Para ganhar no grito
Por Sérgio Lírio
Franklin Martins afasta o corpo da mesa, gira levemente a cabeça e contorce os lábios em um de seus gestos típicos, um misto de impaciência e desdém com um comentário que no primeiro momento lhe parece irrelevante ou fora de foco. Ele veste jeans e uma camisa social, e tem dedicado o “ano sabático” a escrever dois livros sobre a forma como a música brasileira retrata a política, projeto interrompido quando aceitou ingressar no governo Lula em 2007.
Talvez tenha sido um recurso para ganhar tempo na elaboração da resposta. Martins nem bem sentara à mesa de um café em Brasília, onde topou o encontro após uma razoável dose de insistência minha, quando observei que os meios de comunicação têm tentado nos últimos anos impingir-lhe a marca de “censor”, de um autoritário disposto a conspurcar o sagrado direito à liberdade de expressão. “É um reflexo condicionado, ideologia”, começa. “A mídia brasileira não quer se discutir nem deixar discutir. Mas não hácomoescapar, é inevitável diante das mudanças tecnológicas. Ou fazemos um debate franco e democrático sobre a regulação dos meios, com a participação de todos, ou prevalecerá a lei do mais forte.”
Desta vez e ao contrário do passado, desconfia Martins, a selva tem um novo rei, as companhias telefônicas. “Em 2010, as empresas de mídia faturaram 13 bilhões de reais. As teles, 180 bilhões. É fácil imaginar quem vai ganhar essa disputa econômica se a -opção for o -vale-tudo, o faroeste. O problema para a sociedade é que são enormes os riscos de uma concentração ainda maior.”
Esta é uma discussão deliberadamente distorcida pela mídia. Durante o governo Fernando Henrique Cardoso, os donos dos meios de comunicação barraram os projetos em acordos de bastidores. Por isso FHC é considerado um “democrata”. Sob Lula não foi diferente, os grupos sempre impuseram sua vontade no fim das contas, mas a antipatia do presidente e de parte do PT pela maneiracomoforam tratados ao longo da década levou as empresas a adotarem um discurso mais beligerante. Do confronto, mais aparente que real, -vicejou a tese de um viés autoritário cujo objetivo seria calar “a imprensa livre”.
O ex-ministro lembra, com humor, de uma frase atribuída a ele durante a conferência de comunicação patrocinada pelo governo para discutir um novo marco regulatório. À época, jornais, revistas, tevês e rádios reproduziramcomoverdade uma suposta frase sua: “Vou enfiar esta lei goela abaixo da sociedade”. Ao mesmo tempo, as associações empresariais anunciavam oficialmente a não participação na conferência. “Nunca disse isso. Perguntei aos jornalistas de onde eles haviam tirado essa informação. Ninguém conseguiu me responder, mas a pauta estava pronta.”
Não foi a primeira vez, nem será a última, que frases e intenções são arbitrariamente atribuídas a quem não as defende. Se existe um ato de censura hoje em voga no País ele parte daqueles que se proclamaram defensores das liberdades. Qualquer discussão a respeito da legislação é logo interditada sob o argumento de uma suposta matriz autoritária. Não adianta argumentar que nossas leis são antigas, confusas, não dão conta das profundas e recentes mudanças tecnológicas. Nem que o setor, em vários aspectos, vive na ilegalidade pelo fato de boa parte dos artigos da Constituição referentes à comunicação nunca terem sido regulamentados. Ou que os países desenvolvidos promoveram alterações profundas em suas leis nos últimos 20 anos e que a Unesco, em relatório independente, tenha apontado falhas graves que aproximam a legislação nativa da completa barbárie.
Discursar em favor da liberdade de expressão virou um cacoete – e serve, em geral, para desqualificar propostas que desejam ampliá-la e não reduzi-la. A insistência étantaque chega a produzir cenas patéticas,comoa de uma repórter que viu no assassinato do cinegrafista da Band durante uma operação no morro carioca, lamentável, mas parte do risco profissional, um ataque à liberdade de imprensa.
A realidade mostra, ao contrário, que o exercício do jornalismo nunca foi tão livre no Brasil. Pode-se até afirmar, com base nos fatos, que desde a decisão do Supremo Tribunal Federal de liquidar a Lei de Imprensa sem regulamentar o direito de resposta, a mídia tem sido mais algoz do que vítima de abusos diversos. Fora raras exceções a comprovar a regra, não há poder capaz de contrastar a força dos meios. Liberais da economia costumam comungar da mesma visão de mundo dos veículos de comunicação, mas até esse grupo deveria refletir. Há uma distorção dos mecanismos de livre mercado que prejudica o bom funcionamento dos agentes econômicos. Após quase três décadas da volta dos civis ao poder, e dos inúmeros choques produzidos na economia nacional, o setor de comunicação continua um raro, senão único, setor a contar com fortes barreiras protecionistas – e sua eficiência tem sido prejudicada por uma crescente oligopolização e pela limitação a novos competidores.
