Notícias internacionais têm pauta única
Laurindo Lalo Leal Filho(*)
Quando a revolta árabe chegou à Líbia, fornecedora de grande parte do petróleo consumido na Europa, a batalha da informação tornou-se mais acirrada.
Notícias falsas começaram a circular pelas agências internacionais de notícias e por algumas redes de televisão. No Brasil foram reproduzidas sem crítica.
Duas delas:
1) O presidente Muhamar Kadaffi recebe asilo político da Venezuela e segue para Caracas.
2) Kadaffi negocia com rebeldes sua saída do pais. Quer levar a família e grande quantia em dinheiro.
Mentiras logo esquecidas. Quando o repórter da Telesur relatou, ao chegar a Trípoli, que a situação era de calma na cidade foi ridicularizado pela Folha de S.Paulo e por uma de suas articulistas, até com chamada de capa.
Aquela altura toda a corrente majoritária da mídia internacional, acompanhada pela brasileira, dava como certa uma rápida vitória dos rebeldes.
A Telesur mostrava que na Líbia a situação era diferente do que havia ocorrido na Tunísia ou no Egito. As manifestações de massa não tinham chegado ao centro do poder e poderia haver um equilíbrio maior entre os lados em conflito, o que acabou se confirmando.
A atuação da Telesur, ao lado da Al-Jazira e outras emissoras árabes, mostra a importância de uma diversidade maior no fluxo internacional de informações.
As agências de notícias tradicionais foram criadas como empreendimentos para a divulgação de informações financeiras em meados do século 19.
A Reuters, de 1851, esteve durante muito tempo a serviço da família Rothschild, interessada em informações rápidas e precisas sobre os mercados financeiro e mercantil da Europa.
Apoiadas pelos governos dos países onde tinham sede, essas agências nunca deixaram de ver o mundo segundo a ótica peculiar desses mesmos países.
Tanto é que a UNESCO, nos anos 1970/80, impulsionou o debate por uma Nova Ordem da Informação e da Comunicação interrompido com ascensão dos governos Reagan, nos EUA, e Thatcher, no Reino Unido.
Perceberam esses governantes que uma “nova ordem” informativa implicaria num enfraquecimento do projeto neoliberal, em fase inicial de implantação no mundo.
A sonhada circulação de notícias sul-sul, capaz de quebrar o fluxo informativo norte-sul, foi adiada. EUA e Reino Unido chegaram a cortar suas contribuições financeiras para a UNESCO como forma de pressioná-la a deixar de lado o debate sobre a comunicação.
E foi o que aconteceu. Os anos 1990 assistiram a um perfeito entrosamento entre a ordem econômica e a ordem informativa, alinhadas no projeto neoliberal.
Mantinha-se praticamente intacto o fluxo informativo internacional implantado no século 19 pelas três grandes agencias internacionais européias (Reuters, Wolff e Havas) e, associado no século 20, às estadunidenses AP e UPI.
A centralidade de poder era tão grande que notícias da Bolívia só chegavam ao Brasil depois de passar por Nova York, Paris ou Londres.
Se a UNESCO não conseguiu romper essa lógica, o surgimento de novas tecnologias da informação e a visão estratégica de alguns governos, como os da Venezuela e do Qatar, puseram em cheque a ordem estabelecida.
No Egito, relata Paulo Cabral, ex-correspondente da BBC Brasil no Cairo, as antenas parabólicas estão em quase todos os domicílios captando essencialmente emissoras árabes como a Al-Jazira.
Suas informações – ao longo de muito tempo – serviram de caldo de cultura para desencadear a revolta, ampliada a seguir pela redes na internet.
A Telesur, por sua vez, vem demonstrando a importância da existência de pautas alternativas às das grandes agências.
Como exemplos pode-se citar as cobertura do golpe de Estado contra o presidente Zelaya, em Honduras; as libertações de reféns pelas Farc na Colombia e mesmo as reuniões de chefes de Estado sulamericanos, tão maltratadas pela mídia tradicional.
