A espetacularização da barbárie
Izaías Almada(*)
Mal a humanidade inicia a sua caminhada pelo século XXI adentro e os sinais exteriores da barbárie reclamam seu perverso protagonismo no dia a dia de todos nós cidadãos e começam a pontuar, a se destacar, nos grandes feudos de comunicação em massa. O capitalismo perdeu a compostura de vez e escancara para quem quiser ver a verdadeira natureza de suas entranhas.
A mídia corporativa, a televisão em especial, dominada pelo entretenimento e pelo jornalismo de mau gosto dos últimos anos, avançou um degrau no plano de embrutecimento das consciências, na banalização sistemática dos costumes, dos sentimentos, e na alienação política dos cidadãos. Mas com uma curiosa e, sobretudo, perversa estratégia: a culpa dessa tragédia que nos enfiam pelos olhos e ouvidos, a sua articulação, será sempre dos terroristas muçulmanos ou poderá ser também dos excluídos e seus líderes populistas, ou ainda dos que insistem em teses anticapitalistas... E contra toda essa gente será necessária uma ação profilática e de preferência seguida por uma propaganda de impacto, o mais realista possível.
Nessa nova escalada para impor o terror e o medo, o primeiro a tombar foi Sadan Hussein após o genocídio no Iraque. Alguns anos depois vem a morte do “tão procurado” Osama Bin Laden e o genocídio do Afeganistão provocado pela caça ao líder da Al Qaeda. Agora, o cruel assassinato de Muhamar Khadafi e o genocídio líbio. Quem serão os próximos: Ahmadinejad no Irã, já anunciado inclusive, Hugo Chávez na Venezuela, Evo Morales na Bolívia? Algum eventual ditador africano ou asiático?
O “Complexo Industrial/Militar”, expressão tão em voga nos anos 60, não só não deixou de atuar à sombra todos esses anos, como tem se modernizado e feito – para usar linguagem atualíssima – o “upgrade” de suas atividades, alardeando a propaganda menos dissimulada de seus interesses. O desuso dessa expressão apenas mascara a contínua busca por outros eufemismos que escondam a ganância, a selvageria e a brutalidade que toma conta da minoria de milionários que comandam as grandes corporações de sociedades anônimas, as multinacionais que mantêm em suas mãos as rédeas econômicas e políticas de um mundo cada vez menos civilizado. Segundo pesquisa recente feita na Suíça por um Instituto de Tecnologia, pouco mais de 1300 grandes empresas entrelaçam-se nessa rede de domínio da economia mundial.
Como nos clássicos romances da literatura policial cabe aqui uma primeira pergunta: a quem interessam essas mortes e a grande e insana orgia midiática em volta delas? A lista real e hipotética indicada num dos parágrafos acima aponta para direção bem clara: a “democracia” ocidental e cristã, tutelada por meia dúzia de países no mundo sob o comando cruel e cínico dos Estados Unidos da América, procura, já sem nenhum escrúpulo, manter sob seu domínio alguns dos maiores produtores de petróleo e gás mundiais, ainda e por bom tempo as principais fontes de energia, para tocar os seus grandes negócios e não só.
Vejam o vídeo a seguir:
A mídia corporativa, a televisão em especial, dominada pelo entretenimento e pelo jornalismo de mau gosto dos últimos anos, avançou um degrau no plano de embrutecimento das consciências, na banalização sistemática dos costumes, dos sentimentos, e na alienação política dos cidadãos. Mas com uma curiosa e, sobretudo, perversa estratégia: a culpa dessa tragédia que nos enfiam pelos olhos e ouvidos, a sua articulação, será sempre dos terroristas muçulmanos ou poderá ser também dos excluídos e seus líderes populistas, ou ainda dos que insistem em teses anticapitalistas... E contra toda essa gente será necessária uma ação profilática e de preferência seguida por uma propaganda de impacto, o mais realista possível.
