06 abril 2012

MÍDIA E SOCIEDADE

A mídia brasileira e as boas lições
            de Murdoch




Por Enio Squeff





Não se sabe exatamente em que condições, ou por que, uma determinada expressão ou um nome entra no dicionário como adjetivo ou verbo– mas é possível imaginar que o Houaiss venha um dia a incorporar a palavra “murdochização” -e não necessariamente com “h”, mas com “q” mesmo. Keith Rupert Murdoch, conhecido como o “magnata da mídia “ não inventou nada de novo na história contemporânea da imprensa mundial, mas é dono de uma rede infinda de jornais, comprovadamente não dá guarida a qualquer opinião que não seja estritamente a sua e é uma das forças mais reacionárias com que a direita e os conservadores podem contar no mundo.

Orson Welles inventou o seu “Cidadão Kane” a partir de uma sociedade multifária: o dono de jornais é um manipulador notório, um sacripanta – mas não manda sozinho. Tem rivais. Rupert Murdoch ainda conta com alguns resistentes residuais – mas ninguém duvida de que se pretenda hegemônico. E que siga, afinal a lei do capitalismo rumo ao monopólio.

É natural. Marx, que teve de se mudar de vários países por suas ideias, só conseguiu sobreviver numa Inglaterra minimamente democrática, onde vigeu durante mais tempo a idéia de “imprensa livre”. Talvez não seja apenas irônico que Rupert Murdoch tenha instalado parte do seu império justamente na Inglaterra. Foi a partir dela, em todo o caso, que o compositor francês Hector Berlioz passou a venerar Shakespeare, assim como foi no Império Britânico que, anos antes, exilado, Voltaire, também francês, pode apreciar as primeiras experiências democráticas no sentido literal da palavra. Parece, em suma, haver uma convergência entre idéias livres, inteligência e democracia. 

O criador do primeiro jornal brasileiro (Correio Brasiliense), o gaúcho Hipólito da Costa (1777-1823), poderia ter tentado editar seu periódico em outros lugares do mundo. Preferiu a Inglaterra, por motivos óbvios. Ninguém o premiria por opinar sobre seu país a quase dez mil quilômetros de distância. Mas é aqui que talvez entre a palavra “mudorchização” da imprensa.

A rigor, em alguns aspectos ela já existe. Não parece fortuita, a proibição expressa que a imprensa hegemônica brasileira vem mantendo, de afastar das suas páginas nomes de artistas, de escritores e intelectuais de todos os tipos, que professam opiniões diferentes das orientações de seus editoriais. E não se afigura, igualmente, uma exceção que os jornais omitam notícias e inventem outras, tudo em nome da sua independência e da sua prerrogativa de vetar o que não lhe agrada. Não existe brasileiro minimamente informado, que não sabe haverem omissões ou notícias deturpadas na imprensa brasileira. Talvez seja aí que mudochização da mídia comece a ter algum sentido.

Não é novidade, certamente, que a imprensa sempre foi restritiva. Pietro Maria Bardi, criador do Museu de Arte de São Paulo (MASP), não podia ter seu nome estampado no “Estadão”. A proibição não era explícita, mas corria entre o seu corpo redacional que Bardi não deveria ser mencionado nas páginas do jornal, fosse para o que fosse. Tinha sido coadjuvante de Assis Chauteaubriand, dono dos Diários Associados, na obtenção de recursos junto ao empresariado paulista – não raro sob a ameaçadas de chantagem – para a compra das obras garimpadas pelo próprio Bardi numa Europa economicamente combalida, depois da Segunda Guerra. A história é conhecida. 

O que se ignora são justamente os interditos da grande imprensa. Na época, não havia “impérios midiáticos” como hoje; tampouco os jornais cerravam qualquer acordo para não mencionarem denúncias de corrupção de políticos ligados, sabe-se bem porque, a quase todos os órgãos de imprensa. “O Estado de S. Paulo”, por exemplo, criticava a “Veja” que, por sua vez, não poupava os Mesquitas; ou os Frias, ou mesmo Roberto Marinho de “O Globo” Era uma guerra. democraticamente suja; ou limpa ( dependendo das denúncias mútuas). E até onde a formação dos oligopólios permitia, as coisas não eram unânimes. Se uma publicação tinha um furo – valia o furo a despeito de todo o resto. Hoje a coisa mudou. 

