Em boa hora Darcy Ribeiro volta à cena por meio de uma antologia de artigos organizada por seu amigo Eric Nepomuceno.
Em 1997, escrevi: “Todo mundo quando morre faz falta para alguém, mas Darcy Ribeiro vai fazer falta para todo mundo, afetos e desafetos.” Cada vez mais. Os que o conheceram costumam repetir: “Ah, se o Darcy estivesse aí!” Não sei se o país seria diferente, mas a política certamente estaria menos mofina, porque ele soube conciliála com a ética, a erótica e a poética. Embora tenha deixado realizações como a Universidade de Brasília, 400 Cieps e o Sambódromo, prefiro lembrá-lo pelos seus gestos e atitudes. Ele era um iracundo, para usar uma categoria de que gostava tanto, ou seja, um ser em permanente estado de indignação e insurgência. Como disse a Eric, “nesta América Latina você só tem duas opções: se resignar ou se indignar. E eu não vou me resignar nunca”. Nem o câncer conseguiu transformá-lo em paciente. Foi um doente tão impaciente que chegou a fugir da UTI. Viveu em eterno gozo, mesmo em meio a longos anos de dor e sofrimento.
Nunca se submeteu ao mal. Depressão, jamais.
Darcysista, se achava não só o homem mais inteligente do país, como o mais bonito. Pelo número de “viúvas” que deixou, devia ter razão. Uma delas, no enterro, um funeral festivo e divertido, debruçouse sobre o caixão e lamentou: “Ah, Darcy, como me arrependo de não ter dado pra você nas duas vezes que você me cantou!” Como antropólogo que viveu entre os índios kadivéu, achava que o Brasil era uma “usina de moer gente”; mas apostava no seu futuro: “Seremos uma Nova Roma. Melhor, porque lavada em sangue negro e em sangue índio” Mas, para isso, seria necessário realizar uma “reforma agrária verdadeira”; e incorporar todo o nosso povo à “civilização letrada”, o que, na sua opinião, seria impossível com a nossa “desastrosa invenção da escola de turnos” . A esse sistema ele atribuía grande parte de nossas chagas, como o abandono das crianças na rua.
Empunhava sem pudor valores hoje anacrônicos como honestidade, entrega cívica e patriotismo: “Sou patriota à moda antiga, verde-amarelo, vibrante.”Desprezava os que desprezavam o Brasil, e citava os povos que deram certo por serem nacionalistas: “Os japoneses chegam a ser fanáticos, os alemães também e os norte-americanos, por igual, morrem de amor e de orgulho por sua pátria e por seu jeito de viver.” Lembrava Vinicius no apego às mulheres e à pátria, que o poeta chamava de “patriazinha” e ele, de “patrinha”.
Ex-senador, não se conformaria em ver a Casa que dizia ser “melhor do que o céu” desmoralizar-se tanto.
Nadando contra a corrente, Darcy Ribeiro foi o nosso mais encantador contraponto, o nosso mais charmoso contrapeso. Que falta ele faz!
(Transcrito do blog http://www.tijolaco.com/ )
<><><><><><><><><>
A saudade do servo na velha diplomacia brasileira
Leonardo Boff
(Transcrito do site http://www.cartamaior.com.br/)
Em 1997, escrevi: “Todo mundo quando morre faz falta para alguém, mas Darcy Ribeiro vai fazer falta para todo mundo, afetos e desafetos.” Cada vez mais. Os que o conheceram costumam repetir: “Ah, se o Darcy estivesse aí!” Não sei se o país seria diferente, mas a política certamente estaria menos mofina, porque ele soube conciliála com a ética, a erótica e a poética. Embora tenha deixado realizações como a Universidade de Brasília, 400 Cieps e o Sambódromo, prefiro lembrá-lo pelos seus gestos e atitudes. Ele era um iracundo, para usar uma categoria de que gostava tanto, ou seja, um ser em permanente estado de indignação e insurgência. Como disse a Eric, “nesta América Latina você só tem duas opções: se resignar ou se indignar. E eu não vou me resignar nunca”. Nem o câncer conseguiu transformá-lo em paciente. Foi um doente tão impaciente que chegou a fugir da UTI. Viveu em eterno gozo, mesmo em meio a longos anos de dor e sofrimento.
Nunca se submeteu ao mal. Depressão, jamais.
