17 dezembro 2011

POLÍTICA INTERNACIONAL E ECONOMIA

POLÍTICA INTERNACIONAL



 Uma retirada sem glória nem honra

Mais uma vez, os Estados Unidos concluem uma guerra sem ganhá-la, ao não conseguir impor sua plena vontade aos agredidos. Os soldados norte-americanos não saem do Iraque como saíram de Saigon, em 30 de abril de 1975, escorraçados pelas tropas de Hanói e pelos vietcongs. Desta vez, eles primeiro arrasaram o Iraque, durante uma década de bombardeios constantes.
O despotismo de Saddam não incomodava antes os Estados Unidos, quando coincidia com o interesse de Washington. Tanto era assim, que os norte-americanos estimularam a guerra contra o Irã, e lhe ofereceram suporte bélico e diplomático, mas seu objetivo era o de debilitar os dois países. No momento em que — cometendo erro político elementar — Saddam pretendeu restaurar as fronteiras históricas do Iraque, ao invadir o Kueit, Washington encontrou, com o primeiro Bush, o pretexto para a agressão aérea a Bagdad, a criação da chamada zona de exclusão, em que o bombardeio aéreo era indiscriminado, e o bloqueio econômico.
Foram dezenas de milhares de mortos durante os dez anos de ataques aéreos, prévios à invasão. Entre os sobreviventes da agressão, houve milhares de crianças, acometidas de leucemia pela radiação das munições amalgamadas com urânio empobrecido.
Assim, ao invadir o país por terra, os americanos encontraram um exército debilitado, parte do território arrasado e um governo na defensiva diplomática. O pretexto, que os fatos desmoralizaram, era o de que Saddam Hussein dispunha de armas de destruição em massa.
Ontem, o presidente Obama disse que o Iraque é hoje um “país independente, livre e soberano, muito melhor do que era com Saddam”. Saddam, sabem os observadores internacionais, era muito menos obscurantista do que os príncipes da Arábia Saudita.
Seu povo vivia relativamente bem, suas mulheres não eram tratadas com desrespeito e frequentavam a universidade. Algumas ocupavam cargos importantes no governo, na vida acadêmica e nos laboratórios de pesquisas. Havia tolerância religiosa, não obstante a divergência secular entre os sunitas e os xiitas, que ele conseguia administrar, a fim de assegurar a paz interna.
O vice-primeiro-ministro Tarik Aziz era católico, do rito caldeu. País de cultura islâmica, sim, mas talvez o mais aberto de todos eles a outras culturas e costumes. O país se encontrava em pleno desenvolvimento econômico, com grandes obras de infraestrutura, e mantinha excelentes relações com o Brasil, mediante a troca de petróleo por tecnologia e serviços de engenharia, quando começaram os bombardeios.
Depois disso, nos últimos nove anos, a ocupação norte-americana causou a morte de mais de 100 mil civis, 20 milsoldados iraquianos e 4.800 militares invasores, dos quais 4.500 ianques. Milhares e milhares de cidadãos iraquianos ficaram feridos, bem como soldados invasores, a maioria deles mutilados. As cidades foram arrasadas — mas se dividiram os poços de petróleo entre as empresas dos países que participaram da coligação militar invasora.
Hoje não há quem desconheça as verdadeiras razões da guerra, tanto contra o Iraque, quanto contra o Afeganistão: a necessidade do suprimento de petróleo e gás, do Oriente Médio e do Vale do Cáspio, aos Estados Unidos e à Europa Ocidental. Daí a guerra preemptiva e sem limites, declarada pelo segundo Bush, que se dizia chamado por Deus a fim de ir ao Iraque matar Saddam Hussein. Não só os mortos ficam da agressão ao Iraque. Os americanos saem do país, deixando-o sem energia elétrica suficiente, sem água potável, com 15% de desempregados e, 85% dos que trabalham estão a serviço do governo.
Toda a história dos Estados Unidos — ao lado de méritos fantásticos de seu povo — foi construída no afã da conquista e da morte. Desde a ocupação da Nova Inglaterra, não só os índios conheceram a sua fúria expansionista: na guerra contra o México, o país vencido perdeu a metade do território pátrio, o que corresponde a quase um terço do atual espaço norte-americano no continente.
Uma das desgraças da vitória americana foi a ruptura do Compromisso do Missouri, com a ampliação do escravagismo aos novos territórios, que seria — pouco mais de dez anos depois — uma das causas do grande confronto interno, entre o Sul e o Norte, a Guerra da Secessão. Lincoln, que a enfrentou, havia sido, em 1847, um dos poucos a se opor ao conflito contra o México.
A partir de então, a ânsia imperialista dos Estados Unidos não teve limites. Suas elites dirigentes e seus governantes, salvo alguns poucos homens lúcidos, moveram-se convencidos de que cabia a Washington dominar o mundo. Ainda se movem nessa fanática determinação. Agora, saem do Iraque e anunciam que deixarão também o Afeganistão, no ano que vem. Mas, ao mesmo tempo, dentro da doutrina Bush da guerra sem fim, preparam-se para nova agressão genocida contra o Irã.
Os Estados Unidos nunca conheceram a presença de invasores estrangeiros. Sua guerra da independência se fez contra tropas britânicas, que não eram invasoras, mas sim ocupantes da metrópole na colônia. As poucas incursões mexicanas na fronteira, de tão frágeis, não contam. Mas há uma força que cresce, e que não poderão derrotar: a do próprio povo norte-americano, cansado de suportar o imperialismo interno de seus banqueiros e das poucas famílias bilionárias que se nutrem da desigualdade.
O povo, mais do que tudo, se sente exaurido do tributo de sangue que, a cada geração, é obrigado a oferecer, nas guerras sem glória, contra povos inermes e quase sempre pacíficos, em nome disso ou daquilo, mas sempre provocadas pelos interesses dos saqueadores das riquezas alheias.
A situação tomou rumo novo, a partir dos anos 80, como apontou, em artigo publicado ontem por El Pais, o biólogo e filósofo catalão Federico Mayor Zaragoza, ex-ministro da Educação de seu país e, durante 12 anos, diretor-geral da Unesco. A aliança de interesses entre Reagan e Margareth Thatcher significou a capitulação do Estado diante do mercado, e se iniciou a era do verdadeiro terror, com 4 bilhões de dólares gastos a cada dia, em armamentos e outras despesas militares, e, a cada dia, 60 mil pessoas mortas de fome no mundo.
Mayor lembra a que levou o novo credo das elites, que Celso Furtado chamou de “fundamentalismo mercantil”: a melancólica erosão da ONU e sua substituição por grupos plutocráticos, como o grupo dos 7, dos 8 e, agora, sob a pressão dos emergentes, dos 20. E na pátria da nova fé nas “razões do mercado”, os Estados Unidos, há hoje 20 milhões de desempregados, 40 milhões de novos pobres e 50 milhões de pessoas sem qualquer seguro de saúde.
A Europa assediada e perplexa, com a falência de suas instituições políticas, está presa na armadilha do euro, que não tem como concorrer com o dólar nem com o yuan, porque yuan e o dólar são emitidos de acordo com a necessidade dos Estados Unidos e da China. Disso conseguiu escapar a Inglaterra, que mantém a sua moeda própria.
Os Estados Unidos, se não houver a reação, esperada, de seu povo, se preparam para manter o terror no mundo, mediante suas armas eletrônicas de alcance global, entre elas os aviões não tripulados. Seu destino, se assim ocorrer, será o do atirador solitário, que se compraz em assassinar os inocentes à distância, até que alguém consiga, com o mesmo método, abatê-lo. E não faltam os que se preparam para isso.





