família..." uma reflexão sobre
Justiça, Direito e Estado
Marco Aurélio Weissheimer, na Agência Carta Maior
Em debates envolvendo direitos humanos, especialmente quando os humanos em questão são presidiários, rapidamente alguém esgrime a frase: “quero ver se acontecer com tua família…”. É uma expressão muito usada, por exemplo, em debates cotidianos sobre a pena de morte. Para os defensores desta máxima, tudo se passa como se ela fosse uma espécie de premissa fundadora da justiça. O complemento – nem sempre expresso – da frase é: (se acontecer com alguém da minha família)…tem que arrebentar e matar.
O uso da premissa ameaçadora "quero ver se acontecer com a tua família” apoia-se em sentimentos compreensíveis de raiva e vingança comuns em caso de violência. Ela é acompanhada, muitas vezes, por outra premissa, mais ameaçadora ainda, que consiste em invocar episódios particulares de violência extrema com requintes de crueldade para justificar teses gerais sobre o tratamento de presos. A maioria das pessoas tem hoje um integrante da família ou alguém próximo que foi vítima de um ato violento, seja um assalto, um roubo, um acidente causado por imprudência, um episódio de violência doméstica ou mesmo um assassinato. Estes casos particulares, porém, por mais dramáticos e dolorosos que sejam, não justificam a adoção da “justiça pelas próprias mãos”. Essa é uma das razões pelas quais existem coisas como o Direito, a Justiça e o Estado. Se quisermos abrir mão dessas instituições, por maiores que sejam suas imperfeições, em pouco tempo estaremos de quatro urrando nas matas.
A frequência no uso da expressão citada mostra como esses conceitos (Direito, Justiça e Estado) ainda são um tanto contra-intuitivos, ou seja, seu significado e suas implicações ainda escapam a muita gente. A construção desses conceitos e sua transformação em ordenamento jurídico e instituições levaram séculos e custaram muito sangue derramado. A instituição do conceito de Estado, em especial, exigiu algumas renúncias, entre elas, a de querer fazer justiça com as próprias mãos, ou de querer criar e legitimar normas e preceitos particulares a partir, por exemplo, do que ocorre com cada um de nós e suas respectivas famílias. A pretensão de fundar a Justiça e o Direito em apelos desta natureza significa, na verdade, a implosão desses conceitos, ou, pelo menos, de sua universalidade, o que, no frigir dos ovos, dá no mesmo.
É sintomático que esse tipo de expressão tenha ampla circulação no Brasil e seja geralmente apontado contra defensores dos direitos humanos, reduzidos então à categoria de “amigos de bandidos”. O Brasil, ao contrário do que certa historiografia tenta construir, foi construído na base de muita violência, racismo e desigualdade. A “cordialidade do brasileiro” é um mito. Milhões de índios foram massacrados, com requintes de violência. O Brasil foi um dos últimos países a abolir oficialmente a escravidão. Os resquícios desses episódios fundadores da nação brasileira estão aí para quem quiser ler, ver, ouvir e sentir.
Essa é uma das razões centrais pela qual os conceitos de Direito e Direitos Humanos precisam avançar no país, tanto do ponto de vista de sua efetivação como no de sua compreensão. Esta última, aliás, parece ser uma condição para a primeira. O problema do país não é, como disse recentemente um editorial do jornal Zero Hora, a existência de um excesso de direitos e uma escassez de deveres.
Esse chavão é uma expressão típica da cultura da Casa Grande que está impregnada na nossa cultura. Não há país que tenha perecido por algo como “excesso de direitos”. O reconhecimento de novos direitos é uma conquista civilizatória. Acenar com um suposto desequilíbrio na balança Direitos-Deveres é um velho artifício retórico que mal consegue disfarçar seu mal-estar com a consolidação de certos direitos. Isso aparece, mais uma vez, hoje, nos debates sobre direitos trabalhistas de empregadas domésticas, reconhecimento de territórios quilombolas e sobre o casamento gay, apenas para citar três exemplos. Aliás, esse artifício costuma dar as caras no debate público justamente quando ele versa sobre o reconhecimento de direitos.
Esse mal-estar evidencia que nossa sociedade está fundada em uma cultura de violência, de aversão ao Direito, ao Estado e à Justiça como conceitos universais, de perpetuação da desigualdade e de práticas discriminatórias variadas. Todo esse caldo de cultura indigesto é retroalimentado diariamente pelos meios de comunicação que, ao mesmo tempo, bebem dele e o vitaminam com falácias, preconceitos e doses maciças de desinformação.
O debate sobre a situação dos presídios é paradigmático neste sentido. Merece registro a observação feita pelo ex-secretário do Meio Ambiente de Porto Alegre, Luiz Fernando Zachia, ao relatar sua experiência no Presídio Central ao jornal Zero Hora (edição de 07/05/2013). Zachia foi um dos presos pela Polícia Federal na Operação Concutare, que investiga um esquema de fraudes ambientais no Rio Grande do Sul. “Teve uma noite que dormi muito mal. Fui político, presidente da Assembleia, secretário de Estado, mas fiz muito pouco pela questão prisional. Os presos têm de pagar a conta, mas têm de ser reintegrados. Hoje, têm expectativa de vida zero. Isso me incomodou. Eu poderia ter ajudado, pelos cargos que ocupei”, afirmou.
Esse é um debate difícil, mas que precisa ser feito. Se a população carcerária não para de crescer e a sociedade não está disposta a considerar esse assunto como seu, então estamos diante de um grave problema, a saber, a constatação de uma sociedade doente que quer fechar os olhos para as enfermidades que a ameaçam. Em tempo: eu já perdi “alguém da minha família”, uma querida irmã no caso, vítima fatal de um motorista imprudente, para dizer o mínimo. Ele já foi julgado e condenado pela Justiça. As marcas dessa morte ficaram gravadas na alma e no corpo da família como se fossem feitas por ferro em brasa. Querer usar esse tipo de marca para justificar teses gerais sobre o mundo é simplesmente indecente.
