C R Ô N I C A
Heróis de um Brasil perdido
Quando cheguei ao Brasil, agosto de 1946, a revista semanal chamava-se O Cruzeiro, da frota dos Diários Associados do almirante Chatô. Tratava-se de uma publicação provinciana na forma e no conteúdo, mas algumas de suas páginas nada tinham de provinciano. Aquelas ilustradas por uma equipe de excelentes fotógrafos, entre os quais se destacava Jean Manzon. Outra, sorrateiramente ocupada pelo Amigo da Onça, a maligna criatura do humorista Péricles. E as duas entregues ao “Pif-Paf” de Millôr Fernandes encantariam Saul Steinberg, honrariam a melhor New Yorker.
Encantaram também a família Carta, que se passou à disputa acirrada do exemplar do Cruzeiro, da sala aos aposentos. Mas quem era este Millôr? Descobrimos um jovem de 23 anos, capaz de um humor que não desdenhava desatar o riso, embora, com naturalidade, fizesse pensar. De resto “livre pensar é só pensar”. Não é mesmo?
Dez anos depois fui para a Itália e lá fiquei por mais de três. De regresso a São Paulo no começo da década de 60, capturou-me no vídeo um comediante de 30 anos chamado Chico Anysio, capaz de encarnar dezenas de personagens que faziam rir sem deixar de convocar a inteligência dos espectadores. Millôr e Chico, talentos extremos, morreram nos últimos dias, depois de vidas bem vividas a bem da graça e da leveza, na sua função de elevar o espírito, sem descurar da consistência e da densidade. Ambos produziram muito e sem tropeços, aprumados e certeiros.
Conheci os dois, com Chico estive ralas vezes, de Millôr fui bom amigo e com ele cheguei a trabalhar. Não é disso, porém, que pretendo falar agora, e sim de como as duas figuras são representativas de um Brasil perdido. Entre o imediato pós-guerra e o golpe de 1964. O Brasil do futuro que nunca chegou.
Estranho o destino dos tempos. O futuro de então queria ser moderno sem manias de grandeza, desenvolvido na medida justa, contemporâneo culturalmente, equilibrado socialmente, habilitado a explorar em seu proveito os humores populares ampliando-lhes os alcances e a dar guarida digna aos seus talentos. Independente porque livre de qualquer gênero de colonização.
Hoje há quem enxergue novamente o Brasil como país do futuro, este, porém, não é aquele. Sonha-se é com a potência pela força da economia, a despeito das abissais disparidades internas ou da condição de exportador de commodities, sem falar das lacunas culturais. Há 60 anos o papel entregue à generosidade da natureza era bem diferente em relação ao atual. Cogitava-se explorá-la, a natureza, no quadro de um projeto muito amplo. Era o tempo da campanha do “petróleo é nosso”, com todas suas implicações. Nestes dias atuais a natureza é protagonista absoluta enquanto o neoliberalismo, resistente impávido, gera felizes fabricantes de dinheiro. Sobra a convicção de que o Brasil progride por conta própria à revelia dos homens.
Até o tempo conjugado no futuro está exposto a mudanças brutais. Tínhamos Chico Anysio, temos o Big Brother. Tínhamos Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Erico Verissimo, Jorge Amado, temos -Paulo Coe-lho. Sim, a saudade daquele menino chegado aos 12 há 66 anos proporciona certas decepcionantes constatações. Tudo quanto a realidade do Brasil da minha adolescência e de minha juventude prometia foi miseravelmente descumprido.
Penso em um país cuja arquitetura era referência mundial e hoje se inspira em Gotham City, a cidade de Batman e Robin. Às vezes, parece-me surpreendê-los a sobrevoar em São Paulo a área da Avenida Berrini. Os pensadores agora atendem pelo sobrenome de Magnoli ou Mainardi, e já foram Gilberto Freire, Raymundo Faoro, Sérgio Buarque de Hollanda. Ao sair do curso noturno da Faculdade do Largo de São Francisco comprava a Última Hora e no bonde, de volta para casa, lia Nelson Rodrigues, com sua A Vida como Ela É, como anos após leria Stanislaw Ponte Preta a falar do Febeapá, o festival de besteiras que assola o país. Motorneiro, cobrador e os escassos passageiros surpreendiam-se com minhas gargalhadas.
Estava alegre e tinha razões para tanto. A marchinha de carnaval recomendava tirar o anel de doutor na hora da folia, “para não dar o que falar” ao passo que o samba via a lua “furando o nosso zinco”, a salpicar “de estrelas nosso chão”. E tu? “Tu pisavas os astros, distraída.”
Já não se fazem a alegria e a melancolia de antigamente, diria Millôr. A energia criativa, a santa ironia. À espera, então, de um futuro feliz para todos.
