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‘Profetas do caos’ criam um falso debate sobre o Oriente Médio



José Antonio Lima, na Revista CartaCapital


Egípcios protestam em frente à embaixada dos EUA no Cairo. Os moderados precisam ser fortalecidos diante da força dos radicais. Foto: Khaled Desouki / AFP
Há um falso debate em curso a respeito do Oriente Médio. Os protestos e a violência dos últimos dias (cujo pretexto foi o filme “Inocência dos Muçulmanos” e, depois, charges de Maomé publicadas na revista francesa Charlie Hebdo) fez comentaristas, à esquerda e à direita, se regozijarem por terem, supostamente, previsto o que consideram ser o desfecho da “Primavera Árabe”: o inevitável encaminhamento do mundo árabe-muçulmano para um radicalismo islâmico anti-Ocidente. Esses comentaristas sentem-se vitoriosos no debate contra aqueles que, segundo eles, previam o surgimento espontâneo de democracias após a derrubada de ditadores. Ocorre que este debate jamais ocorreu.
Nenhum analista sério poderia afirmar que o fim de regimes autoritários ensejaria o surgimento automático de democracias. Isso jamais ocorreu na história, porque a democracia é um processo e não um modelo único que pode ser simplesmente implantado. O que analistas debatiam, anos antes de a “Primavera” ter início, eram possibilidades de democratização de países árabes-muçulmanos. A discussão se dava nos seguintes moldes: o que o Ocidente pode fazer, no relacionamento com os governos e sociedades civis árabes-muçulmanas, para facilitar a democratização? Esses estudos partiam de premissa de que sociedades mais livres e igualitárias transformariam o Oriente Médio num lugar mais seguro.
Os “profetas” da radicalização islâmica inevitável agem movidos por uma visão carregada de preconceito. Basicamente, não acreditam que muçulmanos e árabes sejam capazes de viver em regimes democráticos. Englobam tudo o que vem do Oriente Médio como “Islã”. São, como definiu Edward Said, orientalistas. Como todo preconceito, este é movido pela ignorância, no sentido denotativo da palavra: a falta quase total de conhecimento a respeito do que ocorre no Oriente Médio. Três aspectos são particularmente relevantes.
Rached Ghannouchi, presidente do Ennahda, o partido islamista que governa a Tunísia. Grupos como o de Ghannouchi, que pregam a moderação, são pressionados politicamente pelos salafistas. Foto: Fethi Belaid / AFP
O primeiro: as nuances do Islã político. A Irmandade Muçulmana no Egito e o Ennahda na Tunísia, partidos religiosos que venceram as eleições, são grupos que, ao menos por enquanto, pregam moderação e pragmatismo. Há um fosso de diferenças, ideológicas e práticas, entre esses partidos e os salafistas, religiosos ultrarradicais. No Egito, onde o presidente Mohamed Morsi foi eleito com o apoio dos salafistas, a coalizão Irmandade-salafistas está ruindo por conta dessas diferenças. Foram esses setores mais radicais que lideraram o ataque contra a embaixada americana, constrangendo o governo egípcio e a Irmandade perante a comunidade internacional.
É importante notar que nem todos os salafistas são violentos. No caso da Líbia, onde foi assassinado o embaixador Chris Stevens, grupos guerrilheiros salafistas, e violentos, foram os responsáveis pelo ataque. Eles representam, entretanto, uma fração marginal dos salafistas líbios. A maioria partiu para a vida política ou aderiu a instituições do nascente Estado líbio.
O segundo aspecto ignorado é o fato de que a opinião dos povos árabes agora importa. Com a queda de ditadores vieram à tona inúmeras forças políticas e sentimentos antes suprimidos pelo autoritarismo. O mais saliente deles é o anti-americanismo, que no Oriente Médio é abrangente e atinge religiosos e seculares, ricos e pobres, gente que vive no meio urbano e no rural. A origem deste sentimento é a história de golpes e guerras promovidos e apoiados pelos EUA no Oriente Médio nas últimas décadas. Lamentavelmente, inúmeros religiosos radicais, a maioria salafistas, usam seus sermões para estimular este sentimento, pregando o ódio e a violência. É este sentimento que os salafistas tentam manipular contra os governos moderados numa tentativa de ganhar apelo político.
O terceiro aspecto ignorado pelos “profetas” da radicalização é a existência de líderes religiosos muçulmanos moderados. Há inúmeros desses no Ocidente, mas há também no Oriente Médio. Ainda no dia 12 de setembro, um dia depois do início dos protestos, o líder da mesquita de Al-Azhar, principal escola de pensamento sunita do mundo, baseada no Egito, pediu que os muçulmanos respondam de forma “racional e objetiva” a ofensas a Maomé. Na terça-feira 19, Ali Gomaa, o grande mufti do Egito, maior autoridade religiosa do país, escreveu artigo no jornal The National (dos Emirados Árabes Unidos) afirmando que “a violência nunca é uma resposta aceitável à provocação”. Gomaa afirmou que o Islã tem uma “necessidade urgente” de encontrar líderes religiosos que possam desenvolver respostas dentro do Islã aos problemas da modernidade, criando um ambiente em que todas as pessoas possam coexistir.
O grande problema da visão desses “profetas do caos” é sua incapacidade de propor qualquer solução em termos de política internacional. Sua única sugestão é que novas provocações, como as charges da Charlie Hebdo, sejam feitas. Talvez seja uma tentativa de forçar a democracia goela abaixo. Talvez seja uma tentativa de “comprovar”, usando a reação da minoria, as impressões que têm da maioria de árabes e muçulmanos.
Um reflexo desta estratégia desastrada é estimular os radicais anti-Islã no Ocidente. Como conta Doug Sanders no jornal The New York Times, neste ano uma mesquita foi incendiada no Estado americano do Missouri e uma escola islâmica foi atacada com uma bomba de ácido no Illinois. A onda de islamofobia nos EUA, que engloba organizações, blogueiros, militares, jornalistas e políticos, surgiu no rastro do 11 de Setembro. Hoje ela é tão intensa que o novo Lanterna Verde é árabe e muçulmano, numa tentativa de romper este preconceito. Na Europa, a hostilidade ao Islã também é latente. Em 2009, a Suíça proibiu, em referendo, a construção de minaretes, a parte mais visível das mesquitas. Neste ano, uma pesquisa publicada peloThe Observer mostrou que, quando se trata de imigrantes muçulmanos, os britânicos são mais propensos a apoiar ideias e propostas de extrema-direita do que partidos que pregam o multiculturalismo. Muitas vezes, é desses grupos radicais ocidentais que surgem as provocações ao Islã, como o filme Inocência dos muçulmanos, cujo objetivo era instigar reações violentas e, assim, “provar” que o Islá é uma religião incompatível com a modernidade.
Ao retratar o “Islã” como um bloco único, generalizando alguns milhões de pessoas e simplificando sociedades extremamente complexas, esses “profetas” acabam por esconder o debate que realmente deve ser feito a respeito do Oriente Médio. O que a comunidade internacional pode fazer para ajudar Egito, Iêmen, Líbia e Tunísia, países que se livraram de seus ditadores, a trilhar um caminho que afaste o destino desses países do fundamentalismo religioso e do autoritarismo?



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