12 novembro 2011

IMPRENSA

O vale-tudo na busca por audiência

Valério Cruz Brittos e Luciano Gallas (*)



A regulamentação da operação televisiva não é, em si mesma, garantia de veiculação de uma programação de qualidade na televisão, mas é a certeza da existência de parâmetros a balizar a atuação das emissoras. A construção de uma comunicação voltada à cidadania requer a construção de um marco regulatório sincronizado com os princípios democráticos, o que abrange o respeito à dignidade humana. É a regulamentação, portanto, uma ferramenta imprescindível, associando o direito de uso da concessão ao cumprimento de um contrato, o qual deve estabelecer regras claras, inclusive para a função de programação.
Ante a liberdade de empresa que prevalece no Brasil, no dia 30 de setembro último o estado da Paraíba foi vítima da permissividade com que as emissoras de TV operam no país, expondo a intimidade de uma menina de 13 anos, vítima de violência sexual. Pois uma emissora fez o inimaginável: veiculou cenas do estupro de uma menina, que havia sido dopada, gravadas por um dos dois acusados do crime, em plena programação do horário do almoço. Ao longo do programa policial foram exibidas chamadas, com pequenos trechos do vídeo, prova de um crime, como forma de atrair e segurar a audiência até o final da atração.

A transmissão das imagens pela emissora ocorreu 10 dias após o crime. Nesse intervalo, o vídeo, gravado em um celular, vinha sendo repassado entre os alunos da escola onde a menina estudava. Ou seja, a emissora de televisão ampliou a exposição da vítima, que naquela altura já estava plenamente identificada na comunidade em que estuda. Isso num horário, do meio-dia, em que a programação televisual deve ser livre para todos os públicos e idades. Nota-se aqui como o negócio privado prevalece sobre o interesse social, mesmo que isso envolva o uso de um bem público (o espectro radioelétrico, escasso por excelência).

A ação do Ministério Público
No Brasil, as emissoras de TV aberta dispõem da classificação etária prévia para cada horário, a qual indica o tipo de programação que poderia ser veiculado em cada momento do dia. O episódio demonstra a fragilidade do sistema de classificação por idade, já que funciona na base da orientação às emissoras, e seu descumprimento gera uma série de negociações entre o poder público e a radiodifusora, com o agravante de que o poder de sanção do primeiro é frágil. Além do mais, o Ministério da Justiça, responsável pela classificação etária, não tem qualquer relação com as concessões de canais de rádio e de televisão, cujos processos são de competência do Ministério das Comunicações, diluindo a autoridade do poder público.

A divulgação de imagens de vítimas em situações que possam ferir sua dignidade e coloquem em risco sua integridade física ou psicológica, ainda que com truques de edição, também é vedada pelo Código de Ética dos Jornalistas. Não obstante, como não há regulamentação da profissão, não há previsão legal de atuação de órgão responsável pela fiscalização do exercício da atividade. Assim, a sanção máxima prevista é a desfiliação do jornalista do sindicato que o representa, situação inócua, por não ser mais exigida a formação (muito menos a filiação no órgão de classe) para o desempenho profissional.

O Ministério Público Federal (MPF) na Paraíba baseou-se no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) para ingressar com ação civil pública contra a TV Correio, afiliada da Rede Record; o apresentador do programa Correio Verdade, que exibiu as cenas do estupro; e a União, porque toda emissora opera mediante concessão pública. A ação pede a suspensão do programa, a cassação da concessão da TV Correio e o pagamento de uma indenização de R$ 500 mil à vítima (pelo uso indevido de sua imagem, violação de sua privacidade e danos morais), além de uma multa de R$ 5 milhões por prejuízos morais à coletividade.

A regulação das emissoras de comunicação
O artigo 18 do ECA estabelece que todos devem “velar pela dignidade da criança e do adolescente”, salvaguardando-os de “tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor”; enquanto o artigo 76 afirma que, “no horário recomendado para o público infanto-juvenil”, devem ser exibidos pelos canais de rádio e TV somente “programas com finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas”. Já o artigo 17 do Estatuto diz que o “direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente”, o que inclui a preservação da imagem, dentre outros aspectos.

O Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece a proteção deste público em termos gerais; seu texto não avança nas medidas a serem adotadas para preservar sua privacidade e nas consequências a serem impostas às emissoras de comunicação que infringirem a lei. Isso caberia à defasada e omissa legislação regulatória da radiodifusão. Enquanto isso, recentemente, uma grande rede de televisão dos Estados Unidos foi multada de forma pesada pela agência reguladora de lá porque uma cantora mostrou (inadvertidamente) um dos seios durante transmissão de show na decisão do campeonato nacional de futebol americano.