Darcysista, se achava não só o homem mais inteligente do país, como o mais bonito. Pelo número de “viúvas” que deixou, devia ter razão. Uma delas, no enterro, um funeral festivo e divertido, debruçouse sobre o caixão e lamentou: “Ah, Darcy, como me arrependo de não ter dado pra você nas duas vezes que você me cantou!” Como antropólogo que viveu entre os índios kadivéu, achava que o Brasil era uma “usina de moer gente”; mas apostava no seu futuro: “Seremos uma Nova Roma. Melhor, porque lavada em sangue negro e em sangue índio” Mas, para isso, seria necessário realizar uma “reforma agrária verdadeira”; e incorporar todo o nosso povo à “civilização letrada”, o que, na sua opinião, seria impossível com a nossa “desastrosa invenção da escola de turnos” . A esse sistema ele atribuía grande parte de nossas chagas, como o abandono das crianças na rua.
Empunhava sem pudor valores hoje anacrônicos como honestidade, entrega cívica e patriotismo: “Sou patriota à moda antiga, verde-amarelo, vibrante.”Desprezava os que desprezavam o Brasil, e citava os povos que deram certo por serem nacionalistas: “Os japoneses chegam a ser fanáticos, os alemães também e os norte-americanos, por igual, morrem de amor e de orgulho por sua pátria e por seu jeito de viver.” Lembrava Vinicius no apego às mulheres e à pátria, que o poeta chamava de “patriazinha” e ele, de “patrinha”.
Ex-senador, não se conformaria em ver a Casa que dizia ser “melhor do que o céu” desmoralizar-se tanto.
Nadando contra a corrente, Darcy Ribeiro foi o nosso mais encantador contraponto, o nosso mais charmoso contrapeso. Que falta ele faz!
(Transcrito do blog http://www.tijolaco.com/ )
<><><><><><><><><>
A saudade do servo na velha diplomacia brasileira
Leonardo Boff
O filósofo F. Hegel em sua Fenomenologia do Espírito analisou detalhadamente a dialética do senhor e do servo. O senhor se torna tanto mais senhor quanto mais o servo internaliza em si o senhor, o que aprofunda ainda mais seu estado de servo. A mesma dialética identificou Paulo Freire na relação oprimido-opressor em sua clássica obra Pedagogia do oprimido. Com humor comentou Frei Betto: “em cada cabeça de oprimido há uma placa virtual que diz: hospedaria de opressor”. Quer dizer, o opressor hospeda em si oprimido e é exatamente isso que o faz oprimido. A libertação se realiza quando o oprimido extrojeta o opressor e ai começa então uma nova história na qual não haverá mais oprimido e opressor mas o cidadão livre.
Escrevo isso a propósito de nossa imprensa comercial, os grandes jornais do Rio, de São Paulo e de Porto Alegre, com referência à política externa do governo Lula no seu afã de mediar junto com o governo turco um acordo pacífico com o Irã a respeito do enriquecimento de urânio para fins não militares. Ler as opiniões emitidas por estes jornais, seja em editoriais seja por seus articulistas, alguns deles, embaixadores da velha guarda, reféns do tempo da guerra-fria, na lógica de amigo-inimigo é simplesmente estarrecedor. O Globo fala em “suicídio diplomático”(24/05) para referir apenas um título até suave. Bem que poderiam colocar como sub-cabeçalho de seus jornais:”Sucursal do Império” pois sua voz é mais eco da voz do senhor imperial do que a voz do jornalismo que objetivamente informa e honestamente opina. Outros, como o Jornal do Brasil, tem seguido uma linha de objetividade, fornecendo os dados principais para os leitores fazerem sua apreciação.
As opiniões revelam pessoas que têm saudades deste senhor imperial internalizado, de quem se comportam como súcubos. Não admitem que o Brasil de Lula ganhe relevância mundial e se transforme num ator político importante como o repetiu, há pouco, no Brasil, o Secretário Geral da ONU, Ban-Ki-moon. Querem vê-lo no lugar que lhe cabe: na periferia colonial, alinhado ao patrão imperial, qual cão amestrado e vira-lata. Posso imaginar o quanto os donos desses jornais sofrem ao ter que aceitar que o Brasil nunca poderá ser o que gostariam que fosse: um Estado-agregado como é Hawai e Porto-Rico. Como não há jeito, a maneira então de atender à voz do senhor internalizado, é difamar, ridicularizar e desqualificar, de forma até antipatriótica, a iniciativa e a pessoa do Presidente. Este notoriamente é reconhecido, mundo afora, como excepcional interlocutor, com grande habilidade nas negociações e dotado de singular força de convencimento.
