Por Thiago Foresti, na Revista CartaCapital
Em janeiro deste ano, um grupo de militares se reuniu no Centro de Operações do Ministério da Defesa, em Brasília, para se debruçar sobre mapas, relatórios e fotografias e traçar a melhor estratégia para a desintrusão da Terra Indígena Marãiwatsédé, no norte de Mato Grosso. A missão não era das mais simples: retirar 200 famílias que se estabeleceram sobre uma Terra Indígena homologada e que não tinham a menor intenção de se retirarem. Entre os homens fardados, uma figura se destaca por sua indumentária civil e alguns adereços indígenas.
“Nunca ia imaginar que um dia comandaria uma reunião cheia de milicos a favor da luta indígena”, diria Paulo Maldo, secretário de articulação Social da Presidência da República, durante um Seminário Indígena realizado pouco depois, em fevereiro, em Cuiabá, Mato Grosso.
A história da desintrução foi concluída ainda em janeiro, quando o povo Marãiwatsédé se juntou a outros casos recentes de sucesso da luta indígena como Raposa Serra do Sol e Guarani Kaiowá. “O projeto histórico em curso, desde o governo Lula está em disputa. Pode não parecer, mas existe muita oportunidade de avançar dentro da causa indigenista”, afirmou para a plateia.
Mas a fala de Maldos contrasta com as articulações realizadas dentro do Congresso Nacional para diminuir e limitar a soberania de comunidades tradicionais. São mais de 10 propostas de emendas à constituição (PEC) em tramitação no Legislativo. A mais proeminente delas é a PEC 215, que pretende retirar do Poder Executivo e passar para o Legislativo a decisão de homologação de Terras indígenas. O texto, aprovado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara no final do ano passado, tem motivado uma série de protestos realizados em Brasília, entre eles a ocupação dos corredores do Congresso e em frente ao Palácio do Planalto durante a última semana.
A mudança enfrenta resistência entre autoridades e representantes da sociedade civil. “Na prática isso modifica a relação de equilíbrio entre os três poderes, pois o ato declaratório é retirado da União e transferido para um debate político no Congresso Nacional”, explica Márcia Brandão, procuradora do Ministério Público Federal de Mato Grosso.
Segundo ela, as propostas em pauta no Congresso têm um poder devastador sobre as comunidades tradicionais e territórios protegidos. “Algumas emendas querem até mesmo rever todas as demarcações de Terras Indígenas brasileiras já realizadas. Isso é extremamente inconstitucional e criaria uma insegurança jurídica enorme.”
Ela cita como exemplo a PEC 161, de 2007, e a 291, de 2008, que criam barreiras para espaços territoriais protegidos e comunidades quilombolas.
Atualmente no Brasil o processo de homologação desses territórios tradicionais protegidos é realizado pelo por meio de autarquias como Funai, o Instituto Chico Mendes e o Instituto Palmares. Através de estudos técnicos e pareceres antropológicos esses órgãos apenas reconhecem os territórios tradicionalmente ocupados. Com a mudança proposta pela PEC 215, o reconhecimento e homologação de Terras Protegidas passarão a ser uma questão política e não apenas técnica.
O relator da PEC, deputado Osmar Serraglio (PMDB), discorda. Para ele, a Funai não é um órgão imparcial. “Eles pegam um relatório de um antropólogo qualquer e tratam isso como um dogma sem nunca levar em conta os problemas que ela mesma cria, como desapropriação de famílias e produtores”. O deputado argumenta que a Constituição de 1988 já previa a demarcação de todas as terras em um prazo de cinco anos e admite que a PEC é uma forma de estancar esse processo. “O constituinte colocou um parâmetro, uma data, o que foi demarcado já está demarcado, o que não foi não deve ser mais”.
No dia 21 de março do ano passado, os deputados conseguiram aprovar a constitucionalidade da PEC após uma conturbada sessão na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). Índios de diversas etnias e integrantes de movimentos sociais presentes na reunião entraram em confronto com os seguranças da Câmara.
Os conflitos decorrentes da proposta jogaram luz na briga entre produtores rurais e indígenas e fizeram com que o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, e o advogado-geral da União, ministro Luís Inácio Adams, se pronunciassem durante audiência pública na Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural da Câmara dos Deputados. Ambos sugeriram que em vez de criar uma PEC os deputados disciplinassem o parágrafo 6º do artigo 231 da constituição, que nega a indenização para produtores que se estabeleceram em áreas de Terra Indígena.
Para Serraglio, o maior problema na briga entre indígenas e produtores é o não pagamento de indenizações na hora da desapropriação. “Paga-se apenas um mísero recurso por benfeitorias e não se compensa o produtor que muitas vezes foi ludibriado e se instalou numa Terra Indígena sem saber. O problema todo está nessa injustiça, pois muita gente comprou terras do estado e agora está desamparada”, argumenta o deputado.
Demarcações. O ritmo de demarcações tem caído com o passar dos anos, em boa parte por conta da pressão cada vez maior do agronegócio sobre as terras. Nos governos Sarney, Collor e Itamar foram homologadas 195 Terras Indígenas no Brasil. No governo de FHC foram 145; no de Lula, 87 e, com Dilma, apenas 10. O Instituto Socioambiental (ISA) contabiliza 248 Terras Indígenas já identificadas e que ainda aguardam a homologação.
A disputa pela PEC 215 é um bom exemplo de um embate histórico de modelos cada vez mais acirrado por conta da crise ambiental e social. Enquanto, de um lado, o setor produtivo reclama da imobilização de terras por conta da demarcação, do outro os indígenas sofrem com o avanço da fronteira agrícola e da infraestrutura sobre seus territórios.
Paulo Maldo, o secretário de articulação Social da Presidência, reconhece que existe um entrave político quando o assunto é a votação de projetos sensíveis ao desenvolvimento do agronegócio. “Essa questão de aliança política é um complicador permanente. Ruralista só é fiel aos ruralistas, não à orientação do governo. Muitos se dizem base do governo, mas na hora de votar votam com seus interesses”.
Para José Augusto Sampaio, antropólogo e diretor da Associação Nacional de Ação Indígena (ANAI), a questão indígena fica esmagada em meio a um Executivo que tem um sonho de sociedade feito de “patrões e empregados” e um Legislativo representante de interesses políticos claramente voltados para o agronegócio. “O modelo de desenvolvimento é o do Estado forte para gerar empregos. Dentro desse modelo, que lugar têm os povos tradicionais? Aparentemente nenhum. São resíduos históricos prontos a serem incorporados. Incorporados via emprego. Na prática uma demarcação é pegar um pedaço grande de terra e colocar fora do mercado.”
Para Sampaio, “seria bom se prestássemos atenção a algumas peculiaridades da sociedade indígena, pois isso ajudaria bastante a moldar a nossa sociedade”. “Não é que dentro das aldeias não exista a posse. Mas para as culturas indígenas o peixe no rio não tem dono, ele só passa a ter dono quando você pesca. A palha não tem dono até você transformar numa cesta. Isso pra mim é a essência que confronta esse modelo que a gente vive, onde as coisas tem dono antes de serem trabalhadas”.
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