15 janeiro 2013

INFORMAÇÃO: MANIPULAR É PRECISO

O PREÇO DA MANIPULAÇÃO


Luciano Martins Costa, no Observatório da Imprensa






Quanto vale uma manchete de jornal?
Observe-se, por exemplo, a manchete da Folha de S.Paulo de segunda-feira (14/1): “Brasil perde investimento para outros emergentes”. No texto interno, o jornal afirma que “fundos de investimento estrangeiros estão trocando o Brasil por outros mercados emergentes, em um movimento que tem entre suas causas os impostos mais altos e a maior interferência do governo na economia”.
O texto da Folha tem como fonte avaliações da consultoria americana EFPR, especializada no acompanhamento dos movimentos de capitais ao redor do mundo, e usa como base as opções de grandes gestores financeiros, como os também americanos Pimco e BlackRock.
O jornal paulista se vale do velho truque de mudar os períodos de análise, sem avisar o leitor, para forçar uma interpretação predeterminada dos fatos. Note-se, por exemplo, que a reportagem começa com base no cenário do final do ano passado, comparando-o ao período de três anos anteriores, afirmando que “o percentual do portfólio de fundos de ações especializados em mercados emergentes investido no Brasil caiu de 16,7% no fim de 2009 para 11,6% em novembro (de 2012), o patamar mais baixo desde 2005”.
Já essa referência ao “patamar mais baixo desde 2005”, fora do período proposto para análise, entra na missa para reforçar o credo. Por que não incluir, por exemplo, o patamar de 2003?
Momento de insanidade
Mais adiante, o texto afirma que “o país vem perdendo espaço nos fundos globais de ações. A fatia desses fundos investida no país chegou a ficar acima de 2% no início de 2012, mas recuou para 1,2% no fim do ano, menor nível desde o fim de 2008”, pontifica o diário paulista.
Um pouco além, o jornal inclui novo período de análise, ao afirmar que “a parcela investida no mercado doméstico brasileiro pelo principal fundo de renda fixa em mercados emergentes da Pimco atingiu em junho passado cerca de 7,3% (menor que a de México e África do Sul). Em 2007, esse percentual era de 20,3%”, acrescenta, inflacionando a base de referências sem explicar por que esse ano foi escolhido para a comparação.
Certamente, porque, pouco antes da crise financeira de setembro de 2008, esse foi o ponto mais elevado no movimento especulativo de capitais que o jornal encontrou em seus registros.
Ora, qualquer pessoa que leia jornal regularmente sabe que em 2007 os juros elevados transformavam os investimentos em renda fixa numa ótima opção. Não apenas os grandes fundos, como os administrados pela Pimco, mas também os pequenos investidores individuais optavam muitas vezes por essa forma de aplicação.
Depois da crise de 2008, o cenário se transformou radicalmente, o que induziria a considerar que o período entre o final de 2007 e o final de 2008 concentrou o pior momento da insanidade do mercado. Ainda assim, a renda fixa seguiu ganhando adeptos no Brasil por mais dois anos.
Tsunami monetário
Em outubro 2010, diante do apetite do mercado internacional por aplicações especulativas, o governo brasileiro resolveu aumentar a alíquota do Imposto sobre Operações Financeiras para investimentos estrangeiros em renda fixa e sobre ganhos na Bolsa de Valores.
No início de abril de 2012, a presidente da República provocou descontentamento de governantes europeus ao se referir, durante evento na Alemanha, a um “tsunami monetário” promovido por movimentos especulativos dos países ricos, o que estaria produzindo extrema volatilidade nos mercados emergentes. Logo depois, o governo brasileiro tomou novas medidas para controlar esse fluxo de dinheiro indesejado, procurando estimular investimentos produtivos.
É exatamente o resultado dessa política que a Folha de S. Paulo tenta transformar em acontecimento negativo em sua manchete da edição de segunda-feira. A reportagem traz em si mesma o antídoto para a manchete, mas o raro ponto de sensatez está perdido no meio do texto. Diz o seguinte:
“Em 2010, o governo aumentou de 2% para 6% a alíquota do IOF que incide sobre aplicações de estrangeiros em papéis de renda fixa. Isso está impedindo investimentos de longo prazo no mercado de renda fixa”.
Ora, se esse era exatamente o objetivo do governo ao aumentar a alíquota do IOF – ou seja, reduzir o fluxo de recursos de curto prazo não destinados ao setor produtivo, que ajudavam a sobrevalorizar o real, qual é o significado da manchete?



