política é de Vênus
Gilberto Maringoni
(*) Publicado originalmente no Jornal
do Conselho Regional de Economia – RJ
Em 1º. de setembro de 2011, o Banco Central brasileiro iniciou uma trajetória de queda da taxa básica de juros (Selic), após cinco aumentos nos meses anteriores. O indicador havia batido os 12,5% ao ano e veio baixando até atingir 8,5% no último dia 30 de maio. Descontada a inflação, temos uma taxa real de 2,8%, a mais baixa das últimas décadas, mas a terceira maior do mundo.
A fixação da taxa de juros no Brasil não é decisão da esfera econômico-financeira e muito menos uma medida técnica. Trata-se, acima de tudo, de uma diretriz política, própria da disputa de ganhos e perdas na sociedade.
Historicamente os juros são altos no Brasil. Depois da criação do Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central, no final de junho de 1996, o país já conviveu taxas de 45% ao ano, deliberada na reunião de 4 de março de 1999.
Estávamos no clímax da crise que quebrou o padrão inicial do Plano Real, baseado na âncora cambial.
As deliberações do Comitê sobre o percentual das taxas nunca estiveram confinadas na seara técnico-administrativa. A política sempre dominou tais decisões, muito embora essa característica não se expresse claramente. É o caso do auge da propalada autonomia do Banco Central, diretriz que tinha como fim único e exclusivo a busca pela estabilidade de preços, desvinculada da variável do crescimento econômico. Este último estaria ancorado na economia real, no âmbito da produção (oferta e demanda) e de possíveis incentivos fiscais e iniciativas compensatórias.
Ou seja, na prática a idéia pressupõe a completa separação entre economia e política. A primeira regularia fundamentalmente a moeda e a segunda o desenvolvimento.
Liberal conservador
A separação entre as duas matérias é uma das teses mais caras ao pensamento liberal conservador. Sua primeira formulação é creditada ao economista francês, Jean-Baptiste Say (1767-1832). Na obra Tratado de Economia Política, escrita em 1803, Say colocou no papel teses repetidas à exaustão nos séculos seguintes:
“Durante muito tempo, confundiu-se a Política propriamente dita, a ciência da organização das sociedades, com a Economia Política, que ensina como se constituem, se distribuem e se consomem as riquezas que satisfazem as necessidades das sociedades. Entretanto, as riquezas são essencialmente independentes da organização política. Desde que bem administrado, um Estado pode prosperar sob qualquer forma de governo”.
A noção de que seria possível dissociar economia e política alcançaria seu melhor momento no início dos anos 1990, através de um best-seller internacional que apresentava ares de grande Ciência. Trata-se do conhecido O fim da história e o último homem, do sociólogo norteamericano Francis Fukuyama. Sua tese principal é a de que o capitalismo e a democracia liberal representariam o ápice da história humana. Não haveria espaço para qualquer alternativa, tanto no terreno da política, quanto no da economia. Possíveis mudanças sociais seriam, dali por diante, gradativas e sem sobressaltos qualitativos. O poder político deveria se voltar para atributos como eficiência, qualidade de gestão e métodos administrativos enquanto a área econômica correria por conta do livre mercado.
Autonomia do BC
Quando o governo brasileiro radicalizou a busca pela estabilidade monetária, a partir da crise de 1999, com a adoção do regime de metas de inflação, a decorrência lógica da medida foi conceder a mais ampla independência às ações da autoridade monetária. A solução institucional encontrada foi a “autonomia operacional” do Banco Central, saudada em prosa e verso como a oitava maravilha do mundo.
Formalmente o Brasil não adota tal diretriz. Mas na prática – e em especial nos dois mandatos do ex-presidente Lula – a instituição conheceu uma autonomia quase completa em relação ao poder executivo. Na prática isso representa sacramentar o divórcio entre gestão política e econômica no âmbito governamental
É bom ressaltar que, no jogo bruto das pressões e contra pressões sociais, não existe autonomia pura. Ou o BC é dependente do governo ou do mercado. A autonomia ou independência tão em voga representa na prática privatizar a autoridade monetária. Apesar de isso tudo, a dissociação entre política e economia não se realiza. É algo impossível de se obter, pois toda ação governamental – ou que afete toda a sociedade – é, por definição, política. Entregar a gestão do BC ao mercado é uma opção de política econômica.