Infelizmente, no entanto, imagens da Telesur e da Al-Jazira quase não chegam até nós. No caso da emissora latina é necessária a compra de um decodificador, ligado a uma antena direcionada para o satélite por onde trafegam os seus sinais televisivos.
Mas existem dois caminhos bem mais simples: sua inclusão no menu das operadoras de TV por assinatura e a utilização dos seus serviços pelas emissoras brasileiras nos telejornais, como o que é feito com CNN, Reuters e outras.
Isso só não ocorre porque as operadoras de canais fechados e as TVs abertas negam-se a veicular visões de mundo desalinhadas do pensamento único.
E mesmo emissoras públicas, com poucas exceções, preferem seguir a pauta diária estabelecida pelas grandes agências internacionais, curvando-se ao modelo em vigor no mundo desde 1835, quando Charles Havas fundou a primeira agência internacional de notícias na França.
Notícias falsas começaram a circular pelas agências internacionais de notícias e por algumas redes de televisão. No Brasil foram reproduzidas sem crítica.
Duas delas:
1) O presidente Muhamar Kadaffi recebe asilo político da Venezuela e segue para Caracas.
2) Kadaffi negocia com rebeldes sua saída do pais. Quer levar a família e grande quantia em dinheiro.
Mentiras logo esquecidas. Quando o repórter da Telesur relatou, ao chegar a Trípoli, que a situação era de calma na cidade foi ridicularizado pela Folha de S.Paulo e por uma de suas articulistas, até com chamada de capa.
Aquela altura toda a corrente majoritária da mídia internacional, acompanhada pela brasileira, dava como certa uma rápida vitória dos rebeldes.
A Telesur mostrava que na Líbia a situação era diferente do que havia ocorrido na Tunísia ou no Egito. As manifestações de massa não tinham chegado ao centro do poder e poderia haver um equilíbrio maior entre os lados em conflito, o que acabou se confirmando.
A atuação da Telesur, ao lado da Al-Jazira e outras emissoras árabes, mostra a importância de uma diversidade maior no fluxo internacional de informações.
As agências de notícias tradicionais foram criadas como empreendimentos para a divulgação de informações financeiras em meados do século 19.
A Reuters, de 1851, esteve durante muito tempo a serviço da família Rothschild, interessada em informações rápidas e precisas sobre os mercados financeiro e mercantil da Europa.
Apoiadas pelos governos dos países onde tinham sede, essas agências nunca deixaram de ver o mundo segundo a ótica peculiar desses mesmos países.
Tanto é que a UNESCO, nos anos 1970/80, impulsionou o debate por uma Nova Ordem da Informação e da Comunicação interrompido com ascensão dos governos Reagan, nos EUA, e Thatcher, no Reino Unido.
Perceberam esses governantes que uma “nova ordem” informativa implicaria num enfraquecimento do projeto neoliberal, em fase inicial de implantação no mundo.
A sonhada circulação de notícias sul-sul, capaz de quebrar o fluxo informativo norte-sul, foi adiada. EUA e Reino Unido chegaram a cortar suas contribuições financeiras para a UNESCO como forma de pressioná-la a deixar de lado o debate sobre a comunicação.
E foi o que aconteceu. Os anos 1990 assistiram a um perfeito entrosamento entre a ordem econômica e a ordem informativa, alinhadas no projeto neoliberal.
Mantinha-se praticamente intacto o fluxo informativo internacional implantado no século 19 pelas três grandes agencias internacionais européias (Reuters, Wolff e Havas) e, associado no século 20, às estadunidenses AP e UPI.
A centralidade de poder era tão grande que notícias da Bolívia só chegavam ao Brasil depois de passar por Nova York, Paris ou Londres.
Se a UNESCO não conseguiu romper essa lógica, o surgimento de novas tecnologias da informação e a visão estratégica de alguns governos, como os da Venezuela e do Qatar, puseram em cheque a ordem estabelecida.
No Egito, relata Paulo Cabral, ex-correspondente da BBC Brasil no Cairo, as antenas parabólicas estão em quase todos os domicílios captando essencialmente emissoras árabes como a Al-Jazira.
Suas informações – ao longo de muito tempo – serviram de caldo de cultura para desencadear a revolta, ampliada a seguir pela redes na internet.