O povo brasileiro abomina a subserviência aos poderosos e aprecia, às vezes ingenuamente, os estrangeiros e os outros povos. Sente-se orgulhoso de seu Presidente. Ele é um deles, um sobrevivente da grande tribulação, que as elites, tidas por Darcy Ribeiro como das mais reacionárias do mundo, nunca o aceitaram porque pensam que seu lugar não é na Presidência mas na fábrica produzindo para elas. Mas a história quis que fosse Presidente e que comparecesse como um personagem de grande carisma, unindo em sua pessoa ternura para com os humildes e vigor com o qual sustenta suas posições .
O que estamos assistindo é a contraposição de dois paradigmas de fazer diplomacia: uma velha, imperial, intimidatória, do uso da truculência ideológica, econômica e eventualmente militar, diplomacia inimiga da paz e da vida, que nunca trouxe resultados duradouros. E outra, do século XXI, que se dá conta de que vivemos numa fase nova da história, a história coletiva dos povos que se obrigam a conviver harmoniosamente num pequeno planeta, escasso de recursos e semi-devastado. Para esta nova situação impõe-se a diplomacia do diálogo incansável, da negociação do ganha-ganha, dos acertos para além das diferenças. Lula entendeu esta fase planetária. Fez-se protagonista do novo, daquela estratégia que pode efetivamente evitar a maior praga que jamais existiu: a guerra que só destrói e mata. Agora, ou seguiremos esta nova diplomacia, ou nos entredevoraremos. Ou Hillary ou Lula.
A nossa imprensa comercial é obtusa face a essa nova emergência da história. Por isso abomina a diplomacia de Lula
Leonardo Boff é Teólogo e autor de Nossa ressurreição na morte, Vozes 2007
(Transcrito do blog http://www.tijolaco.com/)
<><><><><><><>
"Los hermanos". 20 anos depois
Antonio Lassance (*)
A cada ano, quando nos aproximamos da data do golpe de 1964, uma sensação incômoda se apossa da direita – dos partidos, políticos e dos seus meios de comunicação. O que fazer? Que atitude tomar? Fingir que não acontece nada, abordar de maneira “objetiva”, como se eles não tivessem estado comprometidos com a brutal ruptura da democracia no momento mais negativo da história brasileira ou abordar como se tivessem sido vítimas do regime que ajudaram a criar?
Difícil e incômoda a situação, porque a imprensa participou ativamente, como militância politica, da preparação do golpe, ajudando a criar um falso clima tanto de que o Brasil estivesse sob risco iminente de uma ruptura da democracia por parte da esquerda, como do falso isolamento do governo Jango. Pregaram o golpe, mobilizaram para as Marchas da Família, com Deus, pela Liberdade, convocadas pela Igreja, tentaram passar a ideia de que se tratava de um movimento democrático contra riscos de ditadura e promoveram a maior ruptura da democracia que o Brasil conheceu e a chegada ao poder da pior ditadura que conhecemos.
Na guerra fria, a imprensa brasileira esteve plenamente alinhada com a politica norteamericana da luta contra a “subversão” contra o “comunismo”, isto é, com o radicalismo de direita, com as posições obscurantistas e contrárias à democracia, estabelecida com grande esforço no Brasil. Estiveram em todas as tentativas de golpe contra Getúlio e contra JK. Em suma, a posição golpista da imprensa brasileira em 1964 não foi um erro ocasional, um acidente de percurso, mas a decorrência natural do alinhamento na guerra fria com as forças pró-EUA e que se opuseram com todo empenho ao processo de democratização que o Brasil viveu na década de 1950.
Deve prevalecer um misto de atitude envergonhada de não dar muito destaque ao tema, com matérias que pretendam renovar a ideia equivocada de que a imprensa foi vitima da ditadura – quando foi algoz, aliado, fator no desencadeamento do golpe e da ditadura. (O livro de Beatriz Kushnir, Cães de guarda, da Boitempo, continua a ser leitura indispensável para uma visão real do papel da mídia no golpe e na ditadura.) Promoveu o golpe, saudou a instalação da ditadura e a ruptura da democracia, tratou de acobertar isso como se tivesse sido um movimento democrático, encobriu a repressão fazendo circular as versões falsas da ditadura, elogiou os ditadores, escondeu a resistência democrática, classificou as ações desta resistência como terroristas – em suma, foi instrumento do regime de terror contra a democracia.