'Os donos de negócios sempre afirmam que vai
acontecer algum problema na economia se os
salários dos empregados subirem, mas nunca
veem problema nenhum se o dinheiro deles
mesmos aumenta."  -  Adam Smith - economista




A opinião econômica particular vendida como
de interesse geral


J. Carlos de Assis, na Agência Carta Maior


 O jornalismo econômico brasileiro, a exemplo do norte-americano, está dominado pela opinião de economistas de bancos e de grandes corporações. Eventualmente, aparece um professor ou um especialista independente para fazer algum comentário, mas em tempo ou espaço suficientemente curtos para não permitir mais do que legitimar a presença dominante dos primeiros nos noticiários de jornal e televisão. Com isso a sociedade acaba com uma visão distorcida da economia política, mascarada que fica pelo viés dos negócios de curto prazo.

Galbraith, com sua fina ironia, costumava dizer que, em matéria econômica, não se devia levar muito a sério a opinião de quem tem interesse próprio em jogo. Ainda há pouco assisti no Jornal da Globo a uma “especialista” culpando o intervencionismo do Governo pela queda das ações das empresas do setor elétrico: ela estava visivelmente indignada com a decisão governamental de reduzir as tarifas elétricas, afetando a rentabilidade das empresas do setor, e não fez qualquer menção ao que isso representava de positivo para a sociedade e a economia. Claro, ela ou sua empresa certamente tem ações das elétricas!

Sou de um tempo em que, no jornalismo econômico, se separava claramente negócios de economia política. Fui subeditor de economia do Jornal do Brasil na segunda metade dos anos 70, e, depois, repórter de economia da Folha na primeira metade dos anos 80: não me lembro de uma única vez, nesses dois jornais, em que, por iniciativa própria ou por instrução da direção, tenha entrevistado um economista de banco. É verdade que, na cobertura de bolsa, havia repórteres que se referiam a “fontes” não identificadas para empurrar ações para cima ou para baixo. Mas isso não era economia política. Era corrupção mesmo.

Em 1978, meu editor no JB era Paulo Henrique Amorim. Ele tirou as greves do ABC das páginas de Polícia e as trouxe para a Economia. Fui encarregado de editá-las. Foram 40 dias e 40 noites de greve, o tempo das chuvas de Noé, em plena ditadura. A gente sentia que era algo importante, mas não podíamos adivinhar que ali estava o início do fim do autoritarismo. Quais eram os nossos entrevistados na época? Empresários com liderança no setor, líderes trabalhistas, economistas independentes, professores, ex-ministros, autoridades etc etc. Não se ouvia economista de banco que viesse a defender como se fosse de interesse geral assunto de seu interesse.

Na imprensa norte-americana, quando alguém que tem interesses específicos trata de assuntos econômicos de interesse geral, é costume identificá-lo como interessado imediato. Há um certo escrúpulo em misturar as duas coisas. Claro, ninguém põe em dúvida que um jornal de direita, como Wall Street Journal, ou liberal, como The New York Times, defendam no essencial os interesses capitalistas. Mas isso é feito abertamente, nas páginas editoriais, e não de forma camuflada numa entrevista ou num artigo vendido como de interesse geral. Nesse último caso, prevalece a opinião dos ideólogos, não dos economistas de mercado.

Há uma diferença sutil entre as duas formas de jornalismo: uma coisa é deduzir o interesse específico do interesse geral, e outra, bem diferente, é inferir o interesse geral a partir do interesse específico. No primeiro caso, há uma justificação ideológica de princípio do interesse particular no contexto mais amplo do capitalismo. É a forma padrão americana. Noutro, há uma racionalização do interesse geral a partir do particular. Trata-se de um jornalismo econômico mais primitivo que se traduz por uma manipulação ideológica disfarçada já que evita apresentar-se como defesa pura e simples do sistema capitalista.

Há um nível de manipulação ideológica menos disfarçado, sobretudo em televisão, quando âncoras de noticiário assumem, eles próprios, a “interpretação” das notícias dando-lhes maior ou menor ênfase de acordo com seu juízo subjetivo. Sabemos que aquilo é um teatro, pois tudo foi preparado e escrito previamente, mas da forma como aparece na tela o teatro sugere o mundo real.

Aqui, de novo, é o Jornal da Globo (tardio, portanto mais dedicado às elites) que me vem à mente: ao noticiar a inflação do ano passado, William Waack, que pessoalmente não parece entender nada de economia (sei disso porque trabalhamos um curto espaço de tempo juntos, no passado), fez um editorial agressivo contra o Governo, como se tivesse havido total descontrole dos preços. No entanto, como se sabe, a inflação esteve perfeitamente dentro da normalidade em função das margens da meta. A diatribe não passou de uma agressividade gratuita em relação a uma política econômica que, se não está totalmente correta, pode ser consertada numa direção que, por certo, não é a direção que William Waack quer.

(*) Economista, professor de Economia Internacional da UEPB, autor, entre outros livros, de “A Razão de Deus”, editado pela Civilização Brasileira.


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