DEBATE ABERTO

Privadas japonesas e o acidente nuclear de Fukushima

Governo japonês demorou um mês para ampliar evacuações da população que vivia perto de Fukuhsima. Não basta ter um grande arsenal tecnológico feito especialmente para administrar evacuações. É necessário apertar os botões, tomar as decisões. O mês de hesitação do governo pode ter custado muitas vidas.

Caro leitor, caríssima leitora, estou eu cá no Japão para ver a final do mundial de clubes. Pois bem, hoje pela manhã, sentado na privada (calma, não será um texto escatológico) me deparo com a principal manchete doThe Japan Times, que fala sobre o acidente nuclear de Fukushima. 

Eu vos pergunto: O que a privada e Fukushima têm em comum? 

E eu vos respondo: Excrementos, dejetos e, principalmente, evacuações. 

Explico melhor: 

No Japão, as privadas são tremendamente tecnológicas. Nada da franciscana simplicidade daí. Aqui elas têm vários acessórios. O mais comum é o jato limpador, um caninho sai de dentro da privada e dispara um jato de água (com pressão e temperatura controláveis) para limpar as partes íntimas do usuário. Mas, se isso é já impressionante, pense ainda em assentos aquecidos, vapor secante, jato com perfume desodorizador, levantamento da tampa através de sensor de proximidade, etc... 

Pois bem, nesta confortável situação li o texto de capa do Japan Times, que falava sobre a demora do governo para tomar atitudes depois do acidente nuclear de Fukushima 1, que aconteceu no dia 12 de março, em consequência do tsunami.

A Comissão de Segurança Nuclear (utilizando-se de modernos sistemas de detecção de radiação na atmosfera), no dia 23 de março informou ao governo que havia altos níveis de radiação na cidade de Iitate e em outros municípios a noroeste de Fukushima, fora da área de evacuação já prevista de 20 km. 

Ou seja, deveriam ser ampliadas as evacuações da população para além dos 20 km da zona em torno da usina, e estas pessoas teriam que ter recebido iodo imediatamente (a ingestão do iodo não radioativo antes ou nas primeiras horas após o contato com isótopos radioativos de iodo impede que a radioatividade seja absorvida pela tireoide). 

Mas o governo, alegando a possibilidade de uma nova explosão, achou que as pessoas ficariam mais seguras em casa ao invés de estarem se locomovendo (uma desculpa muito contestável), e adiou a decisão por um mês. 

Hoje o governo admite que perdeu sua melhor chance de tomar medidas de evacuação. 

Ou seja, não basta ter um grande arsenal tecnológico feito especialmente para administrar evacuações. É necessário apertar os botões, tomar as decisões. O mês de hesitação do governo pode ter custado muitas vidas.

José Roberto Torero é formado em Letras e Jornalismo pela USP, publicou 24 livros, entre eles O Chalaça (Prêmio Jabuti e Livro do ano em 1995), Pequenos Amores (Prêmio Jabuti 2004) e, mais recentemente, O Evangelho de Barrabás. É colunista de futebol na Folha de S.Paulo desde 1998. Escreveu também para o Jornal da Tarde e para a revista Placar. Dirigiu alguns curtas-metragens e o longa Como fazer um filme de amor. É roteirista de cinema e tevê, onde por oito anos escreveu o Retrato Falado.


Fonte. www.cartamaior.com.br 




A feroz indústria do casamento na China

Em uma sociedade na qual dinheiro e família são quase tudo, o matrimonio se converteu em um gasto multimilionário. A solidez material é condição indispensável. A competição é feroz. Os solteiros com idade legal para contrair matrimônio (22 anos para os homens, 20 para as mulheres) superam 180 milhões. Em muitos casos, os próprios pais se lançam à aventura migratória para melhorar as perspectivas casamenteiras de seus filhos. Nesta corrida os pobres arrancam com óbvia desvantagem. O artigo é de Marcelo Justo.

Não é fácil se casar na China. Em uma sociedade na qual dinheiro e família são quase tudo, o matrimonio se converteu em um gasto multimilionário. A solidez material é condição indispensável. “Ter casa é o mínimo. Um carro facilita mais as coisas”, me diz rindo um taxista de origem camponesa da antiga capital chinesa, Xian. Também não basta a solidez do tijolo ou a roda. Nos banquetes comemorativos da boda, os chineses têm que jogar a casa pela janela: no ano passado gastaram uns 57 bilhões de dólares em seus festejos de casamento. 