Por isso a data é incômoda para a direita, mas especialmente para a imprensa, que quer passar por arauto da democracia, por ombudsman das liberdades politicas. Quem são os Mesquitas, os Frias, os Marinhos, os Civitas, para falar em nome da democracia?
Por isso escondem, envergonhados, seu passado, buscam a falta de memória do povo, para que não saibam seu papel a favor da ditadura e contra a democracia, no momento mais importante da história brasileira. Por isso tem que ressoar sempre nos ouvidos de todos a pergunta: Onde você estava no golpe de 1964?
Escrevo isso a propósito de nossa imprensa comercial, os grandes jornais do Rio, de São Paulo e de Porto Alegre, com referência à política externa do governo Lula no seu afã de mediar junto com o governo turco um acordo pacífico com o Irã a respeito do enriquecimento de urânio para fins não militares. Ler as opiniões emitidas por estes jornais, seja em editoriais seja por seus articulistas, alguns deles, embaixadores da velha guarda, reféns do tempo da guerra-fria, na lógica de amigo-inimigo é simplesmente estarrecedor. O Globo fala em “suicídio diplomático”(24/05) para referir apenas um título até suave. Bem que poderiam colocar como sub-cabeçalho de seus jornais:”Sucursal do Império” pois sua voz é mais eco da voz do senhor imperial do que a voz do jornalismo que objetivamente informa e honestamente opina. Outros, como o Jornal do Brasil, tem seguido uma linha de objetividade, fornecendo os dados principais para os leitores fazerem sua apreciação.
As opiniões revelam pessoas que têm saudades deste senhor imperial internalizado, de quem se comportam como súcubos. Não admitem que o Brasil de Lula ganhe relevância mundial e se transforme num ator político importante como o repetiu, há pouco, no Brasil, o Secretário Geral da ONU, Ban-Ki-moon. Querem vê-lo no lugar que lhe cabe: na periferia colonial, alinhado ao patrão imperial, qual cão amestrado e vira-lata. Posso imaginar o quanto os donos desses jornais sofrem ao ter que aceitar que o Brasil nunca poderá ser o que gostariam que fosse: um Estado-agregado como é Hawai e Porto-Rico. Como não há jeito, a maneira então de atender à voz do senhor internalizado, é difamar, ridicularizar e desqualificar, de forma até antipatriótica, a iniciativa e a pessoa do Presidente. Este notoriamente é reconhecido, mundo afora, como excepcional interlocutor, com grande habilidade nas negociações e dotado de singular força de convencimento.
O povo brasileiro abomina a subserviência aos poderosos e aprecia, às vezes ingenuamente, os estrangeiros e os outros povos. Sente-se orgulhoso de seu Presidente. Ele é um deles, um sobrevivente da grande tribulação, que as elites, tidas por Darcy Ribeiro como das mais reacionárias do mundo, nunca o aceitaram porque pensam que seu lugar não é na Presidência mas na fábrica produzindo para elas. Mas a história quis que fosse Presidente e que comparecesse como um personagem de grande carisma, unindo em sua pessoa ternura para com os humildes e vigor com o qual sustenta suas posições .
O que estamos assistindo é a contraposição de dois paradigmas de fazer diplomacia: uma velha, imperial, intimidatória, do uso da truculência ideológica, econômica e eventualmente militar, diplomacia inimiga da paz e da vida, que nunca trouxe resultados duradouros. E outra, do século XXI, que se dá conta de que vivemos numa fase nova da história, a história coletiva dos povos que se obrigam a conviver harmoniosamente num pequeno planeta, escasso de recursos e semi-devastado. Para esta nova situação impõe-se a diplomacia do diálogo incansável, da negociação do ganha-ganha, dos acertos para além das diferenças. Lula entendeu esta fase planetária. Fez-se protagonista do novo, daquela estratégia que pode efetivamente evitar a maior praga que jamais existiu: a guerra que só destrói e mata. Agora, ou seguiremos esta nova diplomacia, ou nos entredevoraremos. Ou Hillary ou Lula.