Nessa nova escalada para impor o terror e o medo, o primeiro a tombar foi Sadan Hussein após o genocídio no Iraque. Alguns anos depois vem a morte do “tão procurado” Osama Bin Laden e o genocídio do Afeganistão provocado pela caça ao líder da Al Qaeda. Agora, o cruel assassinato de Muhamar Khadafi e o genocídio líbio. Quem serão os próximos: Ahmadinejad no Irã, já anunciado inclusive, Hugo Chávez na Venezuela, Evo Morales na Bolívia? Algum eventual ditador africano ou asiático?
O “Complexo Industrial/Militar”, expressão tão em voga nos anos 60, não só não deixou de atuar à sombra todos esses anos, como tem se modernizado e feito – para usar linguagem atualíssima – o “upgrade” de suas atividades, alardeando a propaganda menos dissimulada de seus interesses. O desuso dessa expressão apenas mascara a contínua busca por outros eufemismos que escondam a ganância, a selvageria e a brutalidade que toma conta da minoria de milionários que comandam as grandes corporações de sociedades anônimas, as multinacionais que mantêm em suas mãos as rédeas econômicas e políticas de um mundo cada vez menos civilizado. Segundo pesquisa recente feita na Suíça por um Instituto de Tecnologia, pouco mais de 1300 grandes empresas entrelaçam-se nessa rede de domínio da economia mundial.
Como nos clássicos romances da literatura policial cabe aqui uma primeira pergunta: a quem interessam essas mortes e a grande e insana orgia midiática em volta delas? A lista real e hipotética indicada num dos parágrafos acima aponta para direção bem clara: a “democracia” ocidental e cristã, tutelada por meia dúzia de países no mundo sob o comando cruel e cínico dos Estados Unidos da América, procura, já sem nenhum escrúpulo, manter sob seu domínio alguns dos maiores produtores de petróleo e gás mundiais, ainda e por bom tempo as principais fontes de energia, para tocar os seus grandes negócios e não só.
Vejam o vídeo a seguir:
(*)Escritor e dramaturgo. Autor da peça “Uma Questão de Imagem” (Prêmio Vladimir Herzog de Direitos Humanos) e do livro “Teatro de Arena: Uma Estética de Resistência”, Editora Boitempo.
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Por que morreu o cinegrafista da
Band?
Gilberto Maringoni(*)
O cinegrafista Gelson Domingo, de 46 anos, acompanhava uma operação do Bope na favela Antares, na zona oeste do Rio de Janeiro, no último domingo. Foi atingido por um tiro de fuzil, que atravessou seu peito. Ele usava um colete à prova de balas, permitido pelas Forças Armadas. Sua morte está sendo investigada pela Divisão de Homicídios da Polícia Civil do estado.
A apuração pode demorar tempo.
O repórter Ernani Alves, que o acompanhava, disse não querer descansar enquanto o autor do disparo não estiver preso.
Gelson deixa três filhos, dois netos e sua mulher. Deixa também seus dois empregos, na TV Bandeirantes e na TV Brasil.
Gelson morreu ao vivo – sem trocadilho – e em tempo real.
O vídeo do tiroteio com sua agonia bateu recordes de acessos na internet.
A Bandeirantes também deu farta cobertura a respeito.
Em meio à dor e a estupefação geral, cabe a pergunta: por que Gelson morreu?
É possível arriscar pelo menos três fatores, que não são excludentes.
São eles:
1. Gelson colocou-se na linha de tiro por ser um repórter ousado.
Sim, é verdade. Gelson demonstrou grande coragem e ousadia ao se colocar em um ângulo que o deixava vulnerável.
O Sindicato dos Jornalistas do Estado do Rio de Janeiro alega que o colete que o cinegrafista portava na ocasião não o protegia de tiros de fuzil.
É possível que tenham razão, mas mesmo que usasse uma proteção mais grossa, o tiro poderia atingir seu rosto.
O mais provável é que Gelson tenha sido pautado para fazer a cobertura.
O mais provável é que Gelson também tenha decidido fazer aquela cobertura.
Cinegrafistas não ganham bem. O caso de Gelson é ilustrativo.
Para se manter, ele se virava em dois expedientes, em duas empresas.
Reportagem é uma atividade extremamente tensa. Não existe reportagem tranquila. Se é tranquila, geralmente não é boa.