Nesta corrida os pobres arrancam com óbvia desvantagem. Com um salário médio de 1800 yuans mensais (uns 285 dólares), os trabalhadores migrantes, verdadeira coluna vertebral do “milagre chinês”, têm escassas possibilidades de poupança. Uma recente pesquisa da organização governamental Federação de Mulheres da China, mostrou que a necessidade de melhorar a renda para casar era uma razão fundamental para migrar, mas que em muitos casos a passagem do campo à cidade não melhorava em nada as coisas. “Não sobra quase nada depois de pagar o aluguel. As mulheres na cidade são muito realistas e jamais sairiam com alguém que não pode pagar uma janta ou levá-las ao cinema”, relatou à Federação Xie Kaiqiang, oriundo de um povoado em Shaanxi, norte de China que hoje trabalha na capital Beijing.

A competição é feroz. Os solteiros com idade legal para contrair matrimônio (22 anos para os homens, 20 para as mulheres) superam 180 milhões. Em muitos casos, os próprios pais se lançam à aventura migratória para melhorar as perspectivas casamenteiras de seus filhos. Desde que o confucionismo se impôs finalmente como ideologia há mais de dos mil anos, a veneração dos ancestrais é quase uma religião: a descendência, uma garantia de manutenção futura e lembrança perene. 

Hsiao Hung Pai, autora de “Chinese Whispers” e “Scattered sands”, dois livros fundamentais sobre a migração chinesa, comentou à Carta Maior um dos tantos casos que encontrou em sua investigação. “Este camponês de Hebei, no norte de China, trabalhou ilegalmente em Londres oito anos fazendo todo tipo de trabalhos imagináveis. Seu objetivo era comprar uma casa para que seu filho pudesse casar. Conseguiu. Como ele mesmo me disse, “cumpriu com seu dever””, disse a autora. 

É um dever que atravessa todas as classes sociais. Assombrado que há alguns anos eu tivesse começado a estudar chinês, o dono do apartamento que aluguei durante meus estudos me disse com certa inveja: “nós, a partir de certa idade, deixamos de aprender: um pai ocidental tem muito menos obrigações”. Além de casa, do carro e do trabalho com promessa de futuro próspero, vem a celebração da boda. 

Os banquetes matrimoniais das classes com aspirações sociais podem custar entre cinco e 10 mil yuans por mesa (770 a 1570 dólares) com cerca de 200 convidados em média. Pechinchar ou procurar atalhos e bagatelas é perigoso porque se pode incorrer em um dos piores perigos sociais: “diu lian” (literalmente “perder cara”: cair no ridículo) Alguma coisa os noivos recuperam com os presentes dos convidados. O “hong bao” (envelope vermelho), que o casal recebe, tem que conter dinheiro suficiente se não quiserem “perder sua cara”. Entre os chineses não é incomum procurar desculpas para não comparecer ao casamento e evitar o custoso gasto do“hong bao”

Os banquetes não são o ponto final. Os recém-casados têm que pagar por fotos e filmagens especiais em lugares de “sonho”. Com suntuosos vestidos branco e fraques, os casais se deixam fotografar sobre as rochas que margeiam um lago ou ao pé de uma montanha famosa. Este cronista presenciou a aparição um tanto alucinante de dezenas de casais em traje de boda no Lago Celestial (Tian Chi) de Xinjiang ou nas montanhas de Guilin. Por casualidade presenciou o mesmo espetáculo em um lugar mais insólito - Santorini, Grécia -, prerrogativa de casais muito mais endinheirados. 

A “crise” econômica (crescimento de 9% em vez de 9,5%) não parece afetar esta maquinaria. Os preços dos banquetes aumentaram 10 % no último ano, o das rosas duplicou. Além disso, por uma questão demográfica, a competição vai se intensificar. Segundo o Escritório de Estatísticas chinês, nascem 119 homens para cada 100 mulheres, em parte devido à política de só um filho instaurada há mais de 30 anos e a tradicional preferência pelo filho macho. Este desequilíbrio populacional homem-mulher implica que no final desta década haverá mais de 30 milhões de chineses em idade legal de casamento que não poderão encontrar par. 

Esta vantagem demográfica feminina e a crescente explosão de riqueza que se vê em todo o país, ficam evidentes com o surgimento de academias especiais para que as mulheres possam “caçar um bom partido”. Em março abriu em Chaoyang, o distrito rico da capital Pequim, a “Escola das damas virtuosas” que oferece cursos especiais para que as mulheres aprendam a “se comunicar e amar, a fim de encontrar seu companheiro ideal”. Este fim supostamente romântico e altruísta fica um pouco embaçado pelo título de algumas das matérias, como a que ensina a “como relacionar-se com homens exitosos?” A escola gerou debate na imprensa chinesa com artigos que criticavam esta “idolatria do dinheiro”. Mas nada parece acalmar a febre. Em novembro abriu a “Escola da boa e feliz esposa” que começa seus cursos em março próximo. Fei Yang, diretor da escola, deixa claro que a missão educativa não termina com a boda. “Muitos matrimônios de gente rica terminam em divórcio porque as mulheres não podem manter felizes seus maridos”, assinala. 

A febre casamenteira esteve acompanhada por um aumento vertiginoso dos casais divorciados que em 2010 alcançaram 20 milhões, 60% a mais que em 2000. Mas nada desestimula os solteiros que no dia 11 de novembro celebraram seu dia com grande fanfarra à espera do sonhado matrimônio. 

Tradução: Libório Júnior


Fonte: www.cartamaior.com.br 







DEBATE ABERTO

Terceira Carta às Esquerdas

As novas mobilizações e militâncias políticas por causas historicamente pertencentes às esquerdas estão sendo feitas sem qualquer referência a elas (salvo talvez à tradição anarquista) e muitas vezes em oposição a elas. Isto não pode deixar de suscitar uma profunda reflexão. Essa reflexão está sendo feita? Tenho razões para crer que não

Quando estão no poder, as esquerdas não têm tempo para refletir
sobre as transformações que ocorrem nas sociedades e quando o fazem é
sempre por reação a qualquer acontecimento que perturbe o exercício do
poder. A resposta é sempre defensiva. Quando não estão no poder, dividem-se internamente para definir quem vai ser o líder nas próximas eleições, e as reflexões e análises ficam vinculadas a esse objetivo. 

