18 janeiro 2013

DIREITOS HUMANOS




Situação dos Guarani Kaiowás 
permanece dramática

Fábio Nassif, da Agência Carta Maior





 No final do ano de 2012, milhares de pessoas tomaram conhecimento da dura realidade vivida pelo povo Guarani Kaiowá do Mato Grosso do Sul. Após uma carta da aldeia de Pyelito Kue, informando que resistiriam a um possível despejo de suas terras, entidades, órgãos oficiais, parlamentares e governos correram para se pronunciar sobre o tema e a sociedade respondeu com gestos de solidariedade, como as manifestações realizadas em mais de 50 cidades no mês de novembro. No entanto, nada disso foi suficiente para reverter ou frear o processo de confinamento e genocídio deste povo. Os indígenas do Mato Grosso do Sul viram o ano passar sem que o governo federal fizesse uma só homologação definitiva de terra e choraram por mais duas lideranças mortas.

Uma resposta pontual chegou apenas no dia 8 de janeiro deste ano quando foi publicado no Diário Oficial da União a entrega do estudo de identificação e delimitação de duas aldeias, incluindo a própria Pyelito Kue, que propõe a criação da terra indígena Iguatemipegua I. Mas fazendeiros organizados na Famasul (Federação da Agricultura e Pecuária do Mato Grosso do Sul), que teriam que se retirar do local, já afirmaram que irão questionar o relatório, o que pode provocar mais uma ameaça de despejo das aldeias.

A demarcação das terras Guarani Kaiowás é a reinvindicação central das lideranças, pois sem isso, se acirram os conflitos, principalmente sobre as áreas que foram retomadas pelos indígenas. A reportagem da Carta Maior passou 18 dias em aldeias da região, acompanhou o Acampamento Internacional de Solidariedade aos Guarani Kaiowás e presenciou algumas situações vividas pelos indígenas.

Demarcação
Na aldeia Taquara, localizada no município de Juti, o processo de demarcação foi iniciado em 2000 e interrompido em 2010. Apesar da área reconhecida pela Fundação Nacional do Índio (Funai) ser de aproximadamente 9700 hectares, os indígenas ocupam hoje cerca de 90 hectares, já que as plantações de soja e cana e os pastos dominam o restante do território.

“Os fazendeiros estão se preparando para invadir mais um pedaço das nossas terras”, denuncia o cacique e professor Araldo Veron. “Se depender deles, em poucas semanas aquele pedaço de terra, que poderia ser reflorestada, se transformará em plantação de soja ou cana. Mas nós iremos resistir”, diz o cacique perto da divisa provisória da aldeia enquanto é observado de longe por funcionários da fazenda.

Na mesma aldeia Taquara, a reportagem presenciou a utilização de aviões que espalham veneno na plantação de cana e na aldeia, plantações que desrespeitam a distância mínima dos leitos de rios e lixões dos fazendeiros próximos às margens, o que têm gerado doenças na comunidade. Além disso, no dia 6 de janeiro, vários focos de incêndio no entorno da aldeia assustaram os indígenas e os próprios homens do Corpo de Bombeiros suspeitavam que o fogo havia sido provocado de maneira criminosa.

Mesmo nas aldeias em terras demarcadas e homologadas, como é o caso da Jarara, perto da cidade de Dourados, os pecuaristas continuam atuando sobre as terras consideradas sagradas pelos indígenas. O cacique Getúlio Juca segue com a construção da casa de reza tradicional, feita de sapé, como forma de resistência à invasão.

Outros casos, como da aldeia Laranjeira Nhanderu – onde os indígenas precisam ultrapassar a cerca da fazenda para adentrar em sua terra – ou da aldeia Nhuvera – cercada pela rodovia e pela plantação de soja - também são ilustrativos da situação geral dos indígenas no estado.