A grande mídia a serviço de quadrilhas
organizadas
J.Carlos de Assis (*)
Décadas atrás li a autobiografia do general Reinhard Gehlen, o chefe da espionagem alemã no Leste europeu durante a Segunda Guerra, o qual, com o fim desta e a derrota de Hitler, salvou a própria cabeça e as cabeças de seus auxiliares mais próximos vendendo aos americanos seus arquivos e sua rede de contatos no coração da União Soviética. Tornou-se uma legenda, pela eficiência com que organizou, nas duas situações – sob Hitler, e sob os americanos -, sua excepcional rede de espionagem contra os soviéticos.
O fim da guerra deveria ter significado também o seu fim. Precavido, antes da derrocada final alemã enterrou algo como 50 barris de microfilmes em montanhas da Áustria para negociá-los com os vencedores. Deu certo. Gehlen acabou conquistando a confiança dos americanos, e da própria CIA, transferindo para eles sua lealdade e, principalmente, seus arquivos materiais e mentais. Na antiga função, notabilizara-se sobretudo por ter sob seu comando centenas de brilhantes jovens espiões, recrutados entre a elite dos exércitos alemães. Na nova, manteve esses critérios.
Cerca de 4 mil agentes do antigo Reich foram “transferidos” para os serviços de espionagem da nova Alemanha dirigidos por Gehlen. Foram fundamentais para a organização de um serviço de informação ocidental direcionado contra os soviéticos. Antes, não havia nenhum sistema de espionagem estruturado nesse sentido pelos americanos. Sem os serviços de Gehlen, e sem essa “transferência”, os Estados Unidos teriam uma tremenda dificuldade na condução ideológica de seu lado na Guerra Fria, que não se limitava apenas à espionagem, mas também à comunicação.
Essas reminiscências me vieram à mente com o fim da União Soviética, e com a pergunta óbvia: O que foi feito do imenso aparato de espionagem, informação e contra-informação soviético, deixado sem pai nem mãe enquanto o Estado se desestruturava no desgoverno Yeltsin? Sabemos que algo dele sobreviveu nas mãos de Putin, mas até que este antigo homem de informação assumisse o poder dezenas de milhares de espiões de dentro e de fora da União Soviética perderam privilégios e rendas, sendo forçados a buscar outros meios de vida.
Minha intuição é que essa rede universal de espionagem deserdada, não tendo em seu comando um general Gehlen que a negociasse em bloco com um novo patrão – os americanos não se interessariam, a não ser pelos cabeças -, tem sido comprada no varejo por duas estruturas poderosas, que podem pagar por ela: o sistema financeiro e a grande mídia. O sistema financeiro usa a espionagem privada para manipular e chantagear políticos na busca de decisões legislativas a seu favor. É uma forma agressiva de lobby, que funciona sobretudo nos Estados Unidos.
Quanto à utilização pela mídia de espiões descolados das estruturas formais de espionagem, tivemos a primeira evidência mundial com o caso Murdoch na Inglaterra: esse mega-empresário das comunicações, dono do Wall Street Journal, dentre outros jornais de direita, foi pego com a boca na botija ao empregar espiões para grampear personalidades de várias áreas na Inglaterra para chantageá-los com seu jornal de escândalos. Isso sugere o cruzamento de interesses financeiros com interesses midiáticos espúrios, numa conspiração gigantesca, em escala global, contra a democracia.
No Brasil, estamos assistindo estupefatos ao descortinamento do conúbio inacreditável entre mídia e crime organizado: gravações feitas pela Polícia Federal com autorização da Justiça revelam que a maior revista do país, “Veja”, tem sido regularmente pautada por bandidos que usam espiões privados, alguns egressos do antigo SNI, para muitas vezes forjar escândalos. Note-se que o SNI, Serviço Nacional de Informações, foi extinto por Collor anos atrás, e seus espiões, assim como os soviéticos, foram deixados à solta no mundo para quem pagasse melhor.
Em relação à “Veja” havia outros indícios de utilização de espiões, como tem sido bem documentado pelos jornalistas Luís Nassif e Paulo Henrique Amorim. Com minha experiência de mais de 30 anos de jornalismo ativo, e tendo eu próprio sido um dos introdutores do jornalismo econômico investigativo na área econômica no início dos anos 80 – portanto, ainda sob a ditadura -, desconfio de reportagens com excesso de detalhes cronológicos, minuto a minuto – como recentemente fizeram com José Dirceu. Nenhum repórter consegue esses detalhes relativamente a fatos passados a não ser pela mão de um espião. Alguém os colhe, e a maioria que os colhe, colhe-os para vender. Como outras revistas de direita, “Veja” paga pelo material, na medida em que rende aumento de circulação, pondo um laranja para assinar. Tudo se faz, claro, sob o manto protetor da liberdade de imprensa!
(*)Autor: J. Carlos de Assis – economista e professor, presidente do INTERSUL, autor, junto com o físico-matemático Francisco Antonio Doria, do recém-lançado “O universo neoliberal em desencanto”, pela editora Civilização Brasileira. Esta coluna é publicada também no site “Rumos do Brasil” e, às terças, no jornal carioca Monitor Mercantil.
Fonte: www.rumosdobrasil.org
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