A nossa imprensa comercial é obtusa face a essa nova emergência da história. Por isso abomina a diplomacia de Lula
Leonardo Boff é Teólogo e autor de Nossa ressurreição na morte, Vozes 2007
(Transcrito do blog http://www.tijolaco.com/)
<><><><><><><>
"Los hermanos". 20 anos depois
Antonio Lassance (*)
Vinte anos depois daquilo que se considera a certidão de nascimento do Mercosul (o Tratado de Assunção, de 26 de março de 1991), a integração regional promovida pelo bloco mostrou-se benéfica. O principal saldo não é apenas econômico, mas político, social e cultural.
Mesmo sujeito a idas e vindas, o Mercosul atravessou turbulências e manteve-se como um caso de sucesso. Resistiu a crises internacionais graves, como as de 1999 a 2002 (quando o comércio entre os países do bloco reduziu-se à metade, em relação a seus valores de 1997) e a mais recente e maior delas, de 2008. Foi abalado por situações de profunda instabilidade. A principal atingiu o governo de Fernando de la Rúa, na Argentina, como efeito retardado do desmonte do Estado, privatização e desindustrialização provocados pelo governo de Carlos Ménem, combinados à atrapalhada saída brasileira do regime de paridade do dólar e câmbio fixo, no governo FHC.
Surgido na esteira de um processo de aproximação entre Brasil e Argentina, seus dois maiores países, o Mercosul era também uma resposta à União Europeia, ao Nafta (bloco que reúne Estados Unidos, Canadá e México) e à APEC (“Asia-Pacific Economic Cooperation” ou Cooperação Econômica da Ásia e do Pacífico).
A arquitetura da amizade impulsionada com o Mercosul é tratada como um caso exemplar pelo especialista em relações internacionais, Charles Kupchan (da Universidade de Georgetown), em seu recente livro “Como inimigos se tornam amigos” (1). Ele dedica parte do quarto capítulo de seu livro (págs. 122 a 130) a mostrar como se deu a reaproximação entre Brasil e Argentina, nos anos 1980, e que atraiu, nos anos 1990, Paraguai e Uruguai .
Kupchan enquadra o exemplo sulamericano em algumas lições essenciais. Por exemplo, a de que o mundo hobbesiano da competição interestatal, onde impera o dedo no olho e os golpes abaixo da linha de cintura, pode até ser um ponto de partida para a análise das relações internacionais, mas não precisa ser necessariamente seu ponto de chegada. A competição pode ser superada por arranjos sustentáveis cooperativos, em que antigos inimigos passam a se tratar como atores confiáveis.
A segunda lição é a de que a mão invisível do liberalismo é incapaz de produzir tal arquitetura por geração espontânea. Ela deve ser induzida por projetos nacionais e tudo deve começar com um dos atores, em geral o de maior peso, dispondo-se a fazer concessões. É a diplomacia que impulsiona a economia, e não o contrário. Ela constrói o ambiente que produz saldos comerciais e financeiros positivos no longo prazo, facilita a inserção de empresas e enraíza a interdependência econômica.
Uma terceira lição é a de que as ordens sociais entre os países devem se tornar cada vez mais compatíveis, harmônicas. Ordens instáveis e incompatíveis entre si são um fator inibidor do entendimento.
Kupchan destaca ainda, no caso sulamericano e em outros, que o fundamental nos processos de integração é o surgimento de uma identidade entre os países que supere as rivalidades reinantes. O trânsito de pessoas, o entrosamento cultural, a familiaridade com a paisagem dos vizinhos são um ingrediente dos avanços.
Neste sentido, os sinais do Mercosul são muito promissores. O volume do comércio entre os países do bloco (hoje em torno de US$ 30 bilhões por ano) tem crescido , embora percentualmente ao PIB tenha ocorrido uma estagnação momentânea. A situação se explica, estruturalmente, pela assimetria entre os países e, conjunturalmente, pela estratégia de seus países no sentido de diversificarem seus parceiros e não se atrelarem exclusivamente a alguns poucos (2).
Certos números são surpreendentes. Em quatro anos (2006 a 2009), o número de brasileiros que estudam a língua espanhola saltou de um para mais de cinco milhões (dados do Instituto Cervantes). A razão foi a lei sancionada pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2005, que obrigou a oferta do Espanhol no ensino médio.