Nem regras simples adotadas na maioria dos países e previstas na Constituição brasileira conseguem vigorar. Qualquer cidadão concordará: o ideal para a democracia e para a economia seria impedir que um mesmo grupo controlasse, em uma mesma cidade, emissoras de tevê, rádio e jornais. É uma norma válida, por exemplo, nos Estados Unidos, onde a mídia nasceu e vicejou a partir da livre iniciativa. Também deve achar razoável que políticos em mandato ou no exercício de cargos públicos sejam proibidos de controlar meios de comunicação.
No Brasil, isso não só ocorre,comoexiste uma simbiose secular entre o controle da mídia e o poder político. Não se trata apenas do fato de a Globo, noRio de JaneiroeemSão Paulo, ser dona de tevê, rádios e veí-culos impressos. Ou de a RBS, associada à família Marinho, dominar as comunicações de forma horizontal, vertical e transversal no Sul do País. Os herdeiros de Antonio Carlos Magalhães naBahiae a família Sarney no Maranhão, para citar os dois casos notórios, mas não isolados, comandam os principais meios de comunicação em seus estados, a ponto de sufocar qualquer concorrência empresarial e política. “É o único setor da sociedade que combina economia e política. O detentor de um meio de comunicação tem um poder que nenhum outro proprietário tem”, diz Laurindo Leal Filho, professor da Escola de Comunicação e Artes da USP. “Essa situação, por si só, exigiria um olhar atento da sociedade. Há ainda o fato de as frequências de rádio e tevê serem bens finitos, pertencentes a todos os brasileiros. Portanto, não hácomocontestar a regulação.”
A influência política permite a concessionários se comportaremcomono Velho Oeste. Ninguém em sã consciência acha normal que o proprietário de uma concessão de uma usina hidrelétrica ou de uma frequência de telefonia possa vendê-la a um terceiro sem que a transação seja aprovada pelos respectivos órgãos reguladores – e em alguns casos as transações são simplesmente vetadas. Mas é o que acontece, com frequência abusiva, na radiodifusão (sem falar nos “laranjas”). E o que dizer davendade horários na programação? Alguém admitiria ir ao cinema assistir a um filme dos irmãos Coen e no meio da projeção ser obrigado a ver cenas de ação de Jackie Chan? Pois acontece na maioria das tevês abertas e em muitas rádios, que ganham dinheiro com o aluguel de largos espaços a igrejas pentecostais. Essa burla à lei permite, por exemplo, à Record concorrer de maneira desleal no mercado de televisão.
A simbiose, de um lado, e o -simples medo, de outro, impedem que a discussão- caminhe no Congresso -Nacional. O governo Fernando Henrique Cardoso chegou a preparar três projetos de modernização da radiodifusão. Todos engavetados. Lula acenou várias vezes com a possibilidade, até que Martins, em sua última missão, organizou a conferência de comunicação e dela extraiu os elementos de uma proposta. Na transição para a administração Dilma Rousseff, o texto foi entregue ao ministro Paulo Bernardo, que promete colocar a proposta em discussão pública a partir de dezembro, embora o Palácio do Planalto tenha deixado claro não se tratar de uma prioridade do mandato.
O tema também não empolga os partidos. Uma frente parlamentar reúne deputados de diversas legendas, mas as -cúpulas mantêm um claro distanciamento do grupo. Há duas exceções, talvez. Após aprovar uma resolução em seu congresso nacional, o PT patrocina na sexta-feira 25,emSão Paulo, um debate sobre o tema. A ideia é ouvir os movimentos sociais a respeito e, em certa medida, se descolar do governo, que ainda não encontrou a melhor forma de encaminhar a discussão-. Já o Psol foi a única agremiação a encampar uma ação no Supremo Tribunal Federal proposta pelo Intervozes, organização formada por jornalistas e radialistas que há oito anos defende regras para ampliar o acesso aos meios de comunicação. Na ação, a entidade civil pede que o STF exija do Ministério das Comunicações o cumprimento do capítulo da Constituição que trata dos políticos: quem estiver na ativa deve ser afastado do controle de empresas do setor.