Esta indisponibilidade para reflexão, se foi sempre perniciosa, é agora suicida. Por duas razões. A direita tem à sua disposição todos os intelectuais orgânicos do capital financeiro, das associações empresariais, das instituições multilaterais, dos think tanks, dos lobbistas, os quais lhe fornecem diariamente dados e interpretações que não são sempre faltos de rigor e sempre interpretam a realidade de modo a levar a água ao seu moinho. Pelo contrário, as esquerdas estão desprovidas de instrumentos de reflexão abertos aos não militantes e, internamente, a reflexão segue a linha estéril das facções.

Circula hoje no mundo uma imensidão de informações e análises que
poderiam ter uma importância decisiva para repensar e refundar as esquerdas depois do duplo colapso da social-democracia e do socialismo real. O desequílibrio entre as esquerdas e a direita no que respeita ao conhecimento estratégico do mundo é hoje maior que nunca.

A segunda razão é que as novas mobilizações e militâncias políticas por causas historicamente pertencentes às esquerdas estão sendo feitas sem qualquer referência a elas (salvo talvez à tradição anarquista) e muitas vezes em oposição a elas. Isto não pode deixar de suscitar uma profunda reflexão. Essa reflexão está sendo feita? Tenho razões para crer que não e a prova está nas tentativas de cooptar, ensinar, minimizar, ignorar a nova militância. 

Proponho algumas linhas de reflexão. A primeira diz respeito à polarização social que está a emergir das enormes desigualdades sociais. Vivemos um tempo que tem algumas semelhanças com o das revoluções democráticas que avassalaram a Europa em 1848. A polarização social era enorme porque o operariado (então uma classe jovem) dependia do trabalho para sobreviver mas (ao contrário dos pais e avós) o trabalho não dependia dele, dependia de quem o dava ou retirava a seu belprazer, o patrão; se trabalhasse, os salários eram tão baixos e a jornada tão longa que a saúde perigava e a família vivia sempre à beira da fome; se fosse despedido, não tinha qualquer suporte exceto o de alguma economia solidária ou do recurso ao crime. Não admira que, nessas revoluções, as duas bandeiras de luta tenham sido o direito ao trabalho e o direito a uma jornada de trabalho mais curta. 150 anos depois, a situação não é totalmente a mesma mas as bandeiras continuam a ser atuais.

E talvez o sejam hoje mais do que o eram há 30 anos. As revoluções foram
sangrentas e falharam, mas os próprios governos conservadores que se
seguiram tiveram de fazer concessões para que a questão social não
descambasse em catástrofe. A que distância estamos nós da catástrofe? Por enquanto, a mobilização contra a escandalosa desigualdade social
(semelhante à de 1848) é pacífica e tem um forte pendor moralista denunciador.

Não mete medo ao sistema financeiro-democrático. Quem pode garantir que assim continue? A direita está preparada para a resposta repressiva a qualquer alteração que se torne ameaçadora. Quais são os planos das esquerdas? Vão voltar a dividir-se como no passado, umas tomando a posição da repressão e outras, a da luta contra a repressão?

A segunda linha de reflexão tem igualmente muito a ver com as revoluções de 1848 e consiste em como voltar a conectar a democracia com as aspirações e as decisões dos cidadãos. Das palavras de ordem de 1848, sobressaíam liberalismo e democracia. Liberalismo significava governo
republicano, separação ente estado e religião, liberdade de imprensa;
democracia significava sufrágio “universal” para os homens. Neste domínio,
muito se avançou nos últimos 150 anos. No entanto, as conquistas têm vindo a ser postas em causa nos últimos 30 anos e nos últimos tempos a
democracia mais parece uma casa fechada ocupada por um grupo de
extraterrestres que decide democraticamente pelos seus interesses e
ditatorialmente pelos interesses das grandes maiorias. Um regime misto,
uma democradura. 

O movimento dos indignados e do occupy recusam a expropriação da democracia e optam por tomar decisões por consenso nas sua assembleias. São loucos ou são um sinal das exigências que vêm aí? As
esquerdas já terão pensado que se não se sentirem confortáveis com formas de democracia de alta intensidade (no interior dos partidos e na república) esse será o sinal de que devem retirar-se ou refundar-se?

Boaventura de Sousa Santos é sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).


Fonte: www.cartamaior.com.br 










As radicalidades de Nuestra América

Por Elaine Tavares, no sítio daAdital:

O eurocentrismo é mesmo uma coisa difícil de ser superada num país como o nosso, em que as mentes parecem estar, na sua maioria, repetidamente cativas do velho mundo colonial. Uma palavra de um pensador europeu vale mais do que toda a prática de um povo, por exemplo. Observei isso hoje ao abrir as redes sociais e ver, reproduzido à exaustão, um texto do Boaventura Souza Santos sobre a necessidade de a esquerda refletir sobre os acontecimentos recentes como o dos indignados na Espanha e o dos estadunidenses na Wall Street. No texto, o sociólogo português elabora uma boa análise sobre a incapacidade da esquerda de fazer uma ofensiva sobre o sistema, atuando sempre na reação, e também sobre a eterna divisão da qual é acometida sempre que assume o poder. A dança das cadeiras por cargos, a busca da perpetuação nos postos de mando.