Praticamente um em cada cinco turistas que visitam o Brasil é argentino. Em contrapartida, em 2010 quase dobrou a quantidade de brasileiros que visitaram a capital portenha.
Os turistas vindos do Mercosul representam 70% do fluxo receptivo do Uruguai, 30% do fluxo receptivo da Argentina, mesmo patamar do Brasil, sendo baixo apenas no Paraguai (pouco mais de 10%) (3).
O projeto de integração é um desafio de grande envergadura e tem obstáculos consideráveis. Grande parte deles é resultante de seus pecados originais. A vertente comercial tornou-se hipertrofiada ao longo de 20 anos, enquanto persiste um déficit de participação democrática e representação política, com um Parlasul que ainda está por se estruturar plenamente. O Brasil, infelizmente, tem negligenciado e protelado esse passo.
Por outro lado, a entrada da Venezuela, que significaria a expansão do mercado comum, tem sido sistematicamente adiada pelo Paraguai, com argumentos que não convencem sequer os opositores venezuelanos do presidente Hugo Chávez, que defendem a entrada de seu país no bloco.
Nos últimos anos, uma agenda intensa de políticas públicas tem se construído setorialmente, nas áreas da agricultura familiar, desenvolvimento social, educação, saúde, infraestrutura, turismo, segurança e defesa, dentre outras. Isso permite vislumbrar ações que contribuam para eliminar a pobreza, reduzir as assimetrias existentes, construir uma infraestrutura que permita ampliar o comércio na região e aprofundar a democracia, desafios destacados recentemente pelo embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, Alto Representante-Geral do Mercosul (Agência Senado, 24/3/2011).
No momento atual, o Mercosul reúne mais razões de otimismo que os demais blocos. A União Europeia, sob crise aguda, vive um de seus piores momentos. O Nafta acentuou os problemas da economia mexicana (o comércio que mais cresce com seu vizinho, do outro lado do Rio Grande, é o de drogas), e os Estados Unidos patinam para superar a recessão. A APEC, além de muito heterogênea e pouco institucionalizada, pouco avançou diante da competição entre seus países, que disputam muitas vezes o mesmo espaço. A China, por exemplo, tem crescido, além de seus méritos próprios, sobre um declínio relativo do Japão.
Há 20 anos, quem seria capaz de dizer que se chegaria tão longe?
Referências:
(1) ”KUPCHAN, Charles A. How Enemies Become Friends. Princeton: Princeton University, march 2010)
(2) SOUZA, André de Mello e Souza, OLIVEIRA, Ivan Tiago Machado e GONÇALVES, Samo Sérgio. Integrando desiguais: assimetrias estruturais e políticas de integração no Mercosul. Rio de Janeiro: IPEA, março de 2010. Texto de Discussão no. 1477.
(3) TOMAZONI, Edegar Luis. Turismo como Desafio do Desenvolvimento Econômico do Mercosul na Era da Globalização. Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 2008.
Mesmo sujeito a idas e vindas, o Mercosul atravessou turbulências e manteve-se como um caso de sucesso. Resistiu a crises internacionais graves, como as de 1999 a 2002 (quando o comércio entre os países do bloco reduziu-se à metade, em relação a seus valores de 1997) e a mais recente e maior delas, de 2008. Foi abalado por situações de profunda instabilidade. A principal atingiu o governo de Fernando de la Rúa, na Argentina, como efeito retardado do desmonte do Estado, privatização e desindustrialização provocados pelo governo de Carlos Ménem, combinados à atrapalhada saída brasileira do regime de paridade do dólar e câmbio fixo, no governo FHC.
Surgido na esteira de um processo de aproximação entre Brasil e Argentina, seus dois maiores países, o Mercosul era também uma resposta à União Europeia, ao Nafta (bloco que reúne Estados Unidos, Canadá e México) e à APEC (“Asia-Pacific Economic Cooperation” ou Cooperação Econômica da Ásia e do Pacífico).
A arquitetura da amizade impulsionada com o Mercosul é tratada como um caso exemplar pelo especialista em relações internacionais, Charles Kupchan (da Universidade de Georgetown), em seu recente livro “Como inimigos se tornam amigos” (1). Ele dedica parte do quarto capítulo de seu livro (págs. 122 a 130) a mostrar como se deu a reaproximação entre Brasil e Argentina, nos anos 1980, e que atraiu, nos anos 1990, Paraguai e Uruguai .
