03 dezembro 2013

MUITO PANO PRA MANGA

Estigma e direitos na execução das penas
do "mensalão"


Fábio de Sá e Silva (*)
EBC
Desde que no último dia 15 de novembro o presidente do STF, Ministro Joaquim Barbosa, decretou as prisões de alguns condenados da ação penal 470, o chamado processo do “mensalão”, muito se tem dito sobre supostos “privilégios” de que os presos, especialmente os petistas José Genoíno e José Dirceu, estariam a usufruir.

A lista mais recente destaca o tratamento médico de José Genoíno, removido para o Instituto de Cardiologia do Distrito Federal em meio a uma suspeita de infarto; o acesso de visitantes às instalações do presídio nas sextas-feiras; e a possibilidade de que Dirceu seja contemplado com liberação para trabalho remunerado, uma vez que o ex-Ministro teria recebido proposta para atuar como gerente administrativo de tradicional Hotel em Brasília, com salário fixado em R$ 20 mil mensais.

Contra o “privilégio” das visitas, o sistema de justiça agiu rápido. Em um primeiro momento, o Ministério Público pediu à Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal, responsável pela gestão dos presídios, que mantivesse a observância das ordens de serviço n. 82 e 83/2013, que regulamentavam o acesso de visitantes a presos e só autorizavam visitas às quartas e quintas. A Vara de Execuções Penais do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, unidade judiciária que há pouco tempo sofreu intervenção do Ministro Barbosa, ecoou a preocupação. Apreciando a recomendação do Ministério Público, os juízes Bruno Ribeiro, Ângelo Oliveira, e Mario Pegado determinaram “tratamento igualitário aos internos e visitantes do sistema penitenciário”.

Diante de mais notícias de visitas às sextas-feiras, desta vez envolvendo o ex-tesoureiro do extinto PL (atual PR) Jacinto Lamas, o Ministério Público pediu que a possibilidade de visita às sextas fosse estendida a todos os presos. O pedido aguarda apreciação pelos Juízes da execução.

Curiosamente, outras ilegalidades em curso não foram objeto da preocupação do Ministério Público, em sua condição de fiscal da lei. É o caso da manutenção de Simone Vasconcelos e Kátia Rabelo no Batalhão da Polícia Militar, enquanto já deveriam ter iniciado o cumprimento regular da pena na unidade prisional da Papuda. Coube aos Juízes atentarem de ofício para o problema e, quando apreciavam os outros pedidos do Ministério Público, determinarem,  a “imediata transferência” destas condenadas a um “local adequado aos seus atuais regimes de cumprimento de pena”.

A questão, como é evidente, evoca um princípio caro às ordens constitucionais modernas: a igualdade.

Evidentemente – e por mais que haja críticas ao julgamento da ação penal 470, não apenas por parte dos réus, mas também de parcela substantiva da comunidade jurídica brasileira –, não é constitucionalmente admissível que estes sejam submetidos a tratamento diferente dos demais condenados pela justiça brasileira. Mas, como todo princípio constitucional, a igualdade é uma pretensão que deve ser exercitada para a integralidade da situação.

Muito da singularidade do caso, é bom que se diga, foi criada pelo modo como os réus foram presos e tratados. Será que se os presos não tivessem sido trazidos subitamente para Brasília e mantidos no regime fechado – ao invés de ficarem próximos às suas famílias e círculo social, como ocorre em casos similares –, teria havido o corre-corre das visitas? Será que se Genoíno tivesse ficado em casa até a apreciação do seu estado de saúde – a solução adotada para Roberto Jefferson, igualmente condenado e único réu que parece ter efetivamente se apropriado de dinheiro – seria necessário o deslocamento de emergência até o Instituto de Cardiologia? Em suma, tivesse Barbosa tratado os réus de maneira análoga a que o STF tratou e trata outros e, talvez, muitos dos dilemas aqui experimentados pelas instituições da segurança pública do Distrito Federal sequer tivessem existido.