Segundo João Brant, do Intervozes, a regulamentação dos artigos da Constituição referentes à comunicação seria um grande passo para garantir mais pluralidade e diversidade na mídia. Mas seria preciso, diz ele, avançar em alguns outros pontos, entre eles a separação entre infraestrutura e conteúdo na radiodifusão. É uma regra adotada na Europa e nos Estados Unidos e, ironicamente, incorporada à lei de tevê por assinatura no Brasil. Ela parte de uma constatação simples que tem o poder de controlar os riscos de monopólio: quem distribui conteúdo, não pode produzi-los. “Há uma tendência de concentração na mídia maior do que em outros setores. E o pior: os efeitos não se dão apenas sobre a economia. Eles afetam diretamente a democracia”, diz Brant. “Em consequência, o setor deve estar sob constante vigilância e discussão. No Reino Unido, as leis são revistas praticamente de cinco em cinco anos”.
Professor aposentado da UnB e um dos mais ativos críticos de mídia do País, Venício Lima acha que a lei de tevê por assinatura expôs novamente o ainda enorme poder político da Rede Globo. Segundo Lima, a lei conseguiu limitar o avanço das empresas de telefonia, proibidas de produzir conteúdo, enquanto na tevê aberta, a Globo sobretudo e as demais emissoras continuam a ter o direito de controlar a transmissão e ao mesmo tempo produzir o que irá ao ar. “Entre 35% e 40% dos senadores são vinculados a concessionárias de comunicação. Não vejocomoas coisas podem avançar.”
Martins é mais otimista. Segundo ele, a lei de tevê por assinatura estabeleceu um parâmetro para as -futuras discussões- de uma regulação geral. Além de separar transmissão e conteúdo, estabeleceram-se cotas para a produção nacional e regional a ser exibida, outro ponto da Carta de 1988 ainda não regulamentado. “Na sociedade do conhecimento, haverá uma oferta espetacular de informação. E o Brasil precisa se preparar.”
Paraafastar o que considera um “bode na sala”, a tese da censura, o ex-ministro propõe: “A discussão deveria se circunscrever a um conceito simples. Nada que fira a Constituição e nada que engavete a Constituição”. Martins afirma que os movimentos sociais evoluíram nos últimos anos. Uma das provas seria o fato de a expressão “controle social da mídia”, um conceito vago e autoritário antes repetido ad nauseam, ter desaparecido do léxico dos defensores da regulação.
Os representantes dos meios de comunicação continuam presos a velhos mitos. Distorcem conceitos e declarações, omitem informações e têm dificuldade em admitir que seu poder real e relativo se dilui por conta dos avanços tecnológicos mundiais e das transformações sociais no Brasil.
Seria recomendável a leitura de um artigo de 1829 do jornalista Líbero Badaró, intitulado Liberdade de Imprensa, relançado recentemente em uma elegante edição de capa dura. A intenção de quem republica o texto neste momento, um grupo de advogados paulistas, é inegável: alinhar-se a quem enxerga riscos à liberdade de expressão no Brasil.
Do lúcido texto é possível, porém, extrair outras lições. Badaró foi assassinado por partidário de dom Pedro e seu artigo, uma crítica à monarquia, concentra-se nos excessos do poder da realeza. Mas o jornalista não deixa de comentar os abusos do jornalismo: “Nada há de mais baixo, de mais vil, de mais criminoso, que mereça mais todo o peso do público opróbrio do que aquele que prostitui a sua pena”. Dois séculos depois, aqui estamos no mesmo ponto. Discutir de forma honesta a modernização das leis poderia ser uma forma de a mídia brasileira enfrentar seu pior inimigo: ela mesma
Fonte: www.cartacapital.com.br
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DEBATE ABERTO
A grande mídia e a falsa disputa entre liberdade vs. censura
A grande mídia está vencendo a “batalha das idéias” e tem conseguido construir como significação dominante no espaço público que a sociedade brasileira estaria diante de uma disputa entre liberdade (liberdade de expressão) e censura do estado (regulação, autoritarismo).
Venício Lima
Diante da feroz reação da grande mídia às propostas apresentadas (e àquelas que sequer foram apresentadas) no IV Congresso Extraordinário do Partido dos Trabalhadores, relativas a um Marco Regulatório para as Comunicações, escrevi no Observatório da Imprensa nº 658: A saída parece ser colocar imediatamente para o debate público um projeto de marco regulatório. (...) Diante de uma proposta concreta de regulação democrática – a exemplo do que acontece nos países civilizados – seus eternos opositores terão que mostrar objetivamente onde de fato está a defesa da censura e onde se postula o controle autoritário da mídia. Não há alternativa.
