o mundo
Flávio Aguiar(*)
Do Ártico à Antártida, da Califórnia à costa da China, dando a volta ao mundo por todos os seus lados, latitudes e longitudes, a fama do Uruguai cresce.
Agora, por conta da mais completa e total legalização do ciclo da popular maconha, a científica cannabis. Não só por causa do feito épico de 16 de julho de 1950… Mas mudemos de assunto, ou voltemos ao assunto principal.
O Uruguai é um país de muitas famas. Algumas geográficas: num continente de gigantes, é um país diminuto, sem montanhas, cuja costa é banhada por um único rio (o da Prata), que seus habitantes chamam de “mar”, e alguns quilômetros de oceano.
Outras negativas: o Uruguai teve fama de centro de lavagem de dinheiro (Mas que país não conta com suas lavanderias? E alguns outros países ou territórios parecem viver quase exclusivamente disto…). E não apenas recentemente. Isto vem dos tempos em que a burguesia brasileira, por exemplo, ao lado de outras, premida pela proibição do jogo, deixava os cassinos em Poços de Caldas, no Quitandinha, e alhures, ia gastar nas fichas das roletas et alii em Punta del Leste ou Carrasco.
Também houve fama sanguinária, das disputas entre Blancos e Colorados resolvidas algumas vezes no fio da faca no pescoço… Mas ora, lembremos dos também sanguinários conflitos entre Maragatos e Pica-Paus no Rio Grande do Sul, da triste série de degolas em Canudos…
Extermínio de índios, como na guerra contra os charruas, alguns dos quais foram se refugiar no Brasil (!), chegando a lutar na Revolução Farroupliha? Ora, quem são seus vizinhos para falar disto? Brasil, Argentina, Chile, até o Paraguai e a Bolívia… E quanto à Europa, nem é bom falar. Muito menos os Estados Unidos. E em escala mundial.
Ditadura sanguinária? Não só os países ao redor as conheceram também, como, convenhamos, as monarquias, repúblicas e ditaduras europeias e a democracia norte-americana não foram menos sanguinárias. E na África e no Oriente? Ásia?
Bom, mas há Uruguai das famas boas. Com latifúndio e tudo, possui historicamente um dos melhores rebanhos do mundo. Coisa de dar inveja a argentinos e brasileiros. Pouca gente conhece, mas o Uruguai é um produtor de grandes aguardentes. E vinhos Tannat, para dizer o mínimo.
País avançadíssimo, na atrasada fama sul-americana, no que toca aos direitos da cidadania, à educação pública, à saúde, e também no que toca à laicidade do Estados. Quem viveu, lembra dos tempos em que, por exemplo, os casais brasileiros que queriam legalizar sua situação, depois de separações, tinham dois caminhos tradicionais: casar na Embaixada do México, no Rio de Janeiro, ou… no Uruguai. Era até chique! Ou “chick”, como se escrevia na época.
Durante a cerimônia fúnebre em honra a Nelson Mandela, ouvi os discursos exaltando sua capacidade de emergir de 27 anos de cárcere sem ressentimento.
Um monumento à dignidade humana. Mas que dizer do atual presidente do Uruguai, José “Pepe” Mujica, emergindo de anos e anos numa solitária de três metros de diâmetro e não sei quantos de profundidade, sem uma frase de vingança, só de reconciliação e justiça? Tivemos a honra, nós da equipe Carta Maior, de fazer uma inesquecível entrevista com ele e sua esposa na sua chácara nas lindes de Montevidéu, quando ele foi eleito presidente do Senado, na posse de Tabaré Vásquez como presidente. Ele então nos confidenciou – naquela época em primeira mão – que aprendera a conversar com os insetos, com as formigas que, segundo ele, entre outras coisas, gritam. Só uma sensibilidade infinitamente superior à daquela que é dada ao comum dos mortais alcança isto.
Agora novamente o Uruguai espanta o mundo. É o primeiro país a legalizar completamente o ciclo da popular maconha, a cientíifca cannabis. Tudo: plantação, distribuição, venda e consumo. Mais: oh!, heresia das heresias, blasfêmia das blasfêmias! Na contramão das superstições da ortodoxia neoliberal, tudo fica sob o estrito controle, senão manejo, do Estado. Este, talvez, seja o maior desafio do repto que o Uruguai tem pela frente e coloca diante do mundo epustuflado pela ousadia. Garantir que o Estados não seja “fonte” de corrupção sistêmica, mas sim um saneador de um campo minado com o da circulação de drogas.
As estimativas falam que circulam no diminuto Uruguai algo entre 30 e 40 milhões de dólares anualmente, nas veias do narcotráfico ligadas à produção ou importação (dos países vizinhos) de maconha. Dinheiro sujo a ser lavado, livre de impostos, controle, fonte de outras contravenções e crimes. Convenhamos: mutatis mutandis, o narcotráfico é a quintessência da prática neoliberal: livre do Estado, regras definidas inteiramente pela liberdade de mercado, sem impostos – bom talvez se possa compreender as inevitáveis propinas a autoridades policiais e outras como uma forma de impostos…
É contra tudo isto, além dos preconceitos generalizados em torno da criminalização e culpabilização dos usuários, que o Uruguai, Pepe Mujica e a Frente Ampla se levantam.
Tomara que dê certo.
Cumprimentos ao épico Uruguai.
Mas sem outro 16 de julho, por favor…
Flávio Aguiar é correspondente internacional da agência brasileira de notícias Carta Maior, em Berlim.
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