Há uma tensão constante pelo melhor ângulo, pela declaração exclusiva, pelo furo, pela audiência, pelo alcance. Há uma pressão das chefias para que se supere a concorrência a todo custo e de qualquer maneira.
Essa tensão toda acaba sendo introjetada pelos repórteres em um mercado de trabalho extremamente competitivo. É preciso fazer mais, apurar mais, trabalhar mais, captar um detalhe, um grito, um tiro...
Algo semelhante acontece em outras categorias, regidas por um produtivismo exacerbado em busca de maiores ganhos em relações de trabalho cada vez mais precárias.
Nesse ambiente, as metas a serem atingidas por um profissional são progressivamente mais elevadas, como as colocadas diante de profissionais de vendas, bancários, operadores de telecentros etc. O trabalhador é premido pela escolha de trabalhar mais e mais horas, obtendo alguns ganhos, ou estabilizar seu ritmo de atividade e ser ultrapassado por um colega, correndo o risco de ser descartado num ambiente de alta rotatividade.
O sociólogo Ricardo Antunes define essa situação no seu O continente do labor (Boitempo):
“Quer mediante programas de qualidade total e dos sistemas just-in-time e kanban, quer mediante a introdução de ganhos salariais vinculados à lucratividade e à produtividade (de que é exemplo o Programa de Participação nos Lucros e Resultados – PLR), sob uma pragmática que se adequava fortemente aos desígnios neoliberais (...). finalmente o mundo produtivo encontrou uma contextualidade propícia para o deslanche vigoroso de sua reestruturação, do assim chamado enxugamento empresarial e da implementação de mecanismos estruturados em moldes mais flexíveis”.
É possível que Gelson tenha estado onde estava por decisão própria. Mas uma decisão pautada por um impulso produtivista inatingível, de ser o melhor, de se colocar como mais qualificado num mercado estreito e quase irracional.
2. O que Gelson estava fazendo lá?
A grande maioria das coberturas policiais é feita por repórteres que acompanham as tropas policiais. São avisados e pautados pelas autoridades policiais. Um repórter não vai a uma zona de confronto por ter apurado previamente um possível embate entre policias e bandidos.
Jornalistas acompanham forças de segurança aqui assim como jornalistas estadunidenses acompanham as tropas de ocupação no Iraque, Afeganistão e Líbia. São os embedded, embutidos ou embarcados, numa tradução ao pé da letra. Vão para mostrar o que as forças armadas determinam. Não fazem a pauta sozinhos. De certa maneira, funcionam como assessores de imprensa.
No vídeo fatal, Gelson estava atrás de um policial do Bope. Quase filma pela alça de mira do soldado.
Duas vozes se misturam:
“Olha lá, é vagabundo! Olha lá, bota a cabeça inteira! É vagabundo! Ta encurralado! Ta armado! Caralho!”
As direções de redação combinam detalhes de operações com as cúpulas das polícias. O tom da cobertura é o tom das polícias.
Para aqueles que não gostam do termo, lá vai: é a cobertura mais ideologizada que existe. Não está se mostrando “a vida como ela é”. Está se mostrando um pedaço recortado da vida, como alguém quer mostrar. O pedaço em que quem está do outro lado é “vagabundo”.
A ação é realizada no meio de uma favela. Não no meio de um bairro da zona sul. Ninguém chama um morador da zona sul de “vagabundo” assim, sem mais.
“Vagabundo” é o pé de chinelo, o pobre, exibido como troféu, agarrado pelos cabelos ou pelo pescoço diante das câmeras. Um espetáculo!
Não se sabe se os exibidos nesse caso da favela Antares eram de fato traficantes. São jovens moradores pobres de um lugar pobre. Já são suspeitos. Um dos quatro moradores do local mortos na operação não tinha antecedentes criminais. Cabe tudo no genérico “vagabundo”.
A chefia de reportagem deve ter pautado Gelson para ir até lá. A polícia deve ter pautado a redação.