A Telesur, por sua vez, vem demonstrando a importância da existência de pautas alternativas às das grandes agências.
Como exemplos pode-se citar as cobertura do golpe de Estado contra o presidente Zelaya, em Honduras; as libertações de reféns pelas Farc na Colombia e mesmo as reuniões de chefes de Estado sulamericanos, tão maltratadas pela mídia tradicional.
Infelizmente, no entanto, imagens da Telesur e da Al-Jazira quase não chegam até nós. No caso da emissora latina é necessária a compra de um decodificador, ligado a uma antena direcionada para o satélite por onde trafegam os seus sinais televisivos.
Mas existem dois caminhos bem mais simples: sua inclusão no menu das operadoras de TV por assinatura e a utilização dos seus serviços pelas emissoras brasileiras nos telejornais, como o que é feito com CNN, Reuters e outras.
Isso só não ocorre porque as operadoras de canais fechados e as TVs abertas negam-se a veicular visões de mundo desalinhadas do pensamento único.
E mesmo emissoras públicas, com poucas exceções, preferem seguir a pauta diária estabelecida pelas grandes agências internacionais, curvando-se ao modelo em vigor no mundo desde 1835, quando Charles Havas fundou a primeira agência internacional de notícias na França.
(*)Laurindo Lalo Leal Filho, sociólogo e jornalista, é professor de Jornalismo da ECA-USP. É autor, entre outros, de “A TV sob controle – A resposta da sociedade ao poder da televisão” (Summus Editorial). Twitter: @lalolealfilho.
(Transcrito do site http://www.cartamaior.com.br/)
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As mulheres não são homens
Boaventura de Sousa Santos(*)
No passado dia 8 de março celebrou-se o Dia Internacional da
Mulher. Os dias ou anos internacionais não são, em geral, celebrações.
São, pelo contrário, modos de assinalar que há pouco para celebrar e
muito para denunciar e transformar. Não há natureza humana assexuada;
há homens e mulheres. Falar de natureza humana sem falar na diferença
sexual é ocultar que a “metade” das mulheres vale menos que a dos
homens. Sob formas que variam consoante o tempo e o lugar, as
mulheres têm sido consideradas como seres cuja humanidade é
problemática (mais perigosa ou menos capaz) quando comparada com a
dos homens. À dominação sexual que este preconceito gera chamamos
patriarcado e ao senso comum que o alimenta e reproduz, cultura
patriarcal.
A persistência histórica desta cultura é tão forte que mesmo
nas regiões do mundo em que ela foi oficialmente superada pela
consagração constitucional da igualdade sexual, as práticas quotidianas
das instituições e das relações sociais continuam a reproduzir o
preconceito e a desigualdade. Ser feminista hoje significa reconhecer que
tal discriminação existe e é injusta e desejar activamente que ela seja
eliminada. Nas actuais condições históricas, falar de natureza humana
como se ela fosse sexualmente indiferente, seja no plano filosófico seja no
plano político, é pactuar com o patriarcado.
A cultura patriarcal vem de longe e atravessa tanto a cultura
ocidental como as culturas africanas, indígenas e islâmicas. Para
Aristóteles, a mulher é um homem mutilado e para São Tomás de Aquino,
sendo o homem o elemento activo da procriação, o nascimento de uma
mulher é sinal da debilidade do procriador. Esta cultura, ancorada por
vezes em textos sagrados (Bíblia e Corão), tem estado sempre ao serviço
da economia política dominante que, nos tempos modernos, tem sido o
capitalismo e o colonialismo. Em Three Guineas (1938), em resposta a um pedido de apoio financeiro para o esforço de guerra, Virginia Woolf
recusa, lembrando a secundarização das mulheres na nação, e afirma
provocatoriamente: “Como mulher, não tenho país. Como mulher, não
quero ter país. Como mulher, o meu país é o mundo inteiro”.