Boaventura traz um pouco da história das velhas bandeiras da esquerda e mostra o quanto as esquerdas que atuam nos novos movimentos na Europa e na zona do império (EUA) estão sendo incapazes de dialogar com os não-militantes, no sentido de permitir que eles se apropriem desse debate histórico e dessas bandeiras. Souza Santos consegue perceber bem os desafios da esquerda européia, que parece um tanto perdida no turbilhão de "democracia” que se apresenta de forma radical nas assembléias dos "indignados”. E ele está certo. Tanto na Grécia quanto na Espanha, onde estive acompanhando esses movimentos, era possível perceber que o que aparece como um monólito nas imagens de TV (o povo em luta) apresenta muitas fragilidades, justamente por conta da incapacidade das esquerdas em fazer a unidade na luta. Na Grécia, sindicatos e partidos – os que atuam dentro de um objetivo calculado - fazem manifestações em separado, peleiam por detalhes e muitas vezes deixam as gentes em desamparo, porque muitos não conseguem entender o teor das divisões. Na Espanha observei o mesmo fenômeno. Determinadas organizações preparam marchas em separado e igualmente se afastam das maiorias, que muitas vezes estão nas ruas por pura indignação mesmo, carentes de uma explicação do mundo.

Mas, o que me chamou a atenção no texto do Boaventura e o que me parece foi o estopim para tantas pessoas o terem replicado, foi o fato de ele apresentar como novidade os processos de democracia – que ele chama de alta-intensidade – que se observam no interior dos movimentos. E aí sim fico pensando na incapacidade de nossos intelectuais de pensarem o mundo como totalidade. Porque, afinal, a vida não tem sua fonte original nas terras européias, ela também se expressa em outros espaços geográficos, às vezes com muito mais originalidade. Então proponho algumas indagações aos companheiros que pensam a vida.

Não seria de alta-intensidade a democracia que sobrevive em Cuba, por exemplo -apesar do criminoso bloqueio comercial- com um processo de ampla participação popular que começa na rua de casa? E que depois se espraia nas assembleias por bairros e por municípios? Coisa que já dura aí mais de 50 anos! Não seria também de alta-intensidade a democracia que vive nas comunidades zapatistas, no meio da selva chiapaneca, onde as comunidades discutem à exaustão os temas que envolvem a reprodução de suas vidas e só tomam uma decisão quando todos concordam? E o que dizer da democracia participativa inaugurada pelo povo venezuelano a partir de 1998, com a formação de missões, conselhos e uma rica vida política de intervenção direta? Não seria de alta-intensidade a organização comunal dos ayllus, na Bolívia, em que as questões são decididas em conselhos abertos da comunidade? Ou as rodas comunitárias dos indígenas do Equador, do Chile, da Argentina, do Brasil?

Esses são apenas alguns exemplos sobre como nessa nossa parte de chão também vicejam experiências inovadoras e originais, de democracia direta e participativa, talvez até em maior grau do que as que se observam nos movimentos rebeldes europeus? E não seria bom que nós, que vivemos de pensar o mundo, nos debruçássemos sobre essas vivências, para melhor compreender as possibilidades que elas oferecem? Nada contra as reflexões de Boaventura, ele tem mais que pensar e refletir o seu universo, e o faz muito bem. Ele inclusive aponta um elemento que pode ser revestido de caráter universal, que é o da necessidade de as esquerdas estudarem mais a realidade, a sua realidade.

O que tento fazer, desde aqui deste meu pequeno pedaço de Abya Yala é propor a descolonização do pensamento. Que possamos, até convidados por Boaventura, perceber as originalidades que vicejam aqui mesmo, ao nosso redor, nessa terra cheia de possibilidades. O capitalismo faz água, está em processo de queda e como já anuncia outro teórico – do mundo árabe – Samir Amin, nos processos de queda de impérios e de mudança de temperatura do mundo é sempre a periferia do sistema aquela que tem as melhores chances de arrancar para algo radicalmente novo. Eu percebo que o novo sempre esteve aqui. Falta ser visto, observado com mais cuidado e incorporado às nossas análises da realidade.







                    E C O N O M I A










Escolher o alvo certo: reduzir o juro para o consumidor

A economia está caminhando rapidamente para a estagnação, independentemente da crise europeia e isso se deve não à Selic, mas ao crédito caro. Se o governo não intervier rápida e duramente nessa área não vai adiantar botar a culpa na crise externa. É necessário mirar e atirar firme no alvo certo. Se é certo reduzir a Selic, como está fazendo o governo, mais necessário ainda é reduzir a taxa de juro ao consumidor. Isso irá ativar o consumo, diminuir a inadimplência que é criada pela elevada taxa de juro.

Quase todas as análises que abordam a questão dos juros se referem à Selic. Tudo se passa como sendo ela que controla a inflação, regula o crescimento econômico e o câmbio. Serve até para se comparar com a chamada taxa de juro neutra - considerada como a mínima para que não ocorra inflação - que alguns atribuem, sem maiores explicações, como sendo 4% a 5%.

A Selic é considerada como a variável macroeconômica mais importante junto com a taxa de crescimento econômico. No entanto, pode estar servindo para desviar a atenção sobre outra taxa de juro: a que é cobrada pelos bancos aos consumidores e às empresas. Nesse artigo vamos tratar apenas da taxa de juro ao consumidor.

Uma modalidade muito usada pelas pessoas é o cheque especial. O último levantamento do BC junto a 31 bancos referente ao período de 23 a 29 do mês passado serve para revelar o verdadeiro assalto dos bancos sobre os consumidores. Essas taxas de juros variavam desde 2,24% ao mês no Banco Cruzeiro do Sul, primeiro lugar no ranking, até 10,32% no Santander, o último colocado. A CEF figurou em 18º lugar com 8,12%, o BB em 21% com 8,80%, o Bradesco em 24% com 8,87%, o Itaú em 25% com 8,93% e o HSBC em 29% com 9,97%. 

Vê-se por aí que o abuso é geral envolvendo, inclusive, as instituições oficiais. Isso revela o descaso do governo com essa questão. É uma afronta à sociedade que se vê totalmente desprotegida por regras que impeçam a prática abusiva dos bancos.

