O medo, o carro e o isolamento social
Segunda-feira foi mais um dia terrível em São Paulo. Chuva e caos, caos e chuva. Atrasei o quanto pude a hora de deixar o trabalho e voltar pra casa (de carro). Enquanto esperava, vi na TV – pela enésima vez – a cena chocante do sujeito que atropelou ciclistas em Porto Alegre. Pela primeira vez, em vez de olhar “só” para os ciclistas barbaramente abalroados, prestei atenção também no olhar do motorista, que deu entrevista à saída da delegacia. Era o olhar do medo.
Ele alega que jogou o carro em cima dos ciclistas porque ficou “com medo”, ao ser cercado pelas bicicletas na rua. Pode ser bobagem, pode ser só uma desculpa tola do agressor. Mas, pela primeira vez, tentei imaginar o que moveu esse homem no gesto tresloucado.
O carro dá-nos a sensação de autonomia e liberdade. O carro é uma ilha em que os mais ou menos ricos se escondem das agruras do transporte coletivo, e os muito ricos se escondem também da sensação de insegurança. Carros blindados, ilhas de segurança. Carros sem blindagem, ilhas de segurança também.
Quanto mais nos afundamos em bancos confortáveis, longe do contato (animal, quase insuportável para alguns) com outros seres nas cidades, mais medo temos de ver interrompida a doce sensação do isolamento e do conforto. É como o sujeito que reage mal-humorado quando alguém o acorda daquele soninho bom depois do almoço: como ousam tirar-me de minha zona de conforto?
Pior: como ousam andar de bicicleta, como ousam estragar minha fantasia de que só o carro nos salva e nos salvará da barbárie?
É o medo, o medo velho de guerra. O medo que se espalha feito epidemia pelas grande cidades. O motorista tresloucado em Porto Alegre foi algoz, sem dúvida. Mas ele é vítima desse medo atroz que isola a classe média em carros, condomínios, escolas particulraes e pacotes de viagem insípidos.
Penso nisso quando entro no meu próprio carro, por volta de 10 e meia da noite, e tomo o rumo da zona sul de São Paulo. Inundações, semáforos parados, trens e metrô com problemas: tudo isso faz com que o caos habitual do fim da tarde se prolongue até quase meia-noite. E lá vou eu exercitando o velho esporte paulistano: cortar caminho, buscar a rua menos entupida. Um quarteirão pra cá, outro pra lá. Avança pro Largo do Arouche, volta pra Amaral Gurgel, sobe a Consolação (porque a ligação leste-oeste está impraticável; mas que diabos!).
A subida da Consolação me coloca frente a frente com multidões nos pontos de ônibus. O ônibus não passa, e o povo fica ali. Cai uma garoa fina. Não nego que sinto um alívio besta por estar sozinho no carro (onde caberiam cinco ou seis pessoas), com ar-condicionado e câmbio automático. A doce sensação de se sentir protegido. Mais ou menos como estar em casa quando cai um temporal: ah, que bom que eu não estou lá fora!
Mas sabe-se lá porque tenho um momento de (tímida) loucura. Em vez de jogar o carro sobre os malditos pedestres amontoados na calçada (seria uma solução para o mal-estar que toma conta de mim), tenho um impulso ainda mais idiota: paro na frente de um daqueles pontos, abro o vidro e começo a balbuciar alguma coisa, como: “alguém quer carona pra zona sul”. As pessoas (quase todos jovens a sair do trabalho ou do turno da noite em faculdades particulares) me olham de um jeito estranho: “quem é o sujeito de terno e gravata que abre a janela do carro no meio do caos, e oferece carona?”.
Em São Paulo, esse meu gesto não faz o menor sentido. O medo (ou culpa?) por me sentir isolado dentro do carro fez-me oferecer carona. Se tivesse lançado o carro na calçada, ao menos poderiam me chamar de “louco”, “malfeitor”. Mas ofereci carona. Na rua da Consolação! Isso não faz o menor sentido.
Ninguém respondeu nada. Percebi, rapidamente, que provavelmente fora confundido com um daqueles tiozinhos tarados a “caçar” moças (ou moços) pela rua. Fechei o vidro, e segui o caminho tortuoso rumo à zona sul.
Sozinho.
O medo move aqueles que se escondem atrás dos vidros dos carros. Move também os que se expõem à chuva e ao caos no meio da cidade turbulenta. O carro é símbolo do medo e do isolamento – o que aliás não é novidade nenhuma.
Medo e isolamento que podem ter feito o sujeito amalucado lançar o carro sobre os ciclistas de Porto Alegre. Medo e isolamento que fazem com que eu me sinta ridículo (e seja visto como um tiozinho ridículo) ao oferecer carona para paulistanos – ainda mais amedrontados que eu – numa avenida qualquer dessa cidade grandiosamente desumana.
Chego em casa perto de meia-noite. A família dorme em paz. Tento me convencer de que esses pensamentos todos são idiotices: melhor ter um carro, do que ficar lá à espera de um ônibus que não vem. Melhor chegar em casa meia-noite do que duas da manhã.