Jacob Burkhardt que foi o grande historiador da Renascença no século XIX, ao falar sobre Aretino, que, com razão, ele considerava acima de tudo um jornalista – anotava, imparcialmente, que a maledicência entre os potentados italianos, era uma prática comum. Aretino mesmo, mediante bons emolumentos, tanto podia falar bem do Papa, quanto ridicularizá-lo. Não era uma questão ideológica. Hoje é exatamente essa a questão. E Murdoch (mas também muitos mais), só é citado como passível de alguma censura, quando ultrapassa as leis do comércio (ninguém imagina que fechar jornais seja, em princípio, um bom negócio) – no mais, porém, é um exemplo a ser seguido. Ou será que os donos dos principais jornais e meios midiáticos brasileiros não o invejam? 

A resposta talvez não inaugure uma nova expressão na língua portuguesa –a “murdochização”. Mas há uma confluência de interesses “murdochianos” no oligopólio midiático brasileiro. A mesma notícia que é acolhida – ou não – por Rupert Murdoch, e seu império, guardadas as proporções do alinhamento dos jornais, revistas e estações de TV, aos programas e procedimentos dos partidos brasileiros que ela apóia – é integralmente acoitada por aqui.

Claro, a” murdochização” – a palavra é complicada, deve-se admitir – não é senão uma virtualidade. Por enquanto, a mídia nativa aspira chegar a um poder incontestável, o que está cada vez mais difícil devido à rede social. Uma vez que isso se realize, porém, “depois a gente conversa”. De qualquer maneira, a tendência à “murdochização”, essa parece inegável. Alguém do oligopólio, vencerá. O resto, o império “murdochiano”, no momento oportuno explicará.

Em tempo: a palavra sacripanta também entrou no dicionário a partir de um personagem. Era “Sacripante”, figura descrita como espertalhão e velhaco, na canção de gesta de Matteo Maria Boiardo (1441-1494). Mais tarde entraria no “Orlando Furioso”, de Ariosto, mas já então tinha sido devidamente dicionarizada para sacripanta com o sentido que guarda ainda hoje.

Enio Squeff é artista plástico e jornalista.



Fonte: www.cartamaior.com.br 








A TAGARELICE DOS MAUS







Por Jean Wyllys (*)