Durante a ditadura portuguesa, as Novas Cartas Portuguesas publicadas em 1972 por Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, denunciavam o patriarcado como parte da estrutura fascista que
sustentava a guerra colonial em África. "Angola é nossa" era o correlato de
"as mulheres são nossas (de nós, homens)" e no sexo delas se defendia a
honra deles. O livro foi imediatamente apreendido porque justamente
percebido como um libelo contra a guerra colonial e as autoras só não
foram julgadas porque entretanto ocorreu a Revolução dos Cravos em 25
de Abril de 1974.
A violência que a opressão sexual implica ocorre sob duas formas,
hardcore e softcore. A versão hardcore é o catálogo da vergonha e do
horror do mundo. Em Portugal, morreram 43 mulheres em 2010, vítimas
de violência doméstica. Na Cidade Juarez (México) foram assassinadas nos
últimos anos 427 mulheres, todas jovens e pobres, trabalhadoras nas
fábricas do capitalismo selvagem, as maquiladoras, um crime organizado
hoje conhecido por femicídio. Em vários países de África, continua a
praticar-se a mutilação genital. Na Arábia Saudita, até há pouco, as
mulheres nem sequer tinham certificado de nascimento. No Irão, a vida de
uma mulher vale metade da do homem num acidente de viação; em
tribunal, o testemunho de um homem vale tanto quanto o de duas
mulheres; a mulher pode ser apedrejada até à morte em caso de
adultério, prática, aliás, proibida na maioria dos países de cultura islâmica.
A versão softcore é insidiosa e silenciosa e ocorre no seio das famílias,
instituições e comunidades, não porque as mulheres sejam inferiores mas,
pelo contrário, porque são consideradas superiores no seu espírito de
abnegação e na sua disponibilidade para ajudar em tempos difíceis.
Porque é uma disposição natural. não há sequer que lhes perguntar se
aceitam os encargos ou sob que condições. Em Portugal, por exemplo, os
cortes nas despesas sociais do Estado actualmente em curso vitimizam em
particular as mulheres. As mulheres são as principais provedoras do
cuidado a dependentes (crianças, velhos, doentes, pessoas com
deficiência). Se, com o encerramento dos hospitais psiquiátricos, os
doentes mentais são devolvidos às famílias, o cuidado fica a cargo das
mulheres. A impossibilidade de conciliar o trabalho remunerado com o
trabalho doméstico faz com que Portugal tenha um dos valores mais
baixos de fecundidade do mundo. Cuidar dos vivos torna-se incompatível
com desejar mais vivos.
Mas a cultura patriarcal tem, em certos contextos, uma outra
dimensão particularmente perversa: a de criar a ideia na opinião pública
que as mulheres são oprimidas e, como tal, vítimas indefesas e silenciosas.
Este estereótipo torna possível ignorar ou desvalorizar as lutas de
resistência e a capacidade de inovação política das mulheres. É assim que
se ignora o papel fundamental das mulheres na revolução do Egipto ou na
luta contra a pilhagem da terra na Índia; a acção política das mulheres que
lideram os municípios em tantas pequenas cidades africanas e a sua luta
contra o machismo dos lideres partidários que bloqueiam o acesso das
mulheres ao poder político nacional; a luta incessante e cheia de riscos
pela punição dos criminosos levada a cabo pelas mães das jovens
assassinadas em Cidade Juarez; as conquistas das mulheres indígenas e
islâmicas na luta pela igualdade e pelo respeito da diferença,
transformando por dentro as culturas a que pertencem; as práticas
inovadoras de defesa da agricultura familiar e das sementes tradicionais
das mulheres do Quénia e de tantos outros países de África; a resposta
das mulheres palestinianas quando perguntadas por auto-convencidas
feministas europeias sobre o uso de contraceptivos: “na Palestina, ter
filhos é lutar contra a limpeza étnica que Israel impõe ao nosso povo”.
Mulher. Os dias ou anos internacionais não são, em geral, celebrações.
São, pelo contrário, modos de assinalar que há pouco para celebrar e
muito para denunciar e transformar. Não há natureza humana assexuada;
há homens e mulheres. Falar de natureza humana sem falar na diferença
sexual é ocultar que a “metade” das mulheres vale menos que a dos
homens. Sob formas que variam consoante o tempo e o lugar, as
mulheres têm sido consideradas como seres cuja humanidade é
problemática (mais perigosa ou menos capaz) quando comparada com a
dos homens. À dominação sexual que este preconceito gera chamamos
patriarcado e ao senso comum que o alimenta e reproduz, cultura
patriarcal.