3. Quem deixou Gelson ficar na linha de tiro?
Quem tem treinamento e conhecimento para situações de enfrentamento armado são as forças de segurança. Quem tem armamento para situações de enfrentamento é a polícia. No vídeo fica claro: Gelson se coloca atrás do policial que está atrás de um poste, mas à sua direita. Para captar a cena, teve de se expor.
Como as forças de segurança do Estado permitem que um leigo esteja no fronte de batalha sem essa mais aquela?
Gelson, mulher, três filhos, dois netos e dois empregos recebeu treinamento para isso?
Caso não, por que?
As coberturas das guerras de ocupação promovidas pelos Estados Unidos são feitas para nos dar a impressão de que tudo não passa de um grande videogame. Os jogos de guerra que existem no mercado são assim: profusão de tiros, sangue, explosões e muita cor. Mas é tudo inofensivo. O jogador do lado de cá da tela está protegido, com seu controle remoto, em sua poltrona na sala de sua casa ou numa lan house.
De vez em quando há um efeito 3D e tudo parece real.
No caso de Gelson, foi mais que isso.
Como no filme “A rosa púrpura do Cairo”, de Woody Allen, a cena sai da tela e vem para o mundo real.
O game over aconteceu quando a bala saiu da tela e veio para o que se chama mundo real. Enquanto estava lá na favela, o tiroteio era apenas um videogame para entreter boa parte dos telespectadores.
Era só coisa de “vagabundo”, personagens do jogo.
(De conversas com Adelina França e Igor Fuser)
A apuração pode demorar tempo.
O repórter Ernani Alves, que o acompanhava, disse não querer descansar enquanto o autor do disparo não estiver preso.
Gelson deixa três filhos, dois netos e sua mulher. Deixa também seus dois empregos, na TV Bandeirantes e na TV Brasil.
Gelson morreu ao vivo – sem trocadilho – e em tempo real.
O vídeo do tiroteio com sua agonia bateu recordes de acessos na internet.
A Bandeirantes também deu farta cobertura a respeito.
Em meio à dor e a estupefação geral, cabe a pergunta: por que Gelson morreu?
É possível arriscar pelo menos três fatores, que não são excludentes.
São eles:
1. Gelson colocou-se na linha de tiro por ser um repórter ousado.
Sim, é verdade. Gelson demonstrou grande coragem e ousadia ao se colocar em um ângulo que o deixava vulnerável.
O Sindicato dos Jornalistas do Estado do Rio de Janeiro alega que o colete que o cinegrafista portava na ocasião não o protegia de tiros de fuzil.
É possível que tenham razão, mas mesmo que usasse uma proteção mais grossa, o tiro poderia atingir seu rosto.
O mais provável é que Gelson tenha sido pautado para fazer a cobertura.
O mais provável é que Gelson também tenha decidido fazer aquela cobertura.
Cinegrafistas não ganham bem. O caso de Gelson é ilustrativo.
Para se manter, ele se virava em dois expedientes, em duas empresas.
Reportagem é uma atividade extremamente tensa. Não existe reportagem tranquila. Se é tranquila, geralmente não é boa.
Há uma tensão constante pelo melhor ângulo, pela declaração exclusiva, pelo furo, pela audiência, pelo alcance. Há uma pressão das chefias para que se supere a concorrência a todo custo e de qualquer maneira.
Essa tensão toda acaba sendo introjetada pelos repórteres em um mercado de trabalho extremamente competitivo. É preciso fazer mais, apurar mais, trabalhar mais, captar um detalhe, um grito, um tiro...
Algo semelhante acontece em outras categorias, regidas por um produtivismo exacerbado em busca de maiores ganhos em relações de trabalho cada vez mais precárias.
Nesse ambiente, as metas a serem atingidas por um profissional são progressivamente mais elevadas, como as colocadas diante de profissionais de vendas, bancários, operadores de telecentros etc. O trabalhador é premido pela escolha de trabalhar mais e mais horas, obtendo alguns ganhos, ou estabilizar seu ritmo de atividade e ser ultrapassado por um colega, correndo o risco de ser descartado num ambiente de alta rotatividade.