Kupchan enquadra o exemplo sulamericano em algumas lições essenciais. Por exemplo, a de que o mundo hobbesiano da competição interestatal, onde impera o dedo no olho e os golpes abaixo da linha de cintura, pode até ser um ponto de partida para a análise das relações internacionais, mas não precisa ser necessariamente seu ponto de chegada. A competição pode ser superada por arranjos sustentáveis cooperativos, em que antigos inimigos passam a se tratar como atores confiáveis.
A segunda lição é a de que a mão invisível do liberalismo é incapaz de produzir tal arquitetura por geração espontânea. Ela deve ser induzida por projetos nacionais e tudo deve começar com um dos atores, em geral o de maior peso, dispondo-se a fazer concessões. É a diplomacia que impulsiona a economia, e não o contrário. Ela constrói o ambiente que produz saldos comerciais e financeiros positivos no longo prazo, facilita a inserção de empresas e enraíza a interdependência econômica.
Uma terceira lição é a de que as ordens sociais entre os países devem se tornar cada vez mais compatíveis, harmônicas. Ordens instáveis e incompatíveis entre si são um fator inibidor do entendimento.
Kupchan destaca ainda, no caso sulamericano e em outros, que o fundamental nos processos de integração é o surgimento de uma identidade entre os países que supere as rivalidades reinantes. O trânsito de pessoas, o entrosamento cultural, a familiaridade com a paisagem dos vizinhos são um ingrediente dos avanços.
Neste sentido, os sinais do Mercosul são muito promissores. O volume do comércio entre os países do bloco (hoje em torno de US$ 30 bilhões por ano) tem crescido , embora percentualmente ao PIB tenha ocorrido uma estagnação momentânea. A situação se explica, estruturalmente, pela assimetria entre os países e, conjunturalmente, pela estratégia de seus países no sentido de diversificarem seus parceiros e não se atrelarem exclusivamente a alguns poucos (2).
Certos números são surpreendentes. Em quatro anos (2006 a 2009), o número de brasileiros que estudam a língua espanhola saltou de um para mais de cinco milhões (dados do Instituto Cervantes). A razão foi a lei sancionada pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2005, que obrigou a oferta do Espanhol no ensino médio.
Praticamente um em cada cinco turistas que visitam o Brasil é argentino. Em contrapartida, em 2010 quase dobrou a quantidade de brasileiros que visitaram a capital portenha.
Os turistas vindos do Mercosul representam 70% do fluxo receptivo do Uruguai, 30% do fluxo receptivo da Argentina, mesmo patamar do Brasil, sendo baixo apenas no Paraguai (pouco mais de 10%) (3).
O projeto de integração é um desafio de grande envergadura e tem obstáculos consideráveis. Grande parte deles é resultante de seus pecados originais. A vertente comercial tornou-se hipertrofiada ao longo de 20 anos, enquanto persiste um déficit de participação democrática e representação política, com um Parlasul que ainda está por se estruturar plenamente. O Brasil, infelizmente, tem negligenciado e protelado esse passo.
Por outro lado, a entrada da Venezuela, que significaria a expansão do mercado comum, tem sido sistematicamente adiada pelo Paraguai, com argumentos que não convencem sequer os opositores venezuelanos do presidente Hugo Chávez, que defendem a entrada de seu país no bloco.
Nos últimos anos, uma agenda intensa de políticas públicas tem se construído setorialmente, nas áreas da agricultura familiar, desenvolvimento social, educação, saúde, infraestrutura, turismo, segurança e defesa, dentre outras. Isso permite vislumbrar ações que contribuam para eliminar a pobreza, reduzir as assimetrias existentes, construir uma infraestrutura que permita ampliar o comércio na região e aprofundar a democracia, desafios destacados recentemente pelo embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, Alto Representante-Geral do Mercosul (Agência Senado, 24/3/2011).
No momento atual, o Mercosul reúne mais razões de otimismo que os demais blocos. A União Europeia, sob crise aguda, vive um de seus piores momentos. O Nafta acentuou os problemas da economia mexicana (o comércio que mais cresce com seu vizinho, do outro lado do Rio Grande, é o de drogas), e os Estados Unidos patinam para superar a recessão. A APEC, além de muito heterogênea e pouco institucionalizada, pouco avançou diante da competição entre seus países, que disputam muitas vezes o mesmo espaço. A China, por exemplo, tem crescido, além de seus méritos próprios, sobre um declínio relativo do Japão.