A persistência histórica desta cultura é tão forte que mesmo
nas regiões do mundo em que ela foi oficialmente superada pela
consagração constitucional da igualdade sexual, as práticas quotidianas
das instituições e das relações sociais continuam a reproduzir o
preconceito e a desigualdade. Ser feminista hoje significa reconhecer que
tal discriminação existe e é injusta e desejar activamente que ela seja
eliminada. Nas actuais condições históricas, falar de natureza humana
como se ela fosse sexualmente indiferente, seja no plano filosófico seja no
plano político, é pactuar com o patriarcado.
A cultura patriarcal vem de longe e atravessa tanto a cultura
ocidental como as culturas africanas, indígenas e islâmicas. Para
Aristóteles, a mulher é um homem mutilado e para São Tomás de Aquino,
sendo o homem o elemento activo da procriação, o nascimento de uma
mulher é sinal da debilidade do procriador. Esta cultura, ancorada por
vezes em textos sagrados (Bíblia e Corão), tem estado sempre ao serviço
da economia política dominante que, nos tempos modernos, tem sido o
capitalismo e o colonialismo. Em Three Guineas (1938), em resposta a um pedido de apoio financeiro para o esforço de guerra, Virginia Woolf
recusa, lembrando a secundarização das mulheres na nação, e afirma
provocatoriamente: “Como mulher, não tenho país. Como mulher, não
quero ter país. Como mulher, o meu país é o mundo inteiro”.
Durante a ditadura portuguesa, as Novas Cartas Portuguesas publicadas em 1972 por Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, denunciavam o patriarcado como parte da estrutura fascista que
sustentava a guerra colonial em África. "Angola é nossa" era o correlato de
"as mulheres são nossas (de nós, homens)" e no sexo delas se defendia a
honra deles. O livro foi imediatamente apreendido porque justamente
percebido como um libelo contra a guerra colonial e as autoras só não
foram julgadas porque entretanto ocorreu a Revolução dos Cravos em 25
de Abril de 1974.
A violência que a opressão sexual implica ocorre sob duas formas,
hardcore e softcore. A versão hardcore é o catálogo da vergonha e do
horror do mundo. Em Portugal, morreram 43 mulheres em 2010, vítimas
de violência doméstica. Na Cidade Juarez (México) foram assassinadas nos
últimos anos 427 mulheres, todas jovens e pobres, trabalhadoras nas
fábricas do capitalismo selvagem, as maquiladoras, um crime organizado
hoje conhecido por femicídio. Em vários países de África, continua a
praticar-se a mutilação genital. Na Arábia Saudita, até há pouco, as
mulheres nem sequer tinham certificado de nascimento. No Irão, a vida de
uma mulher vale metade da do homem num acidente de viação; em
tribunal, o testemunho de um homem vale tanto quanto o de duas
mulheres; a mulher pode ser apedrejada até à morte em caso de
adultério, prática, aliás, proibida na maioria dos países de cultura islâmica.
A versão softcore é insidiosa e silenciosa e ocorre no seio das famílias,
instituições e comunidades, não porque as mulheres sejam inferiores mas,
pelo contrário, porque são consideradas superiores no seu espírito de
abnegação e na sua disponibilidade para ajudar em tempos difíceis.
Porque é uma disposição natural. não há sequer que lhes perguntar se
aceitam os encargos ou sob que condições. Em Portugal, por exemplo, os
cortes nas despesas sociais do Estado actualmente em curso vitimizam em
particular as mulheres. As mulheres são as principais provedoras do
cuidado a dependentes (crianças, velhos, doentes, pessoas com
deficiência). Se, com o encerramento dos hospitais psiquiátricos, os
doentes mentais são devolvidos às famílias, o cuidado fica a cargo das
mulheres. A impossibilidade de conciliar o trabalho remunerado com o
trabalho doméstico faz com que Portugal tenha um dos valores mais
baixos de fecundidade do mundo. Cuidar dos vivos torna-se incompatível
com desejar mais vivos.