Menos de três meses depois, o fato de o Governo Dilma não haver ainda apresentado um projeto de Marco Regulatório, aliado à incapacidade dos “não-atores” [organizações da sociedade civil; entidades representativas da mídia pública (comunitária) e o próprio Ministério Público] de interferir efetivamente na definição da agenda pública e, mais do que isso, no enquadramento dos temas dessa agenda, vai aos poucos consolidando um falso cenário (“communication environment”) em relação ao que de fato está em jogo.
A grande mídia está vencendo a “batalha das idéias” e tem conseguido construir como significação dominante no espaço público que a sociedade brasileira estaria diante de uma disputa entre liberdade (liberdade de expressão) e censura do estado (regulação, autoritarismo).
Quem é contra a liberdade?
Na verdade esta é uma velha e conhecida tática utilizada por certos setores da sociedade brasileira. Escolhe-se um princípio sobre o qual existe amplo consenso e desloca-se a questão em disputa para seu campo de significação. Como em política, apoiar uma posição significa estar contra outras, é preciso identificar um adversário, no caso, os inimigos da liberdade. A quem se convenceria se ninguém defendesse a posição contrária? É necessário, portanto, que a grande mídia convença a maioria da população de que “alguém” é contra a liberdade – mesmo que nossa história política, em várias ocasiões, revele exatamente o inverso. Como a grande mídia (ainda) tem o poder de construir a agenda pública e enquadrá-la, repete exaustivamente a “inversão” até criar um ambiente falso no qual ela – a grande mídia – se apresenta como a grande defensora da liberdade. Resultado: se interdita a possibilidade de um debate racional do que de fato está em jogo.
Manuel Castells – um dos maiores estudiosos da comunicação nas “sociedades em rede” globalizadas – explica que o poder é exercido através da construção de significados na base dos discursos que orientam a ação dos atores sociais. E, claro, o significado é construído pelo processo de “ação comunicativa” na esfera pública, isto é, na rede (network) de comunicação, informação e pontos de vista [cf. “Communication Power”, Oxford, pbk. 2011].
Liberdade tem sido um dos termos mais problemáticos e difundidos do pensamento moderno, tanto na consciência popular quanto na conceituação de “experts”. Junto com outros termos como desenvolvimento e democracia, é parte da história da modernidade que tem dominado o pensamento ocidental pelos últimos três séculos. Durante a Guerra Fria, liberdade serviu como argumento central na disputa ideológica entre o ocidente e o oriente e, em parte, também contra o “Terceiro Mundo”. Com o fim da União Soviética, o uso ideológico da liberdade ganha novas dimensões e contornos [cf. K. Nordenstreng, “Myths about press freedom”, Brazilian Journalism Research, vol. 3, nº 1, 2007; p. 15 e segs.].
Censura vs. liberdade de expressão
Nesse contexto, não basta comprovar que a mídia é regulada nas democracias mais avançadas do mundo; não basta propor que as normas e princípios já constantes da Constituição de 88 sejam o “terreno comum” para as negociações (como fez o ex-ministro Franklin Martins recentemente em Porto Alegre); não basta mostrar que as mudanças tecnológicas exigem uma atualização da legislação; não basta reiterar compromissos com a Constituição Federal e com a liberdade de expressão. Nada é suficiente.
O vazio provocado pela ausência de propostas concretas do governo e a incapacidade dos “não-atores”, faz com que o campo de significações sobre o que constitui um Marco Regulatório das Comunicações esteja sob o controle daqueles que são contrários a ele.
Essa é a situação em que nos encontramos hoje.
O que fazer?
É possível alterar “o ambiente de comunicação” vigente e recolocar o debate em termos compatíveis com a convivência democrática entre opiniões e idéias divergentes?
Para os “não-atores” e os partidos políticos que agora se comprometem diretamente com essa bandeira, não existe outra forma senão pressionar o Governo para que torne público “um” Projeto de Lei e insistir, através de todos os recursos alternativos existentes – e aqui as novas TICs desempenham um papel fundamental – que um Marco Regulatório para as Comunicações significa, de fato, a garantia de que mais vozes se expressem no debate público, que haja mais participação, mais pluralidade, mais diversidade, isto é, mais – e não menos – liberdade.
É exatamente a possibilidade de ampliação da democracia que contraria os (ainda) poderosos interesses dos poucos grupos que, ao longo de nossa história, tem entendido, praticado e defendido a liberdade de expressão como se ela fosse somente sua e impedido que a voz da imensa maioria da população seja ouvida.
A ver.