O sociólogo Ricardo Antunes define essa situação no seu O continente do labor (Boitempo):
“Quer mediante programas de qualidade total e dos sistemas just-in-time e kanban, quer mediante a introdução de ganhos salariais vinculados à lucratividade e à produtividade (de que é exemplo o Programa de Participação nos Lucros e Resultados – PLR), sob uma pragmática que se adequava fortemente aos desígnios neoliberais (...). finalmente o mundo produtivo encontrou uma contextualidade propícia para o deslanche vigoroso de sua reestruturação, do assim chamado enxugamento empresarial e da implementação de mecanismos estruturados em moldes mais flexíveis”.
É possível que Gelson tenha estado onde estava por decisão própria. Mas uma decisão pautada por um impulso produtivista inatingível, de ser o melhor, de se colocar como mais qualificado num mercado estreito e quase irracional.
2. O que Gelson estava fazendo lá?
A grande maioria das coberturas policiais é feita por repórteres que acompanham as tropas policiais. São avisados e pautados pelas autoridades policiais. Um repórter não vai a uma zona de confronto por ter apurado previamente um possível embate entre policias e bandidos.
Jornalistas acompanham forças de segurança aqui assim como jornalistas estadunidenses acompanham as tropas de ocupação no Iraque, Afeganistão e Líbia. São os embedded, embutidos ou embarcados, numa tradução ao pé da letra. Vão para mostrar o que as forças armadas determinam. Não fazem a pauta sozinhos. De certa maneira, funcionam como assessores de imprensa.
No vídeo fatal, Gelson estava atrás de um policial do Bope. Quase filma pela alça de mira do soldado.
Duas vozes se misturam:
“Olha lá, é vagabundo! Olha lá, bota a cabeça inteira! É vagabundo! Ta encurralado! Ta armado! Caralho!”
As direções de redação combinam detalhes de operações com as cúpulas das polícias. O tom da cobertura é o tom das polícias.
Para aqueles que não gostam do termo, lá vai: é a cobertura mais ideologizada que existe. Não está se mostrando “a vida como ela é”. Está se mostrando um pedaço recortado da vida, como alguém quer mostrar. O pedaço em que quem está do outro lado é “vagabundo”.
A ação é realizada no meio de uma favela. Não no meio de um bairro da zona sul. Ninguém chama um morador da zona sul de “vagabundo” assim, sem mais.
“Vagabundo” é o pé de chinelo, o pobre, exibido como troféu, agarrado pelos cabelos ou pelo pescoço diante das câmeras. Um espetáculo!
Não se sabe se os exibidos nesse caso da favela Antares eram de fato traficantes. São jovens moradores pobres de um lugar pobre. Já são suspeitos. Um dos quatro moradores do local mortos na operação não tinha antecedentes criminais. Cabe tudo no genérico “vagabundo”.
A chefia de reportagem deve ter pautado Gelson para ir até lá. A polícia deve ter pautado a redação.
3. Quem deixou Gelson ficar na linha de tiro?
Quem tem treinamento e conhecimento para situações de enfrentamento armado são as forças de segurança. Quem tem armamento para situações de enfrentamento é a polícia. No vídeo fica claro: Gelson se coloca atrás do policial que está atrás de um poste, mas à sua direita. Para captar a cena, teve de se expor.
Como as forças de segurança do Estado permitem que um leigo esteja no fronte de batalha sem essa mais aquela?
Gelson, mulher, três filhos, dois netos e dois empregos recebeu treinamento para isso?
Caso não, por que?
As coberturas das guerras de ocupação promovidas pelos Estados Unidos são feitas para nos dar a impressão de que tudo não passa de um grande videogame. Os jogos de guerra que existem no mercado são assim: profusão de tiros, sangue, explosões e muita cor. Mas é tudo inofensivo. O jogador do lado de cá da tela está protegido, com seu controle remoto, em sua poltrona na sala de sua casa ou numa lan house.
De vez em quando há um efeito 3D e tudo parece real.
No caso de Gelson, foi mais que isso.
Como no filme “A rosa púrpura do Cairo”, de Woody Allen, a cena sai da tela e vem para o mundo real.