Há 20 anos, quem seria capaz de dizer que se chegaria tão longe?
Referências:
(1) ”KUPCHAN, Charles A. How Enemies Become Friends. Princeton: Princeton University, march 2010)
(2) SOUZA, André de Mello e Souza, OLIVEIRA, Ivan Tiago Machado e GONÇALVES, Samo Sérgio. Integrando desiguais: assimetrias estruturais e políticas de integração no Mercosul. Rio de Janeiro: IPEA, março de 2010. Texto de Discussão no. 1477.
(3) TOMAZONI, Edegar Luis. Turismo como Desafio do Desenvolvimento Econômico do Mercosul na Era da Globalização. Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 2008.
(*)Antonio Lassance é pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e professor de Ciência Política. As opiniões expressas neste artigo não refletem necessariamente opiniões do Instituto.
(Transcrito do site http://www.cartamaior.com.br/)
<><><><><><><><><><><><><><><><><>
1964: data incômoda para a direita
Emir Sader
<><><><><><><><><><><><><><><><><>
1964: data incômoda para a direita
Emir Sader
A cada ano, quando nos aproximamos da data do golpe de 1964, uma sensação incômoda se apossa da direita – dos partidos, políticos e dos seus meios de comunicação. O que fazer? Que atitude tomar? Fingir que não acontece nada, abordar de maneira “objetiva”, como se eles não tivessem estado comprometidos com a brutal ruptura da democracia no momento mais negativo da história brasileira ou abordar como se tivessem sido vítimas do regime que ajudaram a criar?
Difícil e incômoda a situação, porque a imprensa participou ativamente, como militância politica, da preparação do golpe, ajudando a criar um falso clima tanto de que o Brasil estivesse sob risco iminente de uma ruptura da democracia por parte da esquerda, como do falso isolamento do governo Jango. Pregaram o golpe, mobilizaram para as Marchas da Família, com Deus, pela Liberdade, convocadas pela Igreja, tentaram passar a ideia de que se tratava de um movimento democrático contra riscos de ditadura e promoveram a maior ruptura da democracia que o Brasil conheceu e a chegada ao poder da pior ditadura que conhecemos.
Na guerra fria, a imprensa brasileira esteve plenamente alinhada com a politica norteamericana da luta contra a “subversão” contra o “comunismo”, isto é, com o radicalismo de direita, com as posições obscurantistas e contrárias à democracia, estabelecida com grande esforço no Brasil. Estiveram em todas as tentativas de golpe contra Getúlio e contra JK. Em suma, a posição golpista da imprensa brasileira em 1964 não foi um erro ocasional, um acidente de percurso, mas a decorrência natural do alinhamento na guerra fria com as forças pró-EUA e que se opuseram com todo empenho ao processo de democratização que o Brasil viveu na década de 1950.
Deve prevalecer um misto de atitude envergonhada de não dar muito destaque ao tema, com matérias que pretendam renovar a ideia equivocada de que a imprensa foi vitima da ditadura – quando foi algoz, aliado, fator no desencadeamento do golpe e da ditadura. (O livro de Beatriz Kushnir, Cães de guarda, da Boitempo, continua a ser leitura indispensável para uma visão real do papel da mídia no golpe e na ditadura.) Promoveu o golpe, saudou a instalação da ditadura e a ruptura da democracia, tratou de acobertar isso como se tivesse sido um movimento democrático, encobriu a repressão fazendo circular as versões falsas da ditadura, elogiou os ditadores, escondeu a resistência democrática, classificou as ações desta resistência como terroristas – em suma, foi instrumento do regime de terror contra a democracia.
Por isso a data é incômoda para a direita, mas especialmente para a imprensa, que quer passar por arauto da democracia, por ombudsman das liberdades politicas. Quem são os Mesquitas, os Frias, os Marinhos, os Civitas, para falar em nome da democracia?
Por isso escondem, envergonhados, seu passado, buscam a falta de memória do povo, para que não saibam seu papel a favor da ditadura e contra a democracia, no momento mais importante da história brasileira. Por isso tem que ressoar sempre nos ouvidos de todos a pergunta: Onde você estava no golpe de 1964?
(Transcrito do site http://www.cartamaior.com.br/)
Nenhum comentário:
Postar um comentário