O Judiciário não redimirá a política da corrupção
por Fernando Filgueiras
A ciência política brasileira tem se debatido muito com relação ao problema da autonomia do Poder Judiciário frente aos demais poderes republicanos e de que modo se constitui a sua autonomia para decidir questões de interesse público e privado e mediar conflitos. O interesse sobre o Judiciário nas novas democracias tem marcado suficientemente o debate a respeito de suas características institucionais e o seu papel na sociedade.
No caso brasileiro, a atenção prestada ao Judiciário, tanto no mundo acadêmico, quanto nos órgãos de imprensa, tem sido descrita sob o condão do conceito de judicialização. A judicialização da política e das relações sociais significa o deslocamento do lócus de decisão e debate público das instituições representativas tradicionais para o Poder Judiciário, empoderando este de uma legitimidade ditada pela capacidade técnica dos operadores do direito de se afirmarem como intérpretes da vida social e política. Com isso, o Judiciário passa a intervir no curso das políticas públicas definidas pelo Estado e assume o status de instituição central nas democracias, uma vez que tem poder de decisão e escolha dos rumos da política.
Uma das explicações para este fenômeno típico de novas democracias, e mais assentado em democracias consolidadas, se dá no fato de que as instituições representativas tradicionais, como os parlamentos e os partidos, esgotaram sua capacidade de construir o interesse público e estabelecer o rumo e o prumo da sociedade. O fato é que vivemos em uma sociedade marcada por forte desconfiança em relação às instituições democráticas, configurando uma crise de apoio ao trabalho e aos resultados alcançados por tais instituições. Some-se a isso um forte processo de vigilância ditado por regras de transparência, colocando no centro da ação política a atuação de instituições de vigilância e controle.
A judicialização decorreria, sobretudo, dessa desconfiança dos cidadãos em relação às instituições de representação política. Instituições em que a sua legitimidade dependa da regra majoritária das democracias estão imbuídas dessa desconfiança dos cidadãos, que passam a depositar as suas esperanças na atuação de instituições de controle e que tenham uma natureza contramajoritária. O empoderamento do Judiciário guarda uma relação direta com essa crítica às instituições majoritárias.
Nesse sentido, afirmações como “todo político é ladrão”, ou “não tem jeito de fazer política sem corrupção”, englobam um senso comum de que as instituições representativas definham a sua legitimidade para resolver conflitos e decidir. Por outro lado, empodera as instituições contramajoritárias, as quais passam a ser depositárias da confiança dos cidadãos. O empoderamento das instituições contramajoritárias, por um lado, e a fraqueza das instituições representativas, por outro lado, favoreceriam o processo de judicialização da política.
No caso brasileiro, esse processo está em curso, mas guarda especificidades marcantes quanto à questão da confiança nas instituições. A democratização não veio seguida de um desenvolvimento institucional das entidades representativas, especialmente a Câmara dos Deputados, o Senado Federal, as Assembleias Legislativas e as Câmaras de Vereadores. Paira sobre estas instituições uma forte percepção de sua corrupção. E some-se a isso uma condição refratária a qualquer mudança institucional mais sólida. Depois de seguidos escândalos, o Senado Federal abortou qualquer tipo de mudança em sua gestão. As Assembleias Legislativas não avançam sua agenda e nem tem capacidade de se impor. As Câmaras de Vereadores dispensam qualquer comentário dessa natureza.
Por esse ponto de vista, as instituições de vigilância e contramajoritárias foram as que mais se desenvolveram institucionalmente. Vide o exemplo da Polícia Federal, a criação das controladorias, tanto da União como as recentes experiências nos estados, o Tribunal de Contas da União e, em alguma medida, e o Ministério Público. Por meio de pesquisa de opinião realizada pelo Centro de Referência do Interesse Público em janeiro de 2012 nas regiões metropolitanas de Belo Horizonte, Goiânia, Recife e Porto Alegre, fica claro esse processo.
Destaca-se no gráfico acima que a Polícia Federal é a maior depositária da confiança do cidadão comum. O Congresso, por outro lado, é o campeão da desconfiança. O Poder Judiciário aparece muito bem nesse indicador de confiança nas instituições. Porém, o que precisa ser observado, para além do problema da confiança ou desconfiança, é o fato de que todas estas instituições são atravessadas por relações de poder. Imbuídas dessas relações de poder, as instituições de natureza contramajoritária exercem uma função representativa. A desconfiança as empodera para que elas corrijam os rumos das instituições majoritárias e impeçam o domínio absoluto da maioria.
No caso brasileiro, entretanto, apesar de se depositar forte esperança na atuação do Judiciário, o cidadão comum acredita que o Judiciário é atravessado por estas relações de poder, muitas vezes beirando ao caráter espúrio. Mesmo que confie mais no Judiciário, o cidadão brasileiro revela forte crítica à sua atuação, afirmando que ele não é independente dos interesses. No gráfico abaixo isso fica claro, à medida que para 45,2% da amostra o Judiciário brasileiro não toma suas decisões sem ser influenciado por políticos, empresários ou outros interesses.
O fato é que mesmo que depositemos as esperanças na atuação do Poder Judiciário, como agora no caso do “mensalão”, em que o STF poderia redimir a política moralmente, é um erro esquecer que a interpretação do Direito se faz com interesses, intenções e fins. Ou seja, as relações de poder atravessam a atividade jurídica e pode promover efeitos benéficos ou nefastos como qualquer outra instituição. Do mesmo modo, pode se corromper como qualquer outra instituição representativa. O pano de fundo do caso do “mensalão” é pensar em que medida as relações de poder no Judiciário produzem igualdade ou não. Esta questão deveria estar mais em jogo do que a própria corrupção, porque há corrupção maior em uma democracia do que ferir o imperativo da igualdade perante lei. Aí a opinião pública pode ser indicador importante, à medida que compreende que as leis, no Brasil, não consideram igualmente os indivíduos, como exposto no gráfico abaixo:
O enfrentamento da corrupção no Brasil e, em particular, o julgamento do mensalão, deve considerar que existe no Brasil uma forte demanda histórica por igualdade, sem a qual não é possível construir uma democracia. A pergunta fundamental se mantém oculta no julgamento do m”ensalão”. Como o Judiciário brasileiro pode contribuir para a construção da igualdade perante a lei? Para atender a isso, não basta empoderar-se, mas compreender que o seu empoderamento demanda maior responsabilização e não o teatro de horrores que se assiste nas sessões televisivas do julgamento. A resposta, portanto, precisa ser institucional. E com capacidade de contribuir para a mudança da cultura política no Brasil.
O Judiciário brasileiro, e o STF em particular, não redimirá a política da corrupção porque ele está inserido na própria política e pode corromper-se com ela. Resta saber se terá responsabilidade o suficiente para lidar com isso.
Fonte: www.cartacapital.com.br
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