O game over aconteceu quando a bala saiu da tela e veio para o que se chama mundo real. Enquanto estava lá na favela, o tiroteio era apenas um videogame para entreter boa parte dos telespectadores.
Era só coisa de “vagabundo”, personagens do jogo.
(De conversas com Adelina França e Igor Fuser)
(*)Gilberto Maringoni, jornalista e cartunista, é doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de “A Venezuela que se inventa – poder, petróleo e intriga nos tempos de Chávez” (Editora Fundação Perseu Abramo).
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A sociedade civil: fermento da democracia
Cândido Grzybowski(*)
O Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas - Ibase é parte do
extenso, diverso e complexo conjunto de organizações sociais sem fins
lucrativos do Brasil (mais de 320 mil segundo o IBGE) denominado ONGs,
nome inventado para denominar atores públicos não governamentais quando da criação da ONU, em 1945. Entre nós, o nome genérico ONG pegou exatamente quando da realização da maior Conferência das Nações Unidas no Brasil, a Eco-92. São entidades e movimentos sociais públicos, voltados à causa pública, aos bens comuns, à defesa e promoção de direitos humanos.
O Ibase se orgulha de fazer parte da Associação Brasileira da ONGs - ABONG desde a fundação, em 1991, sendo Betinho, à época diretor geral do Ibase, escolhido como seu presidente honorário. O Ibase se autodefine como organização de cidadania ativa e assim considera todas as afiliadas da ABONG e a imensa maioria das assim denominadas ONGs brasileiras.
Não é minha intenção lembrar aqui as relevantes agendas de direitos e de
cidadania levantadas pelo Ibase ao longo de seus 30 anos de história,
comemorados em agosto deste ano de 2011, história intimamente ligada à
democratização do Brasil. Isto porque é a história coletiva das ONGs que
merece um lugar central na reconstrução e aprofundamento da democracia
brasileira. Aí entram não só as poucas afiliadas da ABONG.
A democracia no Brasil deve muito às ações não governamentais das Pastorais Sociais (da Criança, da Terra, Urbana...), às redes e fóruns (economia solidária, catadores de lixo, segurança alimentar, Articulação do Semiárido, Agroecologia, Reforma Urbana...), aos movimentos sociais e suas entidades (Sem Terra, Atingidos por Barragens, Sem Teto Urbanos, Favelados, UNE e entidades de juventude...), às feministas e suas entidades, aos movimentos negros e suas entidades, aos movimentos dos GLBT, às entidades cidadãs de comunicação e iniciativas de inclusão cultural, às APAES, às Santas Casas, aos movimentos cidadãos como o Ficha Limpa e tantas e tantas outras iniciativas. Afinal, somos mais de 320 mil! Um grande tecido social, ativo e vibrante, que faz enorme diferença no enfrentamento de questões espinhosas da nossa democratização, sobretudo as múltiplas facetas da desigualdade e exclusão social que ainda nos marcam. Trata-se de uma sociedade civil emergente, com iniciativas de impacto mundial, como o Fórum Social Mundial, contraponto do Brasil emergente como potência econômica e ator geopolítico.
Mas, atenção! Todo este conjunto, indistintamente, está sendo criminalizado e confundido propositadamente com um minúsculo conjunto de organizações, também ONGs, que têm sido usadas como canais de desvio de recursos públicos. São organizações criadas ou controladas por políticos, deputados, ministros e altos funcionários públicos, corruptos e corruptores, que se valem da grande falta de um marco legal cidadão para as ONGs e, através de contratos nada transparentes, desviam recursos públicos. Desconhecer os verdadeiros culpados - o nosso corrupto e antidemocrático sistema político-partidário, o clientelismo e a privatização do bem público que estão encrustados no Estado brasileiro, todas questões no caminho da democratização - e buscar bodes expiatórios no complexo mundo das ONGs brasileiras é tarefa fácil, mas claramente antidemocrática. Considerar todas as ONGs, em sua diversidade e relevante papel cidadão, como sendo criminosas é má-fé e ataque à própria democracia. Aliás, surpreende que no mesmo clima de criminalização generalizada agora se tenta desqualificar o próprio movimento sindical, um outro pilar da sociedade civil, um dos principais artífices da cidadania entre nós. Estamos diante de um perigoso e irresponsável ataque a toda a sociedade civil, locus em que se gestam e crescem as democracias.