Mas a cultura patriarcal tem, em certos contextos, uma outra
dimensão particularmente perversa: a de criar a ideia na opinião pública
que as mulheres são oprimidas e, como tal, vítimas indefesas e silenciosas.
Este estereótipo torna possível ignorar ou desvalorizar as lutas de
resistência e a capacidade de inovação política das mulheres. É assim que
se ignora o papel fundamental das mulheres na revolução do Egipto ou na
luta contra a pilhagem da terra na Índia; a acção política das mulheres que
lideram os municípios em tantas pequenas cidades africanas e a sua luta
contra o machismo dos lideres partidários que bloqueiam o acesso das
mulheres ao poder político nacional; a luta incessante e cheia de riscos
pela punição dos criminosos levada a cabo pelas mães das jovens
assassinadas em Cidade Juarez; as conquistas das mulheres indígenas e
islâmicas na luta pela igualdade e pelo respeito da diferença,
transformando por dentro as culturas a que pertencem; as práticas
inovadoras de defesa da agricultura familiar e das sementes tradicionais
das mulheres do Quénia e de tantos outros países de África; a resposta
das mulheres palestinianas quando perguntadas por auto-convencidas
feministas europeias sobre o uso de contraceptivos: “na Palestina, ter
filhos é lutar contra a limpeza étnica que Israel impõe ao nosso povo”.
(*)Boaventura de Sousa Santos é sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).
(Transcrito do site http://www.cartamaior.com.br/)
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O poder da internet: fatos x versões
Venício Lima(*)
Os últimos acontecimentos políticos no norte da África constituem ocasião singular para observação do papel da mídia no mundo contemporâneo. Da nova e da velha mídia.
Embora seja mais fácil e simpático estabelecer, sem mais, uma relação de causalidade direta entre as novas TICs e a derrubada, por exemplo, do velho ditador egípcio, talvez seja prudente não precipitar conclusões.
A palavra do especialista
Quando esteve no Brasil, a convite do Centro Ruth Cardoso, aquele que muitos consideram a maior autoridade mundial da chamada “sociedade-rede”, Manuel Castells, em entrevista à Folha de São Paulo conduzida dentro do controvertido enquadramento de “decepção com o papel da internet no processo eleitoral brasileiro”, declarou às vésperas do primeiro turno das eleições de 2010:
“O Brasil segue uma dinâmica assistencialista em que da política se esperam subsídios e favores, mais do que políticas. A situação econômica do país melhorou consideravelmente. (...) A renovação do sistema político exige que as pessoas queiram uma mudança, e isso normalmente ocorre quando existem crises. A internet serve para amplificar e articular os movimentos autônomos da sociedade. Ora, se essa sociedade não quer mudar, a internet servirá para que não mude” [grifo meu; cf. http://www1.folha.uol.com.br/poder/801906-se-um-pais-nao-quer-mudar-nao-e-a-internet-que-ira-muda-lo-diz-sociologo-espanhol.shtml].
Recentemente, diante das manifestações populares na Tunísia e no Egypto, perguntado se estava surpreso pela mobilização social, Castells respondeu:
“Na verdade não. No meu livro ‘Comunicação e Poder’, dediquei muitas paginas para explicar, a partir de uma base empírica, como a transformação das tecnologias de comunicação cria novas possibilidades para a auto-organização e a auto-mobilização da sociedade, superando as barreiras da censura e repressão impostas pelo Estado. Claro que não depende apenas da tecnologia. A internet é uma condição necessária, mas não suficiente. As raízes da rebelião estão na exploração, opressão e humilhação. Entretanto, a possibilidade de rebelar-se sem ser esmagado de imediato dependeu da densidade e rapidez da mobilização e isto relaciona se com a capacidade criada pelas tecnologias do que chamei de “auto-comunicação de massas” [grifo meu; cf. http://www.outraspalavras.net/2011/03/01/castells-sobre-internet-e-insurreicao-e-so-o-comeco/ ].