Para que serve então o discurso da cisão entre as duas áreas? Serve para tirar a economia do horizonte da disputa social. Assim, mesmo que uma força ou partido político diverso daquele que está no poder seja eleito, as mudanças pretendidas não devem alcançar o mundo da economia. A política seria o território das paixões, do populismo, das negociatas e de toda sorte de falcatruas. A economia aparece assim como a seara limpa da responsabilidade e deve ser dirigida por homens que não sejam vulneráveis às pressões de momento. Ela demandaria conhecimento especializado e um saber técnico que escapa à maioria das pessoas.
Se as medidas são técnicas, não há ganhadores ou perdedores com sua adoção. Elas seriam estéreis politicamente e não caberia discuti-las.
Com isso, busca-se retirar o debate econômico – e no caso atual, aquele sobre as taxas de juros – da esfera pública e confiná-lo ao círculo restrito dos agentes do mercado. Em outras palavras, a “tecnicização” do debate econômico serve essencialmente para não democratizá-lo.
Esvaziar discussão
Assim, os ganhos reais obtidos pelo mercado financeiro e pelos setores rentistas com as altas taxas de juros e com os brutais spreads bancários verificados no Brasil não teriam razão aparente. Esvazia-se a discussão sobre o caráter de transferência de renda assumido pela taxa de juros e o alto grau de subjetividade que baliza as reuniões do Compom, mesmo quando se levam em conta variáveis empíricas.
Naturaliza-se a existência de um capitalismo sem riscos. O sistema bancário brasileiro tem sua rentabilidade assegurada pela compra de títulos da dívida pública (cujo patamar básico é a Selic), nos altos spreads cobrados na concessão de crédito e nas tarifas abusivas.
Se nos fixarmos no pagamento de juros da dívida pública, vale citar uma cifra conhecida. Somente no ano passado, foram transferidos dos cofres públicos cerca de R$ 235 bilhões destinados à remuneração dos detentores de títulos da dívida pública.
Assim, não surpreende que os bancos apresentem aqui lucros recordes, mesmo durante a crise de 2008-2009. O montante drenado anualmente pelo Estado ao sistema financeiro equivale a quase dozes vezes o que o governo FHC destinou a esses mesmos setores sob a rubrica do Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional (Proer), entre 1995 e 1999. O programa injetou cerca de R$ 20 bilhões, a preços da época, em bancos em dificuldades. A oposição à época fez vivo escândalo sobre o tema.
Taxas em queda
A queda da taxa de juros dos últimos meses foi possível porque o governo federal decidiu reduzir – também de maneira informal – a autonomia operacional do BC. Agora a instituição subordina-se mais claramente às diretrizes oficiais de matriz anticíclica que envolvem desonerações tributárias, expansão creditícia e aumento do salário mínimo. O objetivo é tentar evitar que os efeitos da crise sejam danosos à economia nacional. A volta da inflação, propagada pelo mercado financeiro e seus repetidores na mídia, não aconteceu.
O governo tenta minorar seus próprios estragos, após ter tentado – e conseguido – desacelerar a economia durante os primeiros oito meses de 2011. Como se recorda, além dos já mencionados aumentos dos juros em 2011, foi realizado um corte orçamentário de cerca de R$ 50 bilhões, repetido no início de 2012.
A queda mais efetiva e prolongada dos juros para patamares reais abaixo de 1% só acontecerá com a construção de uma vontade nacional nessa direção, que se transforme em força social. Isso passa por retirar o debate de sua torre de marfim técnica e colocá-la em seu devido lugar, no terreno da política, sob os holofotes e a compreensão da opinião pública.