O show de horrores a que estão submetidos os telespectadores brasileiros e os casos de desrespeito e preconceito com motivação na etnia, gênero, idade, orientação sexual e opção religiosa acumulam-se diariamente na televisão. Infelizmente, a TV Correio não é um caso isolado no espectro radioelétrico brasileiro. Está mais do que na hora do país assumir a necessidade do debate em torno da regulação das emissoras de comunicação, construindo uma opção regulamentar. Do contrário, continuará o vale-tudo em busca da audiência respaldado em um discurso de liberdade de manifestação, que, como é sabido, só vale para a empresa.

***
[Valério Cruz Brittos e Luciano Gallas são, respectivamente, professor titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Unisinos emestrando no mesmo programa]


Fonte: Observatório da Imprensa



<O><O><O><O><O><O><O>


A PM na USP e o desfile da Victoria's Secret


por Eduardo Socha


Sejamos diretos. Não é preciso ler as páginas de Foucault nem o editorial da Veja para constatar que, no Brasil, o reacionarismo mais cafona e cenozóico dispõe de estratégias eficientes para sua manutenção. Uma pesquisa realizada em 18 países da América Latina pela ONG chilena Latinobarómetro e divulgada no mês passado pela Folha de São Paulo indica que o “apoio à democracia no Brasil” (sic) sofreu queda de 9 pontos percentuais (54% para 45%) de 2010 a 2011. No período de um ano, a parcela da população que resolveu sair do armário ideológico e assumir seu desdém pela democracia atingiu níveis alarmantes.

Por mais discutíveis que sejam os critérios, aparentemente binários, de uma pesquisa que visa mapear o “apoio à democracia”, o resultado não chega a surpreender. Bem ou mal, acaba confirmando aquilo que todos nós sentimos no dia-a-dia: como a política no Brasil vive ainda sob o espectro vigilante de seu passado autoritário, ficamos habituados a brincar o jogo de uma democracia protocolar, de fachada, bonita no papel, mas que resiste a transformações que possam realizar aquilo que preconiza. Ao contrário do que acontece no jogo do bicho, no que se refere à constituição brasileira, nem sempre vale o que está escrito.

Parece natural, portanto, que setores da imprensa resolvam acompanhar (ou incentivar) o movimento de retração democrática indicado na pesquisa. Deixando de lado as teorias bizantinas sobre o papel deformador da “mídia” (termo gasto, mas ainda funcional), é preciso reconhecer que aquelas artimanhas da direita mais carnívora na imprensa brasileira são paradoxalmente sutis. Consistem em reafirmar, por exemplo, com serenidade modernosa, o mito da imparcialidade do jornalismo, declarando ideologicamente o fim das ideologias. No plano da linguagem, impõem o estilo ‘clean’, adaptado à realidade dinâmica do mercado: pouca adjetivação, indiferença sintática e lexical quanto à natureza da notícia, simplificações que remetem ao consenso opinativo do repertório conservador da Casa Grande.

Urso Knut e “baderneiros”
Basta acessar a página principal de um dos principais portais de internet para perceber, num breve e pedagógico lance de olhos, a maneira com qual a mídia organiza sua gôndola de notícias circulantes. Depois de conhecer detalhes da saudade provocada pela ausência do urso Knut no zoológico de Berlim, de saber sobre a queda iminente de um ministro, sobre os impasses da contratação do Neymar e sobre o desfile de lingerie da Victoria’s Secret em Nova York, eis que o leitor se depara com o rol de notícias sob a rubrica “invasão na USP”; um assunto socialmente inconveniente, mas que, no jargão da área, repercute.

E repercute não apenas nos comentários dos leitores-consumidores que não cessam de reproduzir o entulho autoritário, traduzindo em linguagem cotidiana a violência cifrada da linguagem jornalística. “Baderneiros”, “maconheiros safados e vagabundos”, expressões para se referir aos estudantes da USP, atingem rapidamente as paradas dos trending topics. Dessa vez, os próprios jornalistas resolveram ir às vias de fato e partir para o gozo do insulto. Dias atrás, Gilberto Dimenstein havia lamentado a reação estúpida de seus leitores nos comentários em relação ao câncer de Lula, reconhecendo que “a interatividade democrática da internet é, de um lado, um avanço do jornalismo, e, de outro, uma porta direta para o esgoto do ressentimento e da ignorância”. Apesar do reconhecimento, Dimenstein não pensou duas vezes em chancelar de “delinquentes mimados” os manifestantes que ocuparam a reitoria da universidade. Reconciliou-se, talvez de pronto, com seus leitores.