Embora se referindo a situações radicalmente distintas, Castells indica que as TICs – redes sociais, celulares e outros – não causam os movimentos sociais mas funcionam como “condição necessária” para a ampliação e articulação deles. E, por óbvio, é necessário que as TICs estejam suficientemente (?) difundidas na sociedade em questão, seja ela o Brasil ou a Tunísia.
A velha mídia
Por outro lado, comentando depoimento da Secretaria de Estado Hillary Clinton no Comitê de Política Externa do Senado dos Estados Unidos, no dia 2 de março, no qual ela afirmou que os EUA estavam perdendo a “guerra da informação” (sic) para a rede Al Jazeera, o jornalista político escocês-estadunidense Alexander Cockburn, um dos editores do jornal CounterPunch, lembrou:
“(...) há uma florescente pequena indústria da internet que afirma que a derrubada de Mubarak ocorreu por cortesia do comando Twitter-Facebook dos EUA. O New York Times publicou numerosos artigos sobre o papel do Twitter e do Facebook enquanto ignora ou vilipendia ao mesmo tempo Julian Assange e Wikileaks. Por certo, em qualquer discussão sobre o papel da internet na convocação dos levantes no Oriente Médio, deveria se dar o maior crédito ao Wikileaks. Mas Wikileaks, junto com Twitter e Facebook, tornam-se quase insignificantes em comparação com o papel exercido pela Al Jazeera. Milhões de árabes não podem tuitar e não estão familiarizados com o Facebook. Mas a maioria vê televisão, o que significa que todos assistem à Al Jazeera, a qual detonou o “artefato explosivo improvisado” que estourou sob a Autoridade Palestina, a saber, o conjunto de documentos conhecidos como Palestine Papers” [cf. http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=17511].
Para Hillary e para Cockburn a “guerra da informação” continua sendo travada e disputada, de fato, no território da velha televisão.
Ainda Gramsci
Todas essas considerações são apenas para repetir a cautela que tenho reiterado em relação às interpretações que atribuem, sem mais, poderes mágicos e revolucionários às novas TICs.
Nos “Cadernos de Cárcere” quando Antonio Gramsci (1891-1937) comenta sobre a "crise de autoridade" (Selections of the Prison Notebooks; International Publishers, New York, 1971; págs. 275-276), embora, por óbvio, as circunstâncias fossem outras e seja necessária uma pequena adaptação no texto, penso que se aplica ao nosso momento histórico a idéia de que "o velho está morrendo e o novo apenas acaba de nascer. Nesse interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparece" (a frase original correta é: "A crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo ainda não pode nascer. Nesse interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparece").
Um pouco de cautela talvez não nos leve a conclusões precipitadas sobre o real poder das novas TICs. E, mais importante, evite erros graves na avaliação e na formulação de políticas públicas para as comunicações.
Embora seja mais fácil e simpático estabelecer, sem mais, uma relação de causalidade direta entre as novas TICs e a derrubada, por exemplo, do velho ditador egípcio, talvez seja prudente não precipitar conclusões.
A palavra do especialista
Quando esteve no Brasil, a convite do Centro Ruth Cardoso, aquele que muitos consideram a maior autoridade mundial da chamada “sociedade-rede”, Manuel Castells, em entrevista à Folha de São Paulo conduzida dentro do controvertido enquadramento de “decepção com o papel da internet no processo eleitoral brasileiro”, declarou às vésperas do primeiro turno das eleições de 2010:
“O Brasil segue uma dinâmica assistencialista em que da política se esperam subsídios e favores, mais do que políticas. A situação econômica do país melhorou consideravelmente. (...) A renovação do sistema político exige que as pessoas queiram uma mudança, e isso normalmente ocorre quando existem crises. A internet serve para amplificar e articular os movimentos autônomos da sociedade. Ora, se essa sociedade não quer mudar, a internet servirá para que não mude” [grifo meu; cf. http://www1.folha.uol.com.br/poder/801906-se-um-pais-nao-quer-mudar-nao-e-a-internet-que-ira-muda-lo-diz-sociologo-espanhol.shtml].