Retrocesso à vista
No dia 13 de janeiro, dezenas de lideranças se reuniram na aldeia Taquara e realizaram uma manifestação em memória do cacique Marco Veron, assassinado em 2003 a mando de fazendeiros. Veron foi um dos responsáveis pelo processo de retomadas das terras Guarani Kaiowás. Ele foi morto por jagunços diante de sua família. Hoje, seus assassinos que foram condenados e depois soltos, atravessam a aldeia Taquara com frequência ameaçando seus filhos.

Na manifestação, Guarani Kaiowás carregavam cartazes lembrando de várias lideranças assassinadas no passado – dentre as 273 em nove anos -, mas também contra medidas que estarão em pauta em 2013, vistas como retrocessos aos direitos indígenas. O Projeto de Emenda Constitucional 215, por exemplo, propõe que a demarcação e homologação de terras indígenas e quilombolas sejam autorizadas pelo Congresso Nacional e não mais pelo poder executivo.

Outra medida criticada é a Portaria 303 da Advocacia Geral da União (AGU) na qual as 19 condicionantes utilizadas para aprovação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol (RR), seriam colocadas em prática. Entre elas estão, por exemplo, a definição de que os direitos indígenas sobre as terras não podem sobrepor os interesses de defesa nacional e nem podem impedir a exploração de “riquezas de cunho estratégico para o país”. Ou seja, abrem brechas para o agronegócio em terras indígenas.

Funai
Em setembro de 2012, também como reflexo da repercussão internacional da situação de vida desses indígenas, a Funai apresentou à Presidência da República um Informe Técnico sobre suas ações na "promoção da qualidade de vida das comunidades Guarani Kaiowá e Nhandeva em articulação com os demais órgãos". O documento lista uma série de iniciativas da Funai, referentes a acessibilidade aos direitos sociais e previdenciários, educação indígena, mobilização, segurança, produtividade, segurança alimentar e gestão ambiental.

O relatório do órgão, no entanto, ora deixa de expor a verdadeira situação deste povo, ora coloca informações desconhecidas pelos indígenas, segundo lideranças Guarani Kaiowás.

Entre as informações que mais chamam a atenção das lideranças estão o desenvolvimento de um projeto para construção de 400 moradias de madeira em acampamentos e a distribuição de 40 mil mudas de erva-mate, plantas nativas e frutíferas em 5 aldeias. Ládio Veron, cacique da aldeia Taquara, que está na lista de aldeia beneficiada pela política de reflorestamento, afirma que nenhuma muda chegou ao local, mesmo que a Funai tenha colocado isso em seu relatório e que os indígenas desconheçam o projeto para construção de casas. “Muito pelo contrário do que é afirmado, o que vemos é o aumento da devastação, da poluição de nossas águas e da tentativa de extermínio do nosso modo de vida”, diz.

O documento foi questionado diretamente para a então representante da Coordenação Regional da Funai de Dourados, Maria Aparecida, e para a presidenta da Funai, Marta Maria Azevedo, durante o Aty Guasu (grande assembleia Guarani Kaiowá) ocorrida entre os dias 22 e 26 de novembro de 2012. Na ocasião, presenciada também pelo representante do Ministério Público Federal do estado, caciques de diversas aldeias demonstraram espanto com o texto, que sequer havia sido entregue aos indígenas.

"Esse documento não reflete o que vivem os Guarani Kaiowá no Mato Grosso do Sul", afirma Valdelice Veron, representante do Aty Guasu. Segundo Valdelice, "infelizmente a Funai tem preferido fazer promessas vazias aos povos indígenas enquanto os grandes fazendeiros avançam sobre nossos territórios sagrados". Uma reclamação recorrente dos indígenas é inclusive o atraso na entrega de cestas básicas às aldeias. A reportagem marcou entrevista com o novo responsável pela Funai no local, Vander Aparecido Nishijima, mas ele não compareceu.

“Nós somos um povo. A segunda maior etnia do país. Não queremos mais ver nossas terras banhadas de sangue, seja pelas balas dos jagunços seja pelas canetadas dos poderosos”, conclui Ládio, diante do túmulo de seu pai e das crianças que se preparam para ser os próximos guerreiros Guarani Kaiowás a liderar novas retomadas de terras.




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