Em 1º. de setembro de 2011, o Banco Central brasileiro iniciou uma trajetória de queda da taxa básica de juros (Selic), após cinco aumentos nos meses anteriores. O indicador havia batido os 12,5% ao ano e veio baixando até atingir 8,5% no último dia 30 de maio. Descontada a inflação, temos uma taxa real de 2,8%, a mais baixa das últimas décadas, mas a terceira maior do mundo.
A fixação da taxa de juros no Brasil não é decisão da esfera econômico-financeira e muito menos uma medida técnica. Trata-se, acima de tudo, de uma diretriz política, própria da disputa de ganhos e perdas na sociedade.
Historicamente os juros são altos no Brasil. Depois da criação do Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central, no final de junho de 1996, o país já conviveu taxas de 45% ao ano, deliberada na reunião de 4 de março de 1999.
Estávamos no clímax da crise que quebrou o padrão inicial do Plano Real, baseado na âncora cambial.
As deliberações do Comitê sobre o percentual das taxas nunca estiveram confinadas na seara técnico-administrativa. A política sempre dominou tais decisões, muito embora essa característica não se expresse claramente. É o caso do auge da propalada autonomia do Banco Central, diretriz que tinha como fim único e exclusivo a busca pela estabilidade de preços, desvinculada da variável do crescimento econômico. Este último estaria ancorado na economia real, no âmbito da produção (oferta e demanda) e de possíveis incentivos fiscais e iniciativas compensatórias.
Ou seja, na prática a idéia pressupõe a completa separação entre economia e política. A primeira regularia fundamentalmente a moeda e a segunda o desenvolvimento.
Liberal conservador
A separação entre as duas matérias é uma das teses mais caras ao pensamento liberal conservador. Sua primeira formulação é creditada ao economista francês, Jean-Baptiste Say (1767-1832). Na obra Tratado de Economia Política, escrita em 1803, Say colocou no papel teses repetidas à exaustão nos séculos seguintes:
“Durante muito tempo, confundiu-se a Política propriamente dita, a ciência da organização das sociedades, com a Economia Política, que ensina como se constituem, se distribuem e se consomem as riquezas que satisfazem as necessidades das sociedades. Entretanto, as riquezas são essencialmente independentes da organização política. Desde que bem administrado, um Estado pode prosperar sob qualquer forma de governo”.
A noção de que seria possível dissociar economia e política alcançaria seu melhor momento no início dos anos 1990, através de um best-seller internacional que apresentava ares de grande Ciência. Trata-se do conhecido O fim da história e o último homem, do sociólogo norteamericano Francis Fukuyama. Sua tese principal é a de que o capitalismo e a democracia liberal representariam o ápice da história humana. Não haveria espaço para qualquer alternativa, tanto no terreno da política, quanto no da economia. Possíveis mudanças sociais seriam, dali por diante, gradativas e sem sobressaltos qualitativos. O poder político deveria se voltar para atributos como eficiência, qualidade de gestão e métodos administrativos enquanto a área econômica correria por conta do livre mercado.
Autonomia do BC
Quando o governo brasileiro radicalizou a busca pela estabilidade monetária, a partir da crise de 1999, com a adoção do regime de metas de inflação, a decorrência lógica da medida foi conceder a mais ampla independência às ações da autoridade monetária. A solução institucional encontrada foi a “autonomia operacional” do Banco Central, saudada em prosa e verso como a oitava maravilha do mundo.
Formalmente o Brasil não adota tal diretriz. Mas na prática – e em especial nos dois mandatos do ex-presidente Lula – a instituição conheceu uma autonomia quase completa em relação ao poder executivo. Na prática isso representa sacramentar o divórcio entre gestão política e econômica no âmbito governamental
É bom ressaltar que, no jogo bruto das pressões e contra pressões sociais, não existe autonomia pura. Ou o BC é dependente do governo ou do mercado. A autonomia ou independência tão em voga representa na prática privatizar a autoridade monetária. Apesar de isso tudo, a dissociação entre política e economia não se realiza. É algo impossível de se obter, pois toda ação governamental – ou que afete toda a sociedade – é, por definição, política. Entregar a gestão do BC ao mercado é uma opção de política econômica.
