Mobilização Democrática: o novo que
nasce velho
Jacques Gruman, na Agência Carta Maior
A juventude de hoje deseja um mundo mais justo, mas dentro da estrutura da sociedade em que vive. O que sinto nela é a falta de fé na História (Olivier Assayas, diretor de cinema)
O logotipo no envelope não deixava dúvidas. Justiça Eleitoral? Véspera de eleições? Claro que devia ser uma convocação para trabalhar como mesário. Não deu outra. 1989 era o ano e eu presidiria uma seção eleitoral, justamente no primeiro pleito direto para presidente depois da ditadura. Os votos ainda eram impressos e, no final do dia, entre orgulhoso e cansado, bati uma foto com meus auxiliares. Não é que tínhamos tirado uma casquinha acidental daquele momento histórico?
O reinício de eleições diretas para a presidência da República teve uma novidade importante. Pela primeira vez em quase quarenta anos, o PCB, partido mais antigo do país, lançava candidato próprio. Em 1950, na sombra da ilegalidade e ainda na esteira da popularidade pós-Segunda Guerra Mundial e do carisma de Luiz Carlos Prestes, o partido tivera cerca de 10% dos votos, com um candidato desconhecido e inexpressivo: o engenheiro Yedo Fiúza. No final dos anos 80, era a vez de Roberto Freire.
Com discurso fluente, Freire recolocou os comunistas do PCB no mapa eleitoral do Brasil. Percorreu o país, sonhando aglutinar as forças de esquerda em torno de sua candidatura. Criticou duramente as fumaças de privatização que já começavam a vazar da burguesia, afirmando que, antes de tudo, era necessário “desprivatizar o Estado”. No fim, ganhou pouco mais de 1% dos votos. Foi a colheita da política desastrosa de conciliação de classes que o partido seguira dogmaticamente, quando as bases sociais da ditadura balançavam e as lutas populares acuavam a caserna.
Não demorou muito e as lutas internas do PCB, agravadas pelos acontecimentos do leste europeu, levaram a mais um racha. Em 1991, Freire estava alinhado aos que, no IX Congresso do partido, tentaram liquidá-lo. Encontrando severa resistência de dirigentes e militantes, parte do Comitê Central convoca, então, um Congresso Extraordinário, tendo como ponto único de pauta a criação de uma “nova formação política”. Para evitar surpresas, os liquidacionistas usaram um expediente malandro e inescrupuloso: não-filiados foram aceitos como delegados ao Congresso, com direito a voto. Cooptaram, assim, simpatizantes identificados com suas teses, garantindo tranquila maioria. Militantes e dirigentes que repudiaram essas manobras realizaram, de imediato, uma Conferência Nacional de Reorganização do PCB. Horácio Macedo e Ivan Pinheiro discursaram no Congresso liquidacionista e suas falas foram premonitórias. Do Congresso adulterado nasceu o PPS, que a imprensa, por má-fé ou ignorância, ainda chama de sucessor do PCB.
Não satisfeitos, os pepessistas tentaram transferir o que seria uma luta política para o terreno burocrático-estatal. Roberto Freire deu entrada no Instituto Nacional de Propriedade Industrial com um processo para, pasmem!, registrar a exclusividade do direito de uso da sigla e do símbolo do PCB. Seria risível se não fosse uma farsa abjeta, de coveiros de uma tradição que pedia debate, e não capitulação. Claro que os técnicos do Inpi receberam o pedido com o desprezo que merecia. Compreenderam a patuscada e jogaram no lixo da História a tentativa vergonhosa.
Com um trabalho incansável, ativistas e militantes do PCB recuperaram o registro da sigla. Enquanto isso, os pepessistas, sempre sob a liderança de Roberto Freire, adernaram, lenta, gradual e consistentemente para a direita. Defenderam os processos de privatização, apoiaram o PROER (que salvou a cara dos banqueiros), aliaram-se, não raro, ao que há de pior na política nacional, aboliram o socialismo do discurso (embora o tenham conservado, cinicamente, na sigla). Anos antes da criação da Comissão da Verdade, foram descobertos corpos no cemitério de Perus, em São Paulo, suspeitos de serem os restos de militantes políticos assassinados pela ditadura. Freire criticou os que ousaram sugerir uma investigação do caso, alegando que o passado devia ... ficar no passado! Enquanto isso, em épocas eleitorais, víamos um desfile de candidaturas Blairo Maggi, Sambariloves e Sardinha 88, desidratados em conteúdo e identidade ideológica.
O processo de degradação culmina agora com a fusão PPS-PMN. A nova sigla, Mobilização Democrática, nasce como negação da esquerda socialista. Sua bússola é eleitoral. Estou entre os seis ou sete que tiveram a curiosidade (e a paciência) de ler o manifesto e o programa do novo partido. Não há a menor referência ao capitalismo como raiz dos graves problemas estruturais que os documentos mencionam. A esquerda, e isso não se deve omitir, é necessariamente anticapitalista. O que a MD propõe são remendos, em quase nada diferentes dos propostos pelos partidos da ordem. É uma grande colcha de retalhos daqueles que desembarcaram do projeto socialista e enterraram conceitos e referências teóricas. Os “pós-comunistas” namoram um improvável (impossível ?) capital humanizado, desejam ser parceiros de um modo de produção que continua gerando guerras, destruição, fome, distúrbios globalizados, exploração dos mais vulneráveis. Falam em “reforma democrática do Estado” como se isso fosse independente da luta de classes. As grandes novidades que trazem são a exumação política de José Serra e a esperada adesão de parlamentares ligados ao ex-prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab.
A esquerda não adesista enfrenta importantes desafios. As mobilizações de massa do passado, com intensa identificação partidária e capilarização social, são cada vez mais raras. Aparecem em situações de crise aguda, mas carecem de continuidade. Novas formas de participação, através de redes sociais e meios virtuais, ainda são pouco utilizadas e mal compreendidas. A experiência histórica do chamado socialismo real deixou feridas mal cicatrizadas e não substituídas por referências consistentes que ajudem a pavimentar caminhos anticapitalistas. Entretanto, todas essas e outras dificuldades não justificam a exaltação envergonhada dos cristãos-novos do reformismo filocapitalista. Há, certamente, gente honesta que acredita em propostas como as que a MD agora apresenta. Falo de instituições, não de pessoas. Nesse sentido, repito Antônio Gonçalves da Silva, o Patativa do Assaré: Cante lá, que eu canto cá.
*Jacques Gruman é engenheiro químico e militante internacionalista da esquerda judaica no Rio de Janeiro. Escreve semanalmente para a Carta Maior
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