Inspiro-me num dos maiores teóricos da transformação democrática dos
sistemas políticos do século XX, Antônio Gramsci, para lembrar aqui a
centralidade das sociedades civis nas democracias. Para Gramsci, as
sociedades civis são o próprio berço das democracias. É nelas que se gestam as resistências ao poder e às políticas que dele emanam, se
produzem as alternativas e surgem os movimentos transformadores, primeiro como trincheiras diante do poder e depois como ação pública, na praça, que varre institucionalidades e produz um novo Estado de Direito. Foi assim entre nós. Está sendo assim, hoje, no Mundo Árabe. Sorrateiramente, começa a ser na autoritária China. Nas sociedades civis se forma a própria cidadania, não a delegada pelo Estado, mas a cidadania ativa constituinte e instituinte, que forja os sujeitos coletivos ao mesmo tempo que elabora a cultura democrática dos direitos de cidadania, define a
institucionalidade, cria e investe de legitimidade os representantes
detentores do poder político.
O ataque genérico que nos atinge, hoje, no Brasil, o vejo como uma
tentativa de deslegitimar conquistas fundamentais da democracia que temos. Pior, se quer impedir que surja mais uma nova e poderosa onda
transformadora - como as novas resistências e agendas que começam a
pipocar pelo Brasil afora -, cujo impulso só pode vir donde os poderosos
não querem, temendo por seus privilégios confundidos com direitos: a
multifacetada e sempre surpreendente sociedade civil brasileira.
O momento é difícil para a sociedade civil. Parece que após estas décadas
de democratização, chegamos a um ponto em que seríamos até dispensáveis, especialmente as ONGs, a acreditar no discurso conservador que domina nossa mídia e contamina o sistema político todo. Enganam-se os que pensam que este clima de denúncias vai intimidar as entidades e movimentos. Vamos usar a adversidade como oportunidade para nos refundar e radicalizar nosso papel como fermento democrático transformador, que faz da cidadania, de todos os direitos, dos bens comuns e da sustentabilidade da vida como as bases do viver coletivo para todas e todos.
extenso, diverso e complexo conjunto de organizações sociais sem fins
lucrativos do Brasil (mais de 320 mil segundo o IBGE) denominado ONGs,
nome inventado para denominar atores públicos não governamentais quando da criação da ONU, em 1945. Entre nós, o nome genérico ONG pegou exatamente quando da realização da maior Conferência das Nações Unidas no Brasil, a Eco-92. São entidades e movimentos sociais públicos, voltados à causa pública, aos bens comuns, à defesa e promoção de direitos humanos.
O Ibase se orgulha de fazer parte da Associação Brasileira da ONGs - ABONG desde a fundação, em 1991, sendo Betinho, à época diretor geral do Ibase, escolhido como seu presidente honorário. O Ibase se autodefine como organização de cidadania ativa e assim considera todas as afiliadas da ABONG e a imensa maioria das assim denominadas ONGs brasileiras.
Não é minha intenção lembrar aqui as relevantes agendas de direitos e de
cidadania levantadas pelo Ibase ao longo de seus 30 anos de história,
comemorados em agosto deste ano de 2011, história intimamente ligada à
democratização do Brasil. Isto porque é a história coletiva das ONGs que
merece um lugar central na reconstrução e aprofundamento da democracia
brasileira. Aí entram não só as poucas afiliadas da ABONG.