O uso da premissa ameaçadora "quero ver se acontecer com a tua família” apoia-se em sentimentos compreensíveis de raiva e vingança comuns em caso de violência. Ela é acompanhada, muitas vezes, por outra premissa, mais ameaçadora ainda, que consiste em invocar episódios particulares de violência extrema com requintes de crueldade para justificar teses gerais sobre o tratamento de presos. A maioria das pessoas tem hoje um integrante da família ou alguém próximo que foi vítima de um ato violento, seja um assalto, um roubo, um acidente causado por imprudência, um episódio de violência doméstica ou mesmo um assassinato. Estes casos particulares, porém, por mais dramáticos e dolorosos que sejam, não justificam a adoção da “justiça pelas próprias mãos”. Essa é uma das razões pelas quais existem coisas como o Direito, a Justiça e o Estado. Se quisermos abrir mão dessas instituições, por maiores que sejam suas imperfeições, em pouco tempo estaremos de quatro urrando nas matas.
A frequência no uso da expressão citada mostra como esses conceitos (Direito, Justiça e Estado) ainda são um tanto contra-intuitivos, ou seja, seu significado e suas implicações ainda escapam a muita gente. A construção desses conceitos e sua transformação em ordenamento jurídico e instituições levaram séculos e custaram muito sangue derramado. A instituição do conceito de Estado, em especial, exigiu algumas renúncias, entre elas, a de querer fazer justiça com as próprias mãos, ou de querer criar e legitimar normas e preceitos particulares a partir, por exemplo, do que ocorre com cada um de nós e suas respectivas famílias. A pretensão de fundar a Justiça e o Direito em apelos desta natureza significa, na verdade, a implosão desses conceitos, ou, pelo menos, de sua universalidade, o que, no frigir dos ovos, dá no mesmo.
É sintomático que esse tipo de expressão tenha ampla circulação no Brasil e seja geralmente apontado contra defensores dos direitos humanos, reduzidos então à categoria de “amigos de bandidos”. O Brasil, ao contrário do que certa historiografia tenta construir, foi construído na base de muita violência, racismo e desigualdade. A “cordialidade do brasileiro” é um mito. Milhões de índios foram massacrados, com requintes de violência. O Brasil foi um dos últimos países a abolir oficialmente a escravidão. Os resquícios desses episódios fundadores da nação brasileira estão aí para quem quiser ler, ver, ouvir e sentir.
Essa é uma das razões centrais pela qual os conceitos de Direito e Direitos Humanos precisam avançar no país, tanto do ponto de vista de sua efetivação como no de sua compreensão. Esta última, aliás, parece ser uma condição para a primeira. O problema do país não é, como disse recentemente um editorial do jornal Zero Hora, a existência de um excesso de direitos e uma escassez de deveres.
Esse chavão é uma expressão típica da cultura da Casa Grande que está impregnada na nossa cultura. Não há país que tenha perecido por algo como “excesso de direitos”. O reconhecimento de novos direitos é uma conquista civilizatória. Acenar com um suposto desequilíbrio na balança Direitos-Deveres é um velho artifício retórico que mal consegue disfarçar seu mal-estar com a consolidação de certos direitos. Isso aparece, mais uma vez, hoje, nos debates sobre direitos trabalhistas de empregadas domésticas, reconhecimento de territórios quilombolas e sobre o casamento gay, apenas para citar três exemplos. Aliás, esse artifício costuma dar as caras no debate público justamente quando ele versa sobre o reconhecimento de direitos.
Esse mal-estar evidencia que nossa sociedade está fundada em uma cultura de violência, de aversão ao Direito, ao Estado e à Justiça como conceitos universais, de perpetuação da desigualdade e de práticas discriminatórias variadas. Todo esse caldo de cultura indigesto é retroalimentado diariamente pelos meios de comunicação que, ao mesmo tempo, bebem dele e o vitaminam com falácias, preconceitos e doses maciças de desinformação.
O debate sobre a situação dos presídios é paradigmático neste sentido. Merece registro a observação feita pelo ex-secretário do Meio Ambiente de Porto Alegre, Luiz Fernando Zachia, ao relatar sua experiência no Presídio Central ao jornal Zero Hora (edição de 07/05/2013). Zachia foi um dos presos pela Polícia Federal na Operação Concutare, que investiga um esquema de fraudes ambientais no Rio Grande do Sul. “Teve uma noite que dormi muito mal. Fui político, presidente da Assembleia, secretário de Estado, mas fiz muito pouco pela questão prisional. Os presos têm de pagar a conta, mas têm de ser reintegrados. Hoje, têm expectativa de vida zero. Isso me incomodou. Eu poderia ter ajudado, pelos cargos que ocupei”, afirmou.
Esse é um debate difícil, mas que precisa ser feito. Se a população carcerária não para de crescer e a sociedade não está disposta a considerar esse assunto como seu, então estamos diante de um grave problema, a saber, a constatação de uma sociedade doente que quer fechar os olhos para as enfermidades que a ameaçam. Em tempo: eu já perdi “alguém da minha família”, uma querida irmã no caso, vítima fatal de um motorista imprudente, para dizer o mínimo. Ele já foi julgado e condenado pela Justiça. As marcas dessa morte ficaram gravadas na alma e no corpo da família como se fossem feitas por ferro em brasa. Querer usar esse tipo de marca para justificar teses gerais sobre o mundo é simplesmente indecente.
Marco Aurélio Weissheimer é editor-chefe da Carta Maior (correio eletrônico: gamarra@hotmail.com)
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