15 janeiro 2013

IMPRENSA E A TAL LIBERDADE

As barbaridades que são ditas e feitas em
nome da liberdade de imprensa


Paulo Nogueira, em seu blog Diário do Centro do Mundo





E eis que o mundo todo discute os limites da mídia.
A discussão mais rica se dá no Reino Unido. O juiz Brian Leveson fez recomendações depois de ficar mais de um ano ouvindo pessoas de alguma forma envolvidas com a mídia. Políticos, jornalistas, donos de empresas de jornalismo, celebridades cuja privacidade desapareceu, cidadãos comuns cuja vida a imprensa transformou num inferno – Leveson teve material para publicar um relatório de 2 000 páginas, divulgado em 29 de novembro último.
A recomendação principal: a formação de um órgão regulamentador independente. A autorregulamentação foi um fracasso, e as provas disso estão no comportamento da própria mídia britânica.
Para ficar num só caso. A ex-rainha dos tabloides, Rebekah Brooks, a queridinha de Rupert Murdoch, está encrencadíssima na justiça britânica. Rebekah está sendo processada sob duas acusações: a) esconder provas no caso de invasão de caixas postais; b) subornar policiais.
Licença para matar
Fiscais não se autofiscalizam. Exclamação.
Dias depois de divulgado o relatório, o premiê David Cameron se reuniu com editores de jornais.
Cameron, basicamente, disse a eles que se mexam. Se têm alguma proposta a fazer, eis a hora, porque “o relógio está correndo”.
Cameron deixou claro seu apoio à essência das recomendações de Leveson.
1. A independência do novo órgão regulador em relação às empresas de jornalismo. A independência deve ser estendida, naturalmente, a outros centros de poder. O órgão não pode estar sob a tutela nem do Parlamento e nem do governo. Mas de novo: também não pode estar sob o controle das empresas de mídia.
2. Multas na “casa do milhão de libras”, quando for o caso.
3. Retificações rápidas e em lugar de grande destaque.
É mais ou menos o que se tem na Dinamarca, conforme já escrevi neste Diário. As reparações são feitas na primeira página dos jornais.
A opinião pública britânica apoia maciçamente o Relatório Leveson. Os ingleses já estavam enojados dos excessos da mídia. Cameron esboçou fazer reparos a Leveson e a voz rouca das ruas se levantou: o senhor tem que defender o povo da mídia, e não a mídia do povo. Cameron então deixou claro que está com Leveson.
No Brasil, vigora a autorregulamentação.
Funciona?
As próprias empresas colocam freios? Discutem, debatem, prestam contas para a sociedade? Num caso particularmente rumoroso, um repórter tentou invadir o quarto de um político em Brasília. Pode? Não pode? O assunto foi ao menos discutido pela mídia, ainda que fosse para aprovar a conduta do repórter e da publicação?
Liberdade de expressão não é algo que possa ser invocado para garantir que a mídia esteja acima da sociedade – e da lei.
Um juiz americano, numa comparação que ficaria célebre, escreveu que alguém que gritasse fogo num ambiente lotado e fechado não poderia depois invocar a liberdade de expressão para escapar das consequências da tragédia que possivelmente provocaria.
Depois de ver o debate britânico, é lastimável ouvir platitudes como as pronunciadas – sob ampla cobertura – dias atrás pelo juiz Ayres Britto.
Britto, que acaba de se aposentar do STF aos 70 anos, fez a defesa da liberdade de imprensa, mas com uma superficialidade que é chocante, primária, infantil quando contrastada com a mesma defesa da liberdade de imprensa feita pelo seu colega britânico Brian Leveson. “É um direito pleno”, afirmou ele.
Sob Pinochet, ou mesmo sob Geisel, Britto mereceria aplausos. Mas, numa democracia em que uma imprensa livre é um fato da vida, eis uma frase superiormente tola, e que esconde a real pergunta: qual o padrão ético da mídia tradicional brasileira, se é que existe algum?
No Reino Unido, Leveson não caiu na falácia de que liberdade de imprensa significa licença para matar. A sociedade tem que ser protegida dos excessos da mídia. Ou então a mídia presta um formidável desserviço ao interesse público.
Espaço de sobra
O que leva Britto a fugir do real debate – não a liberdade de imprensa, a favor da qual somos todos, vertebrados e invertebrados, mas a melhor maneira de evitar seus excessos?
Britto tem uma história complicada na família.
Em 2009, um genro seu foi flagrado numa conversa comprometedora com um político corrupto. Britto seria um dos juízes no julgamento do político, e o genro usou seu nome.
O caso virou manchete, justificadamente. E Britto, também justificadamente, disse que não podia responder pelo genro.
Britto teria ficado intimidado?
É uma possibilidade. Ele foi o principal responsável pelo fim da Lei da Imprensa, editada na era militar, e diz que aquela é sua maior contribuição ao país. Um instante: ao país? Que Leveson diga mais ou menos o mesmo na Inglaterra – não fará por modéstia e decoro – se compreenderia. Ele enfrentou a ira e o poder de Murdoch, por exemplo.
Britto não é Leveson.
Com o fim da ditadura, a Lei da Imprensa já não causava cócegas a nenhuma empresa jornalística, e também a nenhum jornalista, Era um cadáver jurídico.
Para lembrar: a Lei da Imprensa vigorava quando Paulo Francis caluniou diretores da Petrobras. Mas estes, sabendo o quanto ela era inoperante, foram processar Francis na justiça americana, uma vez que ele fizera as acusações em solo dos Estados Unidos. Francis ficou desesperado ao lidar com uma justiça que exigia provas para assassinato de caráter, e que cobrava pesado pela ausência delas. Morreu disso, segundo os amigos.
A morte de uma lei já morta trouxe um efeito colateral nocivo à sociedade. Sumiu, com a Lei da Imprensa, o direito de resposta. O que significa que a sociedade ficou desprotegida.
Britto se despediu da ativa com esse passivo enorme no currículo, e repetindo lugares-comuns que não reforçam a imagem da justiça brasileira e de seus mais elevados expoentes – a despeito do espaço generoso que os jornais dedicam a seu palavrório oco.