Indo mais longe, entretanto, é importante perceber que o princípio da igualdade é, neste caso, invocado para afirmar uma pretensão de desigualdade, sobre a qual repousa toda a engenharia punitiva das sociedades modernas.

Como autores vinculados à criminologia crítica demonstram à exaustão, o direito penal e as prisões, embora inicialmente concebidos como meios de racionalização das práticas punitivas medievais, rapidamente se transformaram em um poderoso instrumento de exclusão. Isso se dá, entre outras coisas, pela atribuição de um estigma aos condenados e presos, cuja condição institucionalmente chancelada de criminosos permite que sejam situados em camadas inferiores das hierarquias sociais. Abre-se, assim, um ciclo pelo qual alguns grupos (sociais, econômicos, culturais e – por que não dizer? – políticos) podem intensificar a dominação sobre os demais mediante a demarcação e a persecução seletiva das ilegalidades.

A expectativa de que a condenação e a prisão sirvam para excluir parece bastante presente nas reações contra os “privilégios” dos réus. Para a dita opinião pública, não é suficiente que Genoíno seja preso; é preciso que ele experimente todos os dramas próprios do lugar social que criamos para aqueles que não queremos ter por perto, como a atenção precária à saúde.

Ora, há lugares do país nos quais alas inteiras de hospitais públicos são isoladas para o atendimento permanente a presos. Não raramente, tais presos chegam em situação de grave emergência, vítimas de tiros ou facadas, e todos esses atendimentos demandam alguma operação logística para o transporte e a vigilância. A reação da mesma opinião pública frente a esses casos, todavia, não caminha no sentido da garantia ao tratamento, mas sim do repúdio ao fato de que “criminosos” estão ocupando leitos no lugar de “cidadãos de bem”.

Da mesma forma, não é suficiente que Dirceu seja preso e tenha de arrumar um trabalho para poder usufruir plenamente do regime semiaberto. Uma vez preso, é preciso que ele assuma trabalhos usualmente entendidos como “próprios de preso”, tais como costurar bolas ou montar vassouras – nada próximo do cargo de gerente de um hotel, ocupação, mais uma vez, mais adequada aos “cidadãos de bem”. Mas não deveríamos esperar que os nossos presos pudessem sair exatamente para atuarem em funções como essas?

Que o dia a dia da execução das penas do “mensalão” ainda esteja movimentando a mídia e os debates públicos, quando outros escândalos de igual ou maior vulto têm sido descobertos e as estatísticas criminais não pareçam sofrer alteração, é algo sobre o qual os “cidadãos de bem” deveriam questionar (e se questionar). Parece, contudo, que uma explicação pode ser encontrada com segurança nas mencionadas lições da criminologia crítica.

Quando formadores da dita opinião pública e alguns de seus aliados na cúpula da justiça buscavam tão avidamente a condenação e a prisão de réus como Genoíno e Dirceu – a ponto de terem tentado influenciar a decisão de um Ministro do STF sobre a admissibilidade de embargos infringentes –, talvez a luta fosse menos pela aplicação da lei e mais pela estigmatização destes personagens. Quando Genoíno pede exames e atenção médica ou quando Dirceu pede para trabalhar como gerente de hotel, o que fazem é rejeitar a imposição do estigma pela linguagem dos direitos.

Essa escolha – se é que de fato foi uma escolha e não uma ação instintiva –, terá de enfrentar o especial zelo que a mídia e o judiciário têm relação ao estigma que as coberturas policiais e as sentenças cheias de estereótipos ajudam a construir de maneira ativa e cotidiana. Como em muitos outros episódios da ação penal 470, este não trata, mais uma vez, de um combate trivial. Mas como em quase todos os demais combates proporcionados por esse processo, este também será fundamental para a história do direito e da experiência constitucional brasileira.

(*) PhD em Direito, Política e Sociedade pela Northeastern University (EUA) e Professor substituto de Teoria Geral do Direito da Universidade de Brasília. As opiniões deste artigo são de caráter estritamente pessoal.



Créditos da foto: EBC

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