Para que serve então o discurso da cisão entre as duas áreas? Serve para tirar a economia do horizonte da disputa social. Assim, mesmo que uma força ou partido político diverso daquele que está no poder seja eleito, as mudanças pretendidas não devem alcançar o mundo da economia. A política seria o território das paixões, do populismo, das negociatas e de toda sorte de falcatruas. A economia aparece assim como a seara limpa da responsabilidade e deve ser dirigida por homens que não sejam vulneráveis às pressões de momento. Ela demandaria conhecimento especializado e um saber técnico que escapa à maioria das pessoas.
Se as medidas são técnicas, não há ganhadores ou perdedores com sua adoção. Elas seriam estéreis politicamente e não caberia discuti-las.
Com isso, busca-se retirar o debate econômico – e no caso atual, aquele sobre as taxas de juros – da esfera pública e confiná-lo ao círculo restrito dos agentes do mercado. Em outras palavras, a “tecnicização” do debate econômico serve essencialmente para não democratizá-lo.
Esvaziar discussão
Assim, os ganhos reais obtidos pelo mercado financeiro e pelos setores rentistas com as altas taxas de juros e com os brutais spreads bancários verificados no Brasil não teriam razão aparente. Esvazia-se a discussão sobre o caráter de transferência de renda assumido pela taxa de juros e o alto grau de subjetividade que baliza as reuniões do Compom, mesmo quando se levam em conta variáveis empíricas.
Naturaliza-se a existência de um capitalismo sem riscos. O sistema bancário brasileiro tem sua rentabilidade assegurada pela compra de títulos da dívida pública (cujo patamar básico é a Selic), nos altos spreads cobrados na concessão de crédito e nas tarifas abusivas.
Se nos fixarmos no pagamento de juros da dívida pública, vale citar uma cifra conhecida. Somente no ano passado, foram transferidos dos cofres públicos cerca de R$ 235 bilhões destinados à remuneração dos detentores de títulos da dívida pública.
Assim, não surpreende que os bancos apresentem aqui lucros recordes, mesmo durante a crise de 2008-2009. O montante drenado anualmente pelo Estado ao sistema financeiro equivale a quase dozes vezes o que o governo FHC destinou a esses mesmos setores sob a rubrica do Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional (Proer), entre 1995 e 1999. O programa injetou cerca de R$ 20 bilhões, a preços da época, em bancos em dificuldades. A oposição à época fez vivo escândalo sobre o tema.
Taxas em queda
A queda da taxa de juros dos últimos meses foi possível porque o governo federal decidiu reduzir – também de maneira informal – a autonomia operacional do BC. Agora a instituição subordina-se mais claramente às diretrizes oficiais de matriz anticíclica que envolvem desonerações tributárias, expansão creditícia e aumento do salário mínimo. O objetivo é tentar evitar que os efeitos da crise sejam danosos à economia nacional. A volta da inflação, propagada pelo mercado financeiro e seus repetidores na mídia, não aconteceu.
O governo tenta minorar seus próprios estragos, após ter tentado – e conseguido – desacelerar a economia durante os primeiros oito meses de 2011. Como se recorda, além dos já mencionados aumentos dos juros em 2011, foi realizado um corte orçamentário de cerca de R$ 50 bilhões, repetido no início de 2012.
A queda mais efetiva e prolongada dos juros para patamares reais abaixo de 1% só acontecerá com a construção de uma vontade nacional nessa direção, que se transforme em força social. Isso passa por retirar o debate de sua torre de marfim técnica e colocá-la em seu devido lugar, no terreno da política, sob os holofotes e a compreensão da opinião pública.
Gilberto Maringoni, jornalista e cartunista, é doutor em
História pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de “A Venezuela que se
inventa – poder, petróleo e intriga nos tempos de Chávez” (Editora Fundação
Perseu Abramo).
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