Miguel do Rosário, em seu Blogue O Cafezinho
O debate em torno da proposta de emenda constitucional do deputado Nazareno Fonteles, a PEC 33, que propõe algumas limitações ao poder do Supremo Tribunal Federal (STF) acabou degenerando, como quase tudo nos últimos tempos, numa guerra de posições: blogosfera e legislativo, de um lado; STF, mídia e oposição, de outro. O Planalto, mais uma vez, subiu no muro – embora desta feita seja o mais prudente a fazer.
A proposta, no entanto, oferece uma excelente oportunidade para debatermos uma das questões mais importantes numa democracia, que é a harmonia entre os poderes; esta não cai do céu, é consequência da criatividade humana. Os legisladores, eleitos pelo povo, inventam uma Constituição que permita aos três poderes conviverem harmonicamente. Na verdade, explica Hamilton, em O Federalista, o grande clássico da teoria democrática americana, não existe separação nem independência absoluta entre os poderes; há um sistema de “checks and balance”, ou seja, contrapesos e interferências mútuas, de maneira a evitar que o poder se concentre num só ponto.
Se, ao longo da experiência democrática, os legisladores percebem que um poder está invadindo as competências de outro, nada mais natural que aperfeiçoem as regras para reestabelecer a harmonia, vital à doutrina democrática.
É o que tentou fazer o deputado Fonteles, e a ira dos conservadores apenas prova que ele está certo. A sua emenda ainda pode ser aprimorada, mas ela se assenta sobre princípios sólidos e tradicionais.
Em seu clássico, Alexander Hamilton faz uma apaixonada defesa do poder judiciário e da suprema corte e o tempo inteiro tenta afastar os temores de que um judiciário forte poderia ameaçar outros poderes. No capítulo 81, por exemplo, ele observa que o “suposto perigo de um judiciário avançando sobre a autoridade legislativa é um fantasma”, ou seja, não é real. Ele não exclui que isso possa acontecer: que a suprema corte possa avançar o sinal e prejudicar o legislativo. Mas observa que o legislativo preserva o poder de “impeachment” sobre os ministros do STF, e que, portanto, pode sempre revidar a tentativa dos juízes de usurparem um poder que não lhes pertence.
Nosso STF é inspirado no modelo norte-americano, com juízes vitalícios, indicados pelo Executivo e chancelados pelo Senado, e com autonomia financeira.
Entretanto, em outra parte do livro, Hamilton observa que “se o poder de julgar se unir ao de legislar, a vida e a liberdade do sujeito estarão expostas ao controle arbitrário, porque o juiz será um legislador. Se ele se juntar ao poder executivo, o juiz se portará com a violência de um opressor”.
Aí que está o problema. Se os poderes encontram-se, no Brasil, devidamente separados, o fato de possuirmos um quarto, não regulamentado, que é uma mídia inchada por décadas de oligopólio e ditadura, pode trazer desequilíbrio ao sistema. Porque se a mídia se une ao STF, cria-se um núcleo de arbítrio. A únião entre STF e mídia se dá de várias maneiras. Alguns juízes aderem à mídia voluntariamente, por afinidade ideológica. Outros se rendem às chantagens e ameaças. Outros se refestelam com bajulações, exposição, e prêmios.
Embora lembrando que, no Reino Unido, a última palavra em matéria de constitucionalidade pertence ao legislativo, Hamilton defende que, na Constituição Americana, esta pertença ao Judiciário.
“Isso não quer dizer que exista uma superioridade do judiciário sobre o poder legislativo. Apenas supõe que o poder do povo é superior a ambos; e que se o desejo do parlamento, expresso em suas emendas ou projetos, se contrapõe ao do povo, declarado na Constituição, o juiz deve levar em consideração o povo, não o parlamento.”
Com base nos pensamentos de Hamilton, o grande campeão de um judiciário forte e independente, podemos voltar à proposta do deputado Fonteles. Ela não tira o poder do Judiciário de dar a última palavra, mas propõe que, em caso de discordância do Congresso, a decisão será tomada em consulta popular. Em tese, portanto, é um aprimoramento da doutrina democrática. A última palavra volta ao povo.
Em suas entrevistas, Fonteles tem alertado para uma insidiosa armadilha que o STF tem armado para a opinião pública nacional. Seus ministros aprovam matérias de cunho progressista e ganham prestígio junto a setores avançados da sociedade. É o caso da aprovação com pesquisas com células tronco, casamento homossexual, etc. Em geral, são temas que o parlamento tem dificuldade para levar adiante. Entretanto, uma coisa boa acaba servindo de pretexto para inchar o poder autocrático do tribunal. Cria-se um STF genuinamente paternalista, que resolve os tabus que o parlamento tem receio de discutir; mas como acontece a qualquer manifestação de poder, senão se lhe interpõe um obstáculo, ele cresce, avança, ganha espaços.
A PEC 33, cujo relator foi o deputado João Campos (PSDB-GO), tenta coibir esse avanço. O caso da súmula vinculante é ainda mais grave, porque ela corresponde ao poder virtual do STF para criar novas leis, no que voltamos ao perigo apontado por Hamilton, abrindo caminho para uma tirania judicial. Lembrando: súmulas vinculantes são decisões do STF que devem ser seguidas pelos tribunais inferiores. A proposta resolve a questão de maneira simples. O Congresso teria 90 dias para aprovar a súmula vinculante emitida pelo STF. Se não o fizer, significará que lhe presta um apoio tácito.
Entretanto, o que deixou muita gente perplexa é que Gilmar Mendes proibiu o Congresso de meramente debater a proposta. Para cúmulo da arbitrariedade, foi um decisão monocrática, de um só juiz, e não do colegiado do Supremo. Esse é outro vício que a emenda do deputado Fonteles visa corrigir. Se o Congresso precisa reunir maioria de centenas de parlamentares para aprovar uma lei, é um contrassenso que um ministro do STF possa decidir solitariamente sobre sua validade. Se o STF não concorda com a lei, que se reúna e a rechace via colegiado.
Quanto à proposta de lei, também bloqueada por Gilmar Mendes, pela qual os deputados que mudarem de partido não poderão levar recursos e tempo de TV, trata-se de uma moralização. Se é casuísmo? Ora, toda decisão política é casuística. O STF errou ao dar os recursos para o PSD. E agora erra de novo ao interferir na luta parlamentar, que é uma prerrogativa do Congresso e dos partidos. Se Gilmar Mendes quer se meter em política, que se filie a um partido, ganhe eleições e vá para a tribuna defender seus pontos-de-vista.
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