Na comparação internacional, o sistema financeiro que atua no País pratica a maior taxa de juro ao consumidor do mundo. E isso ocorre, pelo menos, desde 2000, sem perder essa posição em nenhum (!) mês até hoje. Pior, desde 2004 sustenta em média o dobro (!) da taxa do Peru que vem em segundo lugar. Para efeito de comparação, serve também o fato dos países emergentes operarem com uma taxa média de juro para o consumo de 10% e os desenvolvidos 3%. A nossa em outubro bateu em 47%, quase cinco vezes maior que a dos emergentes e dezesseis vezes a dos desenvolvidos!

Tentando responder a essa crítica o sistema financeiro procura botar a culpa na cunha fiscal (tributos que incidem sobre os empréstimos), na inadimplência e nas despesas administrativas que os bancos têm. Fato é que as despesas administrativas são mais do que cobertas pelas receitas com as elevadas tarifas bancárias. A inadimplência é baixa e devida principalmente à elevada taxa de juro. A cunha fiscal existe em todo o mundo e não tem nada de especial. Mas o que procuram esconder é que o grosso da taxa de juro é a parcela responsável pela composição do lucro bancário.

Os bancos captam recursos a uma taxa próxima à Selic e a emprestam ao consumidor com diferença entre essas duas taxas de 32 pontos neste ano (dados realizados até outubro). Nos países emergentes essa diferença neste ano foi de quatro pontos. 

A taxa de juro ao consumidor é usada no Brasil como poderoso freio na economia por encarecer o crédito, retirando poder aquisitivo do consumidor. Neste sentido tem sido um aliado do Banco Central para controlar a inflação. 

O governo assustado com a perda de ritmo do crescimento econômico tomou medidas para ampliar o crédito, mas com a taxa de juro escorchante, que está aí está submetendo a parcela da população de renda média e baixa, que mais usa o crediário, a cair na inadimplência e ver reduzido seu poder aquisitivo. Essa perda se expressa, por exemplo, ao comprar uma geladeira e pagar duas, sendo uma virtual só de juros.

O crédito é fundamental como um dos motores importantes para a expansão do consumo, mas pouco se fala sobre a qualidade desse crédito e o quanto ele carrega de redução do poder aquisitivo da população.

Ora, para ampliar o consumo, como quer o governo, a primeira medida seria a redução da taxa de juro para o consumidor. Até hoje o governo nunca fez nada nesse sentido. Talvez por temer um confronto direto com o mercado financeiro. Por isso quando fala em taxa de juro, se refere normalmente à Selic. É necessário reluzi-la. Será um alívio para as despesas do governo, estímulo ao investimento privado e desestímulo à especulação externa contra o real e motivo de rombo nas contas externas.

Mas se é certo reduzir a Selic, como está fazendo o governo, mais necessário ainda é reduzir a taxa de juro ao consumidor. Isso irá ativar o consumo, diminuir a inadimplência que é criada pela elevada taxa de juro, e estimular os investimentos, que só interessam às empresas, se podem proporcionar rendimento maior do que na aplicação na Selic.

Temo que essa questão, que nunca foi enfrentada até agora, continue obscurecida pela discussão apenas da Selic. Ela não deve ser o alvo principal e o risco é ficar erigindo-a em poção milagrosa para tudo, quando não é, e deixar de lado o alvo que interessa, que é a taxa de juro ao consumo.

Com a crise europeia se acirrando, e sem possibilidade de saber que desdobramento terá sobre o País, é urgente, aproveitar o potencial não explorado do mercado interno. Para isso, políticas de distribuição de renda, desoneração tributária sobre bens de consumo popular e rebaixamento dos custos que mais incidem sobre o orçamento doméstico, como alimentação, transporte, habitação, medicamentos, comunicação, energia elétrica e consumo de água são elementos importantes para ampliar a capacidade de consumo e poupança da maioria da população. E, sobre tudo isso pouco se fez até hoje. 

Essas medidas, no entanto, dependem de recursos do governo e, por essa razão, são mais limitadas em seu alcance e levam mais tempo para surtir efeito. Por outro lado, a redução da taxa de juro ao consumo tem efeito imediato e com repercussão ampla. Mas é possível reduzi-la? Sim. Na medida em que as aplicações na Selic forem caindo abaixo de certo ponto, os bancos vão migrar gradualmente para ampliar suas operações de crédito. Essa ampliação traz dois benefícios para a redução do juro: a) aumenta a concorrência bancária e; b) maior oferta para atender à demanda. 

Fora esse movimento natural de mercado, pode-se destacar duas medidas que podem ser tomadas pelo governo. A primeira é a redução das taxas de juros nas instituições oficiais Banco do Brasil (BB) e Caixa Econômica Federal (CEF), que se encontram elevadas, como visto. A segunda é estabelecer regra diferenciada de depósito compulsório dos bancos no Banco Central (BC). Quanto menor a taxa de juro praticada pelo banco, menor o percentual de depósitos a vista e a prazo que terá que efetuar no BC.

A economia está caminhando rapidamente para a estagnação, independentemente da crise europeia e isso se deve não à Selic, mas ao crédito caro. Se o governo não intervier rápida e duramente nessa área não vai adiantar botar a culpa na crise externa. É necessário mirar e atirar firme no alvo certo. 

Saio de férias e desejo um feliz natal e um ano novo com paz, saúde e felicidade.

(*) Mestre em Finanças Públicas pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e consultor.


Fonte: www.cartamaior.com.br 







DEBATE ABERTO

Política econômica conservadora: prudência ou medo?

O crescimento consolidado da produção e dos serviços coloca o Brasil bem atrás dos demais países com características similares, como os parceiros do BRICS - sem contar os mais próximos como Argentina e Chile. O ano que se encerra vai entrar na lista imensa das oportunidades históricas desperdiçadas por nossos governantes.

A proximidade do final do ano começa a nos levar, fatalmente, a um movimento de avaliação do período que se encerra. No plano pessoal, familiar, profissional e também na esfera da política. Tudo passa a ser checado e balanceado. Comparado com as metas inicialmente previstas. E os resultados passam a ser objeto de crítica.