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"J'acuse...!" (1898/2013)

A menor e mais impactante manchete
de todos os tempos

Alberto Dines, no Observatório da Imprensa



Não é uma efeméride “redonda”, 115 anos é um aniversário pífio, desprovido da magia numerológica, incapaz de incendiar a criatividade de pauteiros, pesquisadores e colunistas. E, no entanto, a data deveria ser lembrada anualmente a cada 13 de janeiro. Sobretudo pelos jornais – as sentinelas da memória – cujas fileiras estão cada vez mais esgarçadas e suas manchetes, cada vez menos veementes.
“Eu acuso” não marca o início do denuncismo como os apressados poderiam supor; ao contrário, é o marco inicial da caminhada da imprensa em busca da verdade e da justiça. Aquela manchete com apenas sete letras, apóstrofo, três pontos e uma exclamação converteu-se em ícone de bravura e generosidade.
Os 38 parágrafos da carta-aberta ao presidente da República Francesa, Felix Faure, terminam com oito acusações formais e nominais a generais e à própria instituição militar francesa. Foram escritos com paixão e argúcia por um famoso escritor francês e deveriam ser publicados num panfleto para ser vendido nos quiosques – a nova mídia daqueles tempos irados.
O redator-chefe do diário L’Aurore (“A Aurora – Literária, Artística e Social”), Georges Clemenceau, preferiu colocar o texto na primeira página (a continuação vem na página interna), encimado pelo título em letras garrafais ocupando as seis colunas: “Eu acuso...! Carta ao Presidente da República, por Émile Zola”. A edição vendeu 300 mil exemplares.
Tigre, como depois ficou conhecido, pretendia transformar aquele jornal recém-lançado (começou a circular em 18/10/1897) no principal baluarte do dreyfusismo (o pequeno grupo de gente decente que não se deixara enredar pelo veneno destilado por meio da imprensa antissemita). Acreditavam na inocência do capitão judeu, Alfred Dreyfus, mas ficaram sem voz depois da vergonhosa capitulação do jornal Le Figaroàs pressões militares e clericais.
O inspirado rasgo de convicção jornalística colocou Clemenceau no topo do ranking de mancheteiros de todos os tempos. Iniciou o jornalismo horizontal, trepidante e eloquente, em oposição ao verticalismo e à algidez até então vigentes. E efetivamente reverteu o affaire Dreyfus, o “caso Dreyfus”, que se arrastava havia quatro anos, abafado pelo secretismo e arbítrio da justiça militar.
Zola sabia que suas acusações infringiam a Lei de Imprensa de 1881, poderia ser processado e condenado por difamação – como de fato foi –, mas o caso seria julgado abertamente pela justiça civil e a incrível sucessão de falsificações e fraudes seria facilmente desmascarada. Zola precisou refugiar-se na Inglaterra, acabou inocentado, ainda escreveu um romance – Verité (inspirado no caso Dreyfus) – e morreu misteriosamente em 1902, em casa, intoxicado pela fumaça da lareira. Persistem até hoje fortes suspeitas de assassinato.
Sirenes de alerta
O caso Dreyfus pode ser visto como a emblemática explosão da Era das Ideologias. Estendeu-se ao longo de doze anos (1894-1906), mas só foi encerrado em 1945, quando alguns dos seus protagonistas foram condenados por colaborar com a ocupação nazista [ver links abaixo].
O meio-século Dreyfus ocupou metade do século 20. Marcou um momento decisivo na história da imprensa e vai muito além da guerra de manchetes travada na França entre os jornais da extrema direita que conspiravam para condenar sumariamente, por traição, o capitão Dreyfus, e a imprensa democrática e progressista que, afinal, venceu a parada e obteve sua total reabilitação.
affaire Dreyfus deu à imprensa um status institucional. Dois dias depois da manchete “Eu acuso”, o mesmo jornal publicou a primeira lista de adesões ao manifesto dos sábios, acadêmicos, escritores e artistas dreyfusistas. Uma nova palavra e uma nova força se arremessaram na arena política: os intelectuais.
A partir daquele momento, a imprensa tornou-se a plataforma onde se desenrolaram (e ainda se desenrolam) capítulos cruciais da história moderna. No momento em que esta plataforma se expande e se fragmenta, o perigo da diluição das grandes causas torna-se perceptível. Pior: é real.
No sábado (12/1), o Nobel de Literatura Imre Kertész estava na capa do “Babelia”, o esplêndido caderno de cultura do El País, tentando invocar aquelas mesmas forças morais que ajudaram a derrotar os inimigos de Dreyfus:
“Uma crise como a atual permitiu a ascensão de Hitler ao poder. Deveriam soar todos os alarmes. Não soam.”
Kertész está com mal de Parkinson, talvez não perceba que os alarmes estão acionados e as sirenes estridentes advertem para o perigo. O milagre maior da tecnologia é tornar os ruídos tão intensos que ninguém os ouve.





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