Menos de três meses depois, o fato de o Governo Dilma não haver ainda apresentado um projeto de Marco Regulatório, aliado à incapacidade dos “não-atores” [organizações da sociedade civil; entidades representativas da mídia pública (comunitária) e o próprio Ministério Público] de interferir efetivamente na definição da agenda pública e, mais do que isso, no enquadramento dos temas dessa agenda, vai aos poucos consolidando um falso cenário (“communication environment”) em relação ao que de fato está em jogo.
A grande mídia está vencendo a “batalha das idéias” e tem conseguido construir como significação dominante no espaço público que a sociedade brasileira estaria diante de uma disputa entre liberdade (liberdade de expressão) e censura do estado (regulação, autoritarismo).
Quem é contra a liberdade?
Na verdade esta é uma velha e conhecida tática utilizada por certos setores da sociedade brasileira. Escolhe-se um princípio sobre o qual existe amplo consenso e desloca-se a questão em disputa para seu campo de significação. Como em política, apoiar uma posição significa estar contra outras, é preciso identificar um adversário, no caso, os inimigos da liberdade. A quem se convenceria se ninguém defendesse a posição contrária? É necessário, portanto, que a grande mídia convença a maioria da população de que “alguém” é contra a liberdade – mesmo que nossa história política, em várias ocasiões, revele exatamente o inverso. Como a grande mídia (ainda) tem o poder de construir a agenda pública e enquadrá-la, repete exaustivamente a “inversão” até criar um ambiente falso no qual ela – a grande mídia – se apresenta como a grande defensora da liberdade. Resultado: se interdita a possibilidade de um debate racional do que de fato está em jogo.
Manuel Castells – um dos maiores estudiosos da comunicação nas “sociedades em rede” globalizadas – explica que o poder é exercido através da construção de significados na base dos discursos que orientam a ação dos atores sociais. E, claro, o significado é construído pelo processo de “ação comunicativa” na esfera pública, isto é, na rede (network) de comunicação, informação e pontos de vista [cf. “Communication Power”, Oxford, pbk. 2011].
Liberdade tem sido um dos termos mais problemáticos e difundidos do pensamento moderno, tanto na consciência popular quanto na conceituação de “experts”. Junto com outros termos como desenvolvimento e democracia, é parte da história da modernidade que tem dominado o pensamento ocidental pelos últimos três séculos. Durante a Guerra Fria, liberdade serviu como argumento central na disputa ideológica entre o ocidente e o oriente e, em parte, também contra o “Terceiro Mundo”. Com o fim da União Soviética, o uso ideológico da liberdade ganha novas dimensões e contornos [cf. K. Nordenstreng, “Myths about press freedom”, Brazilian Journalism Research, vol. 3, nº 1, 2007; p. 15 e segs.].
Censura vs. liberdade de expressão
Nesse contexto, não basta comprovar que a mídia é regulada nas democracias mais avançadas do mundo; não basta propor que as normas e princípios já constantes da Constituição de 88 sejam o “terreno comum” para as negociações (como fez o ex-ministro Franklin Martins recentemente em Porto Alegre); não basta mostrar que as mudanças tecnológicas exigem uma atualização da legislação; não basta reiterar compromissos com a Constituição Federal e com a liberdade de expressão. Nada é suficiente.
O vazio provocado pela ausência de propostas concretas do governo e a incapacidade dos “não-atores”, faz com que o campo de significações sobre o que constitui um Marco Regulatório das Comunicações esteja sob o controle daqueles que são contrários a ele.
Essa é a situação em que nos encontramos hoje.
O que fazer?
É possível alterar “o ambiente de comunicação” vigente e recolocar o debate em termos compatíveis com a convivência democrática entre opiniões e idéias divergentes?
Para os “não-atores” e os partidos políticos que agora se comprometem diretamente com essa bandeira, não existe outra forma senão pressionar o Governo para que torne público “um” Projeto de Lei e insistir, através de todos os recursos alternativos existentes – e aqui as novas TICs desempenham um papel fundamental – que um Marco Regulatório para as Comunicações significa, de fato, a garantia de que mais vozes se expressem no debate público, que haja mais participação, mais pluralidade, mais diversidade, isto é, mais – e não menos – liberdade.
É exatamente a possibilidade de ampliação da democracia que contraria os (ainda) poderosos interesses dos poucos grupos que, ao longo de nossa história, tem entendido, praticado e defendido a liberdade de expressão como se ela fosse somente sua e impedido que a voz da imensa maioria da população seja ouvida.
A ver.
Professor Titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado) e autor, dentre outros, de Regulação das Comunicações – História, poder e direitos, Editora Paulus, 2011.
Fonte: www.cartamaior.com.br
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