Que fique claro: os alunos que decidiram ocupar a reitoria estavam errados, pois a ação não contava com a legitimidade da assembleia (por sinal, o reitor João Rodas, segunda opção da lista tríplice encaminhada ao então governador José Serra, ostenta também certo déficit de legitimidade junto à comunidade acadêmica). A ocupação, de fato, não havia sido referendada pelo movimento estudantil.

No entanto, deveria suscitar no mínimo curiosidade, para não dizer indignação, o uso da força de 400 policiais da Tropa de Choque e da Cavalaria da Polícia Militar, um helicóptero, policiais do GATE (Grupo de Ações Táticas Especiais) e do GOE (Grupo de Operações Especiais), para expulsar 73 ocupantes desarmados. Não havia molotov nem espírito sanguinário aguardando a PM dentro da reitoria.

Spread ideológico
Ao noticiar que a PM apenas cumpriu reintegração de posse, o jornalismo unidimensional puxa assim o coro dos afeitos ao poder do cassetete (“tinham de descer o sarrafo mesmo nesses baderneiros”, exalta o leitor malufista que já saiu do armário). Talvez tenha passado longe da cobertura desses setores da imprensa o fato de que a desproporção entre o ato dos ocupantes e o imenso aparato policial, orquestrado para uma intervenção espetacularizada, sinaliza claramente um spread político e ideológico, a ser rapidamente embolsado pelo governador do Estado (para quem “a polícia demonstrou eficiência”) e por um Datena de plantão.

Esse enorme descompasso pode nos levar à constatação de outros procedimentos corriqueiros da grande imprensa. Entre eles, o de ridicularizar divisões como esquerda/direita, o de tornar obsoletas expressões como “injustiça social” ou “opressão”, o de distorcer as ações e os discursos de qualquer mobilização social. Um jornalista do Estado de São Paulo, na edição sabática de 5 de novembro, ironicamente noticiava que o termo-hit das assembleias da FFLCH era o “para além de” e que vigorava uma patrulha austera quanto ao uso de expressões como “portas de fábrica”, “O Capital”, etc, em meio a conversas sem pé nem cabeça. O texto teria deliciado leitores e alguns colegas de profissão, ao retratar o movimento estudantil com traços infantilóides e desvairados. Trata-se de uma peça exemplar, típica da soberba, do desrespeito e da repressão discursiva que tem espaço cativo na imprensa – de todo modo,  para além do tom professoral do jornalista, seria interessante apresentar esse mesmo texto a um estudante de letras ou de ciências sociais da FFLCH para a análise da retórica e dos interesses de classe.

Acontece que, contrariando a descrição do jornalista e incomodando parte dos cidadãos que torcem o nariz para a democracia, os estudantes sabem muito bem o que fazem. Organizam-se em assembleias e, mediante encaminhamentos claros e específicos, solicitam maior segurança dentro do campus – plano de iluminação nas diversas unidades, aumento do efetivo da guarda universitária, ampliação dos ônibus circulares, abertura do campus à população. Decidiram pela greve, pois estão conscientes de que o tradicional método repressor da PM não é a forma adequada para garantir a segurança da comunidade. O lamentável episódio da terça-feira, dia 8, veio demonstrar a truculência anunciada. Em resumo, os estudantes estão fazendo política, para espanto daqueles que acreditavam no colapso prático da ideias.

Mas esse debate pouco interessa à parcela da mídia de encosto autoritário. Esta, com o perdão da lembrança, também é composta por empresas com identidade, nome fantasia, CNPJ, interesses comerciais. Interessa a elas muito mais reduzir o conflito entre PM e estudantes a um confronto tópico entre a lei e a permissividade anômica de “delinquentes mimados” que gostariam de fumar seu cigarro de maconha. Interessa anestesiar politicamente seu consumidor para que ele se sensibilize com a tensão das modelos do desfile de lingerie da Victoria’s Secret. Interessa, afinal, dissipar a esperança de que a democracia possa sair do âmbito da utopia por meio de manifestações autênticas e organizadas como essas dos estudantes da maior universidade da América Latina.


Eduardo Socha é  mestre e doutorando em filosofia pela FFLCH-USP.


Fonte: http://www.viomundo.com.br/


Nenhum comentário:

Postar um comentário