Hum…
Tento ler um livro de Hobsbawn. Mas meus pensamentos hoje precisam de menos Marx e de mais Freud. Durmo, exausto.
Ele alega que jogou o carro em cima dos ciclistas porque ficou “com medo”, ao ser cercado pelas bicicletas na rua. Pode ser bobagem, pode ser só uma desculpa tola do agressor. Mas, pela primeira vez, tentei imaginar o que moveu esse homem no gesto tresloucado.
O carro dá-nos a sensação de autonomia e liberdade. O carro é uma ilha em que os mais ou menos ricos se escondem das agruras do transporte coletivo, e os muito ricos se escondem também da sensação de insegurança. Carros blindados, ilhas de segurança. Carros sem blindagem, ilhas de segurança também.
Quanto mais nos afundamos em bancos confortáveis, longe do contato (animal, quase insuportável para alguns) com outros seres nas cidades, mais medo temos de ver interrompida a doce sensação do isolamento e do conforto. É como o sujeito que reage mal-humorado quando alguém o acorda daquele soninho bom depois do almoço: como ousam tirar-me de minha zona de conforto?
Pior: como ousam andar de bicicleta, como ousam estragar minha fantasia de que só o carro nos salva e nos salvará da barbárie?
É o medo, o medo velho de guerra. O medo que se espalha feito epidemia pelas grande cidades. O motorista tresloucado em Porto Alegre foi algoz, sem dúvida. Mas ele é vítima desse medo atroz que isola a classe média em carros, condomínios, escolas particulraes e pacotes de viagem insípidos.
Penso nisso quando entro no meu próprio carro, por volta de 10 e meia da noite, e tomo o rumo da zona sul de São Paulo. Inundações, semáforos parados, trens e metrô com problemas: tudo isso faz com que o caos habitual do fim da tarde se prolongue até quase meia-noite. E lá vou eu exercitando o velho esporte paulistano: cortar caminho, buscar a rua menos entupida. Um quarteirão pra cá, outro pra lá. Avança pro Largo do Arouche, volta pra Amaral Gurgel, sobe a Consolação (porque a ligação leste-oeste está impraticável; mas que diabos!).
A subida da Consolação me coloca frente a frente com multidões nos pontos de ônibus. O ônibus não passa, e o povo fica ali. Cai uma garoa fina. Não nego que sinto um alívio besta por estar sozinho no carro (onde caberiam cinco ou seis pessoas), com ar-condicionado e câmbio automático. A doce sensação de se sentir protegido. Mais ou menos como estar em casa quando cai um temporal: ah, que bom que eu não estou lá fora!
Mas sabe-se lá porque tenho um momento de (tímida) loucura. Em vez de jogar o carro sobre os malditos pedestres amontoados na calçada (seria uma solução para o mal-estar que toma conta de mim), tenho um impulso ainda mais idiota: paro na frente de um daqueles pontos, abro o vidro e começo a balbuciar alguma coisa, como: “alguém quer carona pra zona sul”. As pessoas (quase todos jovens a sair do trabalho ou do turno da noite em faculdades particulares) me olham de um jeito estranho: “quem é o sujeito de terno e gravata que abre a janela do carro no meio do caos, e oferece carona?”.
Em São Paulo, esse meu gesto não faz o menor sentido. O medo (ou culpa?) por me sentir isolado dentro do carro fez-me oferecer carona. Se tivesse lançado o carro na calçada, ao menos poderiam me chamar de “louco”, “malfeitor”. Mas ofereci carona. Na rua da Consolação! Isso não faz o menor sentido.
Ninguém respondeu nada. Percebi, rapidamente, que provavelmente fora confundido com um daqueles tiozinhos tarados a “caçar” moças (ou moços) pela rua. Fechei o vidro, e segui o caminho tortuoso rumo à zona sul.
Sozinho.
O medo move aqueles que se escondem atrás dos vidros dos carros. Move também os que se expõem à chuva e ao caos no meio da cidade turbulenta. O carro é símbolo do medo e do isolamento – o que aliás não é novidade nenhuma.
Medo e isolamento que podem ter feito o sujeito amalucado lançar o carro sobre os ciclistas de Porto Alegre. Medo e isolamento que fazem com que eu me sinta ridículo (e seja visto como um tiozinho ridículo) ao oferecer carona para paulistanos – ainda mais amedrontados que eu – numa avenida qualquer dessa cidade grandiosamente desumana.
Chego em casa perto de meia-noite. A família dorme em paz. Tento me convencer de que esses pensamentos todos são idiotices: melhor ter um carro, do que ficar lá à espera de um ônibus que não vem. Melhor chegar em casa meia-noite do que duas da manhã.
Hum…
Tento ler um livro de Hobsbawn. Mas meus pensamentos hoje precisam de menos Marx e de mais Freud. Durmo, exausto.
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