No artigo de hoje, o tema é a avaliação da política econômica do governo. Afinal, passado quase um ano do início do mandato da Presidenta Dilma, há muita polêmica a respeito do saldo desse aspecto essencial no conjunto das políticas públicas implementadas pela administração federal. Parece inevitável que, nesse debate, as intervenções venham muito carregadas daquilo que costumo chamar de “efeito torcida uniformizada”. Os alinhamentos são meio que forçados automaticamente a se posicionarem na base do antagonismo entre o “governo do possível” e o ”oportunismo da direita”. Tenta-se com isso, evitar qualquer possibilidade de avaliação crítica, pois isso significaria estar fazendo o jogo do adversário.

Porém, creio que há muito tempo já foi superada essa falsa contradição. Apenas os tolos se deixam enganar pelo argumento do “ah, mas se fosse fulano, a coisa seria muito pior...” A verdadeira questão é saber por que a essa mesma “coisa” não está muito melhor! E por aí começa a indagação a respeito das razões que teriam levado Dilma a manter a essência da política econômica conservadora que herdou do governo Lula, que por sua vez vem ainda do governo FHC. Apesar da mudança de personagens importantes na condução da economia, o saldo desse primeiro ano ainda deixa muito a desejar. Senão, vejamos.

É sempre bom recordar que o eixo da manutenção da política econômica vem ainda da edição do Plano Real, lá atrás em 1994. A fórmula para combater a inflação era baseada no chamado “tripé da estabilidade”: i) política monetária ortodoxa, com taxa oficial de juros bastante elevada; ii) política fiscal rigorosa, com geração de superávits primários a todo custo; e, iii) política cambial baseada no pressuposto de enganosa liberdade no mercado de câmbio. E apesar de já estarmos próximos de comemorar duas décadas daquele importante momento de estabilização da moeda, pouco se alterou em termos da essência da concepção da política econômica.

Política monetária

A Presidenta eleita assumiu o Palácio do Planalto em 01 de janeiro desse ano com uma taxa SELIC no patamar de 10,75% a.a. Não obstante existirem todas as condições para iniciar uma redução substantiva de um dos principais obstáculos a qualquer projeto de desenvolvimento econômico nacional, o núcleo duro do governo optou pela estratégia dominada pelo medo – um verdadeiro pavor das possíveis reações do mercado financeiro. Em 5 reuniões sucessivas do Comitê de Política Monetária (COPOM), decidiu-se por aumentos na taxa SELIC. Assim, aquela que opera como referência para a formação da taxa de juros no mercado bancário e financeiro no País, subiu a cada 45 dias, alcançando a absurda marca de 12,50% a.a. em 20 de julho.

A grande maioria dos países do chamado mundo desenvolvido sinalizava enorme dificuldade na condução de suas próprias economias, optando por flexibilizar ainda mais as rédeas de seus respectivos instrumentos de política monetária. O resultado é que a taxa real de juros nos Estados Unidos, no Japão e na Europa aproximou-se de zero, quando não ficou negativa. E por aqui, o Brasil decidia por caminhar em sentido oposto, comprimindo as alternativas de saída pela via da aceleração das taxas de crescimento econômico, ao provocar o aumento da taxa real de juros.

Ao longo do segundo semestre, ao perceber o quão insustentável era a opção até então encaminhada, a equipe de Dilma decide por reduzir a taxa SELIC. Assim, durante as outras 3 sucessivas reuniões, o COPOM resolve tirar o “bode da sala” e a taxa oficial de juros atinge os atuais 11% a.a. em 30 de novembro. O resultado é evidente: a taxa SELIC de encerramento de 2011 é mesmo superior àquela com a qual Dilma havia iniciado seu governo! Assim, apesar do discurso retórico da necessidade de “prudência”, o fato é que as decisões parecem mesmo terem sido determinadas pelo “medo” de enfrentar as forças do mercado financeiro e da cultura cada vez mais intoxicada por taxas de juros elevadas em nossa sociedade.

O saldo da política monetária, como se vê, deixa muito a desejar. Apesar do efeito psicológico mais recente derivado da redução na SELIC decidida pela diretoria do Banco Central (BC) reunida sob o manto do COPOM, o fato é que os prejuízos provocados pelos aumentos adotados durante o primeiro semestre foram nefastos sobre a atividade da economia. Estão aí os dados que foram divulgados há poucos dias a respeito do comportamento do PIB, comprovando que as expectativas otimistas de 5,5% de crescimento para 2011 deverão apontar para algo em torno de apenas 3%. O crescimento consolidado da produção e dos serviços coloca o Brasil bem atrás dos demais países com características similares, como os parceiros do BRICS - sem contar os mais próximos como Argentina e Chile. O ano que se encerra vai entrar na lista imensa das oportunidades históricas desperdiçadas por nossos governantes.

Política fiscal

Comportamento semelhante pode ser verificado na condução da política fiscal. Em nome da uma pretendida postura de “responsabilidade” no tratamento do delicado equilíbrio de entre receitas e gastos públicos, o governo deu continuidade à austeridade cega e irracional – cortes horizontais e sem critério. Foram mantidas as metas de superávit primário em torno de 3% do PIB. Isso significa que o conjunto da sociedade deve efetuar um esforço gigantesco para gerar um total de receitas governamentais superior às despesas da mesma natureza – tão simplesmente para que essa economia seja utilizada para assegurar o pagamento dos juros e serviços da dívida pública. Mais uma vez, o medo dominou e superou a esperança. O governo de Dilma deu continuidade à política de transferência de renda do conjunto da sociedade para os setores que vivem do rentismo parasita. A previsão é de algo em torno de R$ 230 bilhões para o ano que se encerra. A viabilização de tal superávit só é possível por meio da compressão de despesas públicas essenciais, como saúde, educação, previdência, além dos investimentos urgentes em infra-estrutura.