A “Semana Santa” sempre me leva de volta ao passado, à infância e início da adolescência. Lembro-me não só das proibições, dos obrigatórios pedidos de bênçãos aos mais velhos e do aparente luto que cobria tudo.
Recordo-me principalmente das lições de amor ao próximo (de humanismo, digo hoje) que extraíamos da “paixão de Cristo” discutida nos encontros da comunidade e da pastoral e no rastro do lançamento da “Campanha da Fraternidade”. Velhos tempos, belos dias ou vice-versa.
A representação de São Sérgio e São Baco, símbolos da causa LGBT
Percebam que a leitura da Bíblia – seja de seu “velho testamento”, seja dos evangelhos, do Apocalipse e/ou das cartas de Paulo – levava-me a uma religiosidade saudável. Isto por que a minha educação e formação intelectual não estava a cargo só da Igreja. Meus pais me davam educação doméstica e a escola pública me dava educação formal. Eu estudava e gostava (e ainda gosto) de aprender, conhecer, comparar dados, tirar conclusões a partir de diferentes informações.
Na escola, onde se reproduz um conhecimento obtido por homens e mulheres que se dedicaram e se dedicam a investigar, com metodologia e honestidade, os fenômenos naturais e sociais bem como a natureza humana; na escola, aprendi não só que a Terra gira em torno do Sol (logo, Josué jamais poderia ter parado o Sol durante a batalha de Jericó, como diz a narrativa bíblica; ele pode ter, no máximo, parado a Terra); que gripes são doenças virais e que o câncer não é castigo divino ou impureza mas nasce de uma mutação genética, mas aprendi também, estudando a história do povo judeu, que a Bíblia é um conjunto de livros escritos por este povo em diferentes épocas a partir de mais ou menos três mil anos e que, de lá para cá, seus textos sofreram sucessivas alterações decorrentes das muitas traduções (e as traduções têm seus limites, não são reproduções fiéis nem transparentes).
Logo, a educação formal e o gosto pessoal por conhecer me impediram de ler a Bíblia ao “pé da letra” nas reuniões da comunidade ou da pastoral, ou seja, impediram-me de tomar ofundamento da cultura judaico-cristã que é a Bíblia como verdade absoluta: a educação formal e o gosto pessoal pelo conhecimento me impediram de ser fundamentalista.
Em contrapartida, percebem, aqueles que se opõem à cidadania de LGBTs e, em particular, às reivindicações pelo casamento civil igualitário e pela equiparação da homofobia ao racismo e ao anti-semitismo são fundamentalistas. Mas de um fundamentalismo seletivo.
Vejamos: os fundamentalistas costumam evocar trechos do Levítico e da Carta de Paulo aos Romanos, em que há referências à homossexualidade segundo as sucessivas traduções pelas quais passaram os textos, para justificar suas injúrias e outras violências que praticam contra os homossexuais, mas ignoram os longos trechos do Levítico que recomendam sacrifício de animais e oferenda de suas vísceras e de seu sangue (já pensaram, protetores dos direitos dos animais, o que seria destes se a Bíblia fosse tomada ao “pé da letra”? E por que os fundamentalistas se esquecem desses trechos na hora de perseguir o candomblé e a umbanda por sacrificar galinhas?); ignoram aquele trecho de Josué em que este incita a turba a matar gente inocente:  “E Josué disse: Por que é que você fez essa desgraça cair sobre nós? Agora o SENHOR Deus vai fazer a desgraça cair sobre você! Em seguida, o povo todo matou Acã a pedradas. Eles apedrejaram e queimaram a sua família e tudo que ele tinha” (Josué, 7, 25-26) – e este é só um dos muitos trechos em que a violência contra mulheres e crianças é recomendada pelo servo de Deus.
Os fundamentalistas ignoram, de modo providencial, todos os trechos da Bíblia em que há defesa e promoção da escravidão, linchamento, tortura e assassinatos cruéis de pessoas quando a evocam (a Bíblia) para justificar suas injúrias e outras violências contra os homossexuais.
Ora, se evocam a Bíblia neste caso, por que não naqueles? Se é para ser fundamentalista, que Malafaia, João Campos, Magno Malta, Eduardo Cunha, Crivella e quejandos defendam também assassinatos, escravidão e tortura contra aqueles que não são “servos do Senhor”, já que a Bíblia os recomenda! Ou será que ainda não o fazem por que não tomaram o poder de todo? Temei budistas, zoroastistas, umbandistas, candomblecistas, agnósticos e ateus!
Ora, se nós, em nosso processo histórico de civilização e acúmulo de conhecimento, fomos capazes de superar moral e eticamente a escravidão; se conseguimos criar leis para proteger a vida e a dignidade humana mesmo em se tratando de prisioneiros de guerras; se reconhecemos direitos de animais (de alguns, ao menos); se deixamos para trás (ou hoje a maioria de nós abomina) práticas e condutas de tribos de que existiram há mais três mil anos e que são descritas na Bíblia, por que vamos tolerar que se evoque a mentalidade de três mil anos atrás em relação ao que hoje chamamos de homossexualidade?
Se desfrutamos hoje de todos as conquistas da ciência – dos tratamento médico-farmacológicos contra as gripes e contra o câncer ao computador que nos permite manter essa comunicação – e sabemos que Josué não pode ter parado o Sol, como diz a Bíblia, mas talvez a Terra porque esta é um planeta girando em torno de uma estrela incandescente numa das muitas galáxias que compõem o universo, por que vamos desprezar o que a ciência diz sobre a homossexualidade (que ela não é doença; que é mais uma expressão da sexualidade humana, tecida num diálogo entre natureza e cultura)?
Não, não vamos desprezar! A conquista da cidadania plena e a afirmação do Estado laico e democrático de direito passam pelo enfrentamento aberto e desmascaramento do proselitismo fundamentalista de reacionários como Magno Malta, João Campos, Marcos Feliciano, Eduardo Cunha, Crivella e dos pastores e igrejas que financiam campanhas políticas para terem seus privilégios e interesses assegurados, beneficiados que são pela isenção tributária garantida pela Constituição e pela ausência de fiscalização rigorosa do dinheiro que arrecadam com a exploração da boa fé, sobretudo de gente pobre e desesperada.
E, para essa tarefa, conclamo os outros cristãos que, como eu, extraem da Bíblia (numa interpretação crítica por se levar em conta outras fontes de conhecimento) uma religiosidade saudável, livre de fundamentalismo, e voltada para a construção de uma cultura de paz e de respeito à nossa diversidade cultural e sexual.
Eu sei que existem muitos assim. Que estes se façam ouvir, pois nada mais danoso que o silêncio dos bons ante a tagarelice dos maus.





(*)Jornalista e linguista, é deputado federal pelo PSOL-RJ e integrante da frente parlamentar em defesa dos direitos LGBT.

Fonte: www.cartacapital.com.br 





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