A democracia no Brasil deve muito às ações não governamentais das Pastorais Sociais (da Criança, da Terra, Urbana...), às redes e fóruns (economia solidária, catadores de lixo, segurança alimentar, Articulação do Semiárido, Agroecologia, Reforma Urbana...), aos movimentos sociais e suas entidades (Sem Terra, Atingidos por Barragens, Sem Teto Urbanos, Favelados, UNE e entidades de juventude...), às feministas e suas entidades, aos movimentos negros e suas entidades, aos movimentos dos GLBT, às entidades cidadãs de comunicação e iniciativas de inclusão cultural, às APAES, às Santas Casas, aos movimentos cidadãos como o Ficha Limpa e tantas e tantas outras iniciativas. Afinal, somos mais de 320 mil! Um grande tecido social, ativo e vibrante, que faz enorme diferença no enfrentamento de questões espinhosas da nossa democratização, sobretudo as múltiplas facetas da desigualdade e exclusão social que ainda nos marcam. Trata-se de uma sociedade civil emergente, com iniciativas de impacto mundial, como o Fórum Social Mundial, contraponto do Brasil emergente como potência econômica e ator geopolítico.
Mas, atenção! Todo este conjunto, indistintamente, está sendo criminalizado e confundido propositadamente com um minúsculo conjunto de organizações, também ONGs, que têm sido usadas como canais de desvio de recursos públicos. São organizações criadas ou controladas por políticos, deputados, ministros e altos funcionários públicos, corruptos e corruptores, que se valem da grande falta de um marco legal cidadão para as ONGs e, através de contratos nada transparentes, desviam recursos públicos. Desconhecer os verdadeiros culpados - o nosso corrupto e antidemocrático sistema político-partidário, o clientelismo e a privatização do bem público que estão encrustados no Estado brasileiro, todas questões no caminho da democratização - e buscar bodes expiatórios no complexo mundo das ONGs brasileiras é tarefa fácil, mas claramente antidemocrática. Considerar todas as ONGs, em sua diversidade e relevante papel cidadão, como sendo criminosas é má-fé e ataque à própria democracia. Aliás, surpreende que no mesmo clima de criminalização generalizada agora se tenta desqualificar o próprio movimento sindical, um outro pilar da sociedade civil, um dos principais artífices da cidadania entre nós. Estamos diante de um perigoso e irresponsável ataque a toda a sociedade civil, locus em que se gestam e crescem as democracias.
Inspiro-me num dos maiores teóricos da transformação democrática dos
sistemas políticos do século XX, Antônio Gramsci, para lembrar aqui a
centralidade das sociedades civis nas democracias. Para Gramsci, as
sociedades civis são o próprio berço das democracias. É nelas que se gestam as resistências ao poder e às políticas que dele emanam, se
produzem as alternativas e surgem os movimentos transformadores, primeiro como trincheiras diante do poder e depois como ação pública, na praça, que varre institucionalidades e produz um novo Estado de Direito. Foi assim entre nós. Está sendo assim, hoje, no Mundo Árabe. Sorrateiramente, começa a ser na autoritária China. Nas sociedades civis se forma a própria cidadania, não a delegada pelo Estado, mas a cidadania ativa constituinte e instituinte, que forja os sujeitos coletivos ao mesmo tempo que elabora a cultura democrática dos direitos de cidadania, define a
institucionalidade, cria e investe de legitimidade os representantes
detentores do poder político.
O ataque genérico que nos atinge, hoje, no Brasil, o vejo como uma
tentativa de deslegitimar conquistas fundamentais da democracia que temos. Pior, se quer impedir que surja mais uma nova e poderosa onda
transformadora - como as novas resistências e agendas que começam a
pipocar pelo Brasil afora -, cujo impulso só pode vir donde os poderosos
não querem, temendo por seus privilégios confundidos com direitos: a
multifacetada e sempre surpreendente sociedade civil brasileira.
O momento é difícil para a sociedade civil. Parece que após estas décadas
de democratização, chegamos a um ponto em que seríamos até dispensáveis, especialmente as ONGs, a acreditar no discurso conservador que domina nossa mídia e contamina o sistema político todo. Enganam-se os que pensam que este clima de denúncias vai intimidar as entidades e movimentos. Vamos usar a adversidade como oportunidade para nos refundar e radicalizar nosso papel como fermento democrático transformador, que faz da cidadania, de todos os direitos, dos bens comuns e da sustentabilidade da vida como as bases do viver coletivo para todas e todos.
(*)Cândido Grzybowski, sociólogo, é diretor do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase).
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