Esse tipo de opção - parece evidente - revela muito mais do que um simples elemento de prudência. Trata-se de uma decisão deliberada e expressa de beneficiar uma parcela restrita e poderosa de nossa sociedade, ainda que por meio do discurso de que a política geral do governo estaria promovendo uma redução das desigualdades, inclusive com medidas como a expansão do escopo do Bolsa Família para o Brasil sem Miséria. A verdade, porém, é que tais importantes programas de transferência não recebem nem mesmo o equivalente a 10% dos valores orçamentários dirigidos para os serviços financeiros da dívida pública. Em 2011 não ocorreram reajustes reais nos valores do salário mínimo nem nos benefícios da previdência social, em nome da carência de recursos orçamentários. Além disso, há poucas semanas o governo conseguiu aprovar a continuidade da DRU até 2015 – uma forma nada sutil de operar livremente nada menos que 20% dos recursos orçamentários da União, com objetivo de gerar o superávit primário. Nesses momentos é que se podem identificar as verdadeiras prioridades do governo.

Política cambial

O terceiro tripé da estabilidade macroeconômica reside na liberdade cambial. Esse é um dos fundamentos herdados ainda dos tempos de ouro do neoliberalismo. Dentre as inúmeras sugestões do famoso Consenso de Washington, constava a recomendação aos países membros do FMI de implementarem políticas de globalização que incluíssem a liberdade de movimentação de recursos financeiros. Na prática, significava que os Estados deveriam abrir mão de parcela significativa (quando não total!) de sua soberania, em favor da abertura de suas fronteiras para a livre circulação de capitais, inclusive e principalmente os de natureza especulativa. A sofisticação dos fundamentos teóricos de tal proposição buscava atribuir ao complexo e concentrado mercado de capitais o mesmo tipo de comportamento do mercado de batatinhas da feira livre do nosso bairro, onde os agentes de demanda e oferta operariam em igualdade de condições. O preço de equilíbrio seria o resultado da livre ação das forças que ofereciam recursos externos e dos que procuravam esse mesmo tipo de recurso – um mercado muito concentrado, com poucos e enormes agentes atuantes. Uma loucura de comparação! No caso do mercado de câmbio, o preço é a própria taxa de câmbio – e o governo deveria ficar longe de intervir nesse campo, pois sua ação seria sempre negativa.

O resultado foi o cenário vigente desde 1998. A moeda brasileira, salvo alguns raros momentos de crise específica, tem apresentado um valor claramente sobrevalorizado em relação às moedas do resto do mundo. Isso porque a política monetária acima descrita tornou o Brasil o campeão imbatível na taxa real de juros em todo o mundo. Os capitais especulativos se dirigem para cá com enorme avidez e pressionam a taxa de câmbio, pois necessitam ser convertidos em reais para operarem aqui dentro. Como sobram dólares, o “preço” do dólar fica baixo. Por conta disso, o real fica sobrevalorizado. E o governo nada ou muito pouco faz, em nome da intocável liberdade de movimentação de capitais. 

Quando Dilma assumiu, a taxa de câmbio era de R$1,65 para cada US$. Em julho chegou a atingir apenas R$ 1,53. Só se recuperou um pouco a partir do mês de setembro, em razão do aprofundamento da crise internacional e da redução do volume de recursos especulativos que para cá se dirige. Atualmente a taxa de câmbio está em torno de R$ 1,86 por dólar norte-americano. O governo bem que tentou algumas medidas tímidas, mas que pouco efeito provocaram sobre o fluxo do capital especulativo e sobre a taxa de câmbio. Ora está mais do que comprovado que nossa economia está sendo profundamente prejudicada por tal desvio cambial. Nossas exportações industriais não conseguem alcançar condições de competitividade no exterior e nossas importações estão abarrotadas de produtos manufaturados de baixa qualidade. O Brasil, na verdade, contribui para a geração de emprego e renda no exterior, principalmente nos países como a China e demais parceiros que conseguem produzir a custos menores que os nossos.

O governo deveria atuar de forma mais incisiva para evitar o livre fluxo de capital especulativo. Esse tipo de recurso externo não nos interessa! Só contribui para reforçar nossa instabilidade nas contas externas e para sobrevalorizar nosso câmbio. Mas a equipe da Fazenda faz exatamente o contrário, como na recém anunciada isenção de IOF para aplicações de recursos externos nas Bolsas de Valores [1]. Além disso, o capital especulativo que vem atrás da rentabilidade fácil se beneficia de nosso esforço fiscal para pagamento de juros de dívida pública. Isso porque boa parte desse recurso acaba, direta ou indiretamente, sendo aplicado nos títulos do Tesouro Nacional. Finalmente, a liberdade cambial, acaba sendo um dos principais elementos responsáveis pelo processo de desindustrialização que nossa economia está vivendo ao longo dos últimos tempos. Ou seja, pretende que seja eterna a tendência à primarização de nossa pauta exportadora (petróleo, minério de ferro, soja, cana, etc), em detrimento do aprofundamento em processos industriais contemporâneos e de futuro. Esses últimos, aliás, são os únicos meios capazes de gerar valor agregado e de contribuir para o nosso desenvolvimento no longo prazo. Caso contrário, continuaremos eternamente presos à armadilha do desenho pós-colonialista da divisão internacional do trabalho.

Em resumo, é urgente a mudança de postura na condução da política econômica. Sem cair em aventuras irresponsáveis, é essencial romper com o medo dominador gerado pelos interesses do capital financeiro. É preciso ousar e superar a lógica da perpetuação do modelo viesado do financismo, que se esconde sob o manto da sugestão de “sempre cautela e mais cautela”. Mas para isso é necessário vontade política de mudança. 

Felizmente não se trata de tarefa impossível: basta dar ouvidos a vastos setores da sociedade, que há tempos propõem abandonar a continuidade desse modelo, cuja principal conseqüência tem sido a provocação de danos para nosso País.

NOTA
[1] http://www.brasil.gov.br/noticias/arquivos/2011/12/1/governo-anuncia-isencao-de-iof-sobre-aplicacao-de-estrangeiros-na-bolsa/

Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.


Fonte: www.cartamaior.com.br 














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