Recentemente, diante das manifestações populares na Tunísia e no Egypto, perguntado se estava surpreso pela mobilização social, Castells respondeu:
“Na verdade não. No meu livro ‘Comunicação e Poder’, dediquei muitas paginas para explicar, a partir de uma base empírica, como a transformação das tecnologias de comunicação cria novas possibilidades para a auto-organização e a auto-mobilização da sociedade, superando as barreiras da censura e repressão impostas pelo Estado. Claro que não depende apenas da tecnologia. A internet é uma condição necessária, mas não suficiente. As raízes da rebelião estão na exploração, opressão e humilhação. Entretanto, a possibilidade de rebelar-se sem ser esmagado de imediato dependeu da densidade e rapidez da mobilização e isto relaciona se com a capacidade criada pelas tecnologias do que chamei de “auto-comunicação de massas” [grifo meu; cf. http://www.outraspalavras.net/2011/03/01/castells-sobre-internet-e-insurreicao-e-so-o-comeco/ ].
Embora se referindo a situações radicalmente distintas, Castells indica que as TICs – redes sociais, celulares e outros – não causam os movimentos sociais mas funcionam como “condição necessária” para a ampliação e articulação deles. E, por óbvio, é necessário que as TICs estejam suficientemente (?) difundidas na sociedade em questão, seja ela o Brasil ou a Tunísia.
A velha mídia
Por outro lado, comentando depoimento da Secretaria de Estado Hillary Clinton no Comitê de Política Externa do Senado dos Estados Unidos, no dia 2 de março, no qual ela afirmou que os EUA estavam perdendo a “guerra da informação” (sic) para a rede Al Jazeera, o jornalista político escocês-estadunidense Alexander Cockburn, um dos editores do jornal CounterPunch, lembrou:
“(...) há uma florescente pequena indústria da internet que afirma que a derrubada de Mubarak ocorreu por cortesia do comando Twitter-Facebook dos EUA. O New York Times publicou numerosos artigos sobre o papel do Twitter e do Facebook enquanto ignora ou vilipendia ao mesmo tempo Julian Assange e Wikileaks. Por certo, em qualquer discussão sobre o papel da internet na convocação dos levantes no Oriente Médio, deveria se dar o maior crédito ao Wikileaks. Mas Wikileaks, junto com Twitter e Facebook, tornam-se quase insignificantes em comparação com o papel exercido pela Al Jazeera. Milhões de árabes não podem tuitar e não estão familiarizados com o Facebook. Mas a maioria vê televisão, o que significa que todos assistem à Al Jazeera, a qual detonou o “artefato explosivo improvisado” que estourou sob a Autoridade Palestina, a saber, o conjunto de documentos conhecidos como Palestine Papers” [cf. http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=17511].
Para Hillary e para Cockburn a “guerra da informação” continua sendo travada e disputada, de fato, no território da velha televisão.
Ainda Gramsci
Todas essas considerações são apenas para repetir a cautela que tenho reiterado em relação às interpretações que atribuem, sem mais, poderes mágicos e revolucionários às novas TICs.
Nos “Cadernos de Cárcere” quando Antonio Gramsci (1891-1937) comenta sobre a "crise de autoridade" (Selections of the Prison Notebooks; International Publishers, New York, 1971; págs. 275-276), embora, por óbvio, as circunstâncias fossem outras e seja necessária uma pequena adaptação no texto, penso que se aplica ao nosso momento histórico a idéia de que "o velho está morrendo e o novo apenas acaba de nascer. Nesse interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparece" (a frase original correta é: "A crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo ainda não pode nascer. Nesse interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparece").
Um pouco de cautela talvez não nos leve a conclusões precipitadas sobre o real poder das novas TICs. E, mais importante, evite erros graves na avaliação e na formulação de políticas públicas para as comunicações.
(*)Venício A. de Lima é professor titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado) e autor, dentre outros, de Liberdade de Expressão vs. Liberdade de Imprensa – Direito à Comunicação e Democracia, Publisher, 2010.
(Transcrito do site http://